RESUMO: O presente trabalho debruça-se sobre a celeuma vivida desde a publicação do Código Penal até o avanço da Lei nº 13.531, de 7 de dezembro de 2017, no que tange aos crimes de dano e receptação contra o patrimônio do Distrito Federal. A partir de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, busca-se fazer uma análise do papel do Distrito Federal dentro da Federação Brasileira, bem como da forma pela qual a doutrina e a jurisprudência pátria tentaram solucionar a lacuna normativa existente sobre a punição mais severa quanto aos crimes lesivos ao patrimônio distrital, antes do avanço da Lei nº 13.531, de 7 de dezembro de 2017.
Palavras-chave: Crimes. Dano. Receptação. Distrito Federal. Lacuna normativa. Lei nº 13.531/2017.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O Federalismo Brasileiro. 3 Da Mora Legislativa até Lei nº 13.531/2017. 4 A Divergência entre o TJDFT e o STJ. 5 Conclusão. Referências.
O estudo sobre os crimes patrimoniais praticados contra os bens pertencentes ao Distrito Federal mostra-se de extrema relevância social, uma vez que a população brasileira vive um momento de grande clamor pela proteção e bom uso do patrimônio público.
A celeuma jurídica a ser discutida no presente trabalho envolve o longo período de mora legislativa para sanar lacuna existente no Código Penal. Antes da entrada em vigor da Lei nº 13.531, de 7 de dezembro de 2017, a qual equiparou o tratamento jurídico dado aos bens da União, do Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, havia uma evidente disparidade de tratamento dada aos bens pertencentes aos referidos entes federados, especialmente, no que se refere ao patrimônio do Distrito Federal.
O trabalho foi desenvolvido com base em pesquisa histórica, bibliográfica e jurisprudencial sobre o assunto para verificar como a comunidade jurídica lidou com o tema durante o período de mora legislativa.
A Constituição Federal deixa expresso, logo em seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal.
Vê-se, portanto, que o Estado Brasileiro adota como modelo a forma federativa de estado, mais precisamente o modelo centrífugo de federalismo, no qual um Estado, aprioristicamente unitário, fragmenta-se em outros entes, mantendo, contudo, a maior parte do poder concentrado no ente central, no caso do Brasil, a União. Nas palavras do autor Gilmar Mendes:
O modo como se repartem as competências indica que tipo de federalismo é adotado em cada país. A concentração de competências no ente central aponta para um modelo centralizador chamado centrípeto[1].
O federalismo é a forma de Estado constitucionalmente adotada no país desde a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891 até o texto atual da Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.
Da leitura do texto constitucional, pode-se dizer, portanto, que a Federação Brasileira é composta de quatro entes federados: União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Ressalte-se que todos os entes federados possuem natureza jurídica de pessoa jurídica de direito público interno, conforme preleciona o art. 41 do Código Civil[2]. Ademais, segundo preleciona o art. 98[3] do mesmo Código Civil, são públicos todos os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno.
Assim sendo, em que pese as críticas feitas à excessiva concentração de poder na União, é fato que o patrimônio pertencente a qualquer dos entes federados tem natureza jurídica de bem público e, por conseguinte, merece proteção legal equivalente.
2 DA MORA LEGISLATIVA ATÉ LEI Nº 13.531/2017
Apesar de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico levar à conclusão acima debatida – de que todo o patrimônio público merece proteção equivalente – é cediço que o legislador brasileiro, durante muito tempo, esteve em mora quanto a essa proteção. Na redação original, a literalidade dos artigos 163, parágrafo único, inciso III, e 180, § 6º, ambos do Código Penal, não elencava a violação ao patrimônio distrital como merecedora de penas mais gravosas, conforme se depreende do texto não compilado da legislação, in verbis:
Dano
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Dano qualificado
Parágrafo único - Se o crime é cometido:
I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
II - com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não constitui crime mais grave
III - contra o patrimônio da União, Estado, ou de Município;
III - contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista; (Redação dada pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967)
III - contra o patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos; (Redação dada pela Lei nº 13.531, de 2017)
IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Receptação
Art. 180. Adquirir, receber ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 2.505, de 1955)
Pena - reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros). (Redação dada pela Lei nº 2.505, de 1955)
Receptação culposa
§ 1° Adquirir ou receber coisa que por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumi-se obtida por meio criminoso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa, de tresentos mil réis a dez contos de réis, ou ambas as penas.
§ 2° A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa.
§ 3° No caso do § 1°, se o criminoso é primário, o juiz pode, tendo em consideração as circunstancias, deixar de aplicar a pena.
3º No caso do § 1º, se o criminoso é primário pode o juiz, tendo em consideração circunstâncias, deixar de aplicar a pena. No caso de receptação dolosa, cabe o disposto no § 2º do art. 155. (Redação dada pela Lei nº 2.505, de 1955)
§ 4º No caso dos bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, emprêsa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista adquiridos dolosamente: (Incluído pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967)
Pena: reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa de 1 (um) a 5 (cinco) salários-mínimos do maior vigente no País. (Incluído pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967)
Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Receptação qualificada (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 1º - Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 2º - Equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo anterior, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercício em residência. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 4º - A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 5º - Na hipótese do § 3º, se o criminoso é primário, pode o juiz, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Na receptação dolosa aplica-se o disposto no § 2º do art. 155.
§ 6º - Tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 6º Tratando-se de bens do patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 13.531, de 2017) (destaques acrescidos)
Um dos fatos que denotam maior estranheza na omissão do ente distrital é a presença dos municípios no rol legal desde a redação originária do Código Penal. Especialmente, porque a municipalidade foi alçada ao status de ente federado apenas com a Constituição de 1988, o que inclusive foi objeto de severas críticas por parte da doutrina, que não entende que os municípios possuem as características necessárias para integrar uma federação na qualidade de ente autônomo. Nesse sentido, colaciona-se a lição de José Afonso da Silva[4]:
A Constituição consagrou a tese daqueles que sustentavam que o Município brasileiro é "entidade de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo". Data venia, essa é uma tese equivocada, que parte de premissas que não podem levar à conclusão pretendida. Não é porque uma entidade territorial tenha autonomia político-constitucional que necessariamente integre o conceito de entidade federativa. (…) Em que muda a federação brasileira com o incluir os Municípios como um de seus componentes? Não muda nada. Passaram os Municípios a ser entidades federativas? Certamente que não, pois não temos uma federação de Municípios. Não é uma união de Municípios que forma a federação.
Desta feita, é incompreensível o fato de o legislador ter se recordado dos municípios e se olvidado do Distrito Federal.
Outro dado que torna ainda menos compreensível o lapso legislativo, é o fato de que os referidos dispositivos passaram por alterações prévias à Lei nº 13.531/2017 e, em nenhuma delas, se acrescentou o Distrito Federal ao rol legal, embora tenha havido o acréscimo das concessionárias de serviço público.
Apenas com o Projeto de Lei nº 3763/2004 da Câmara dos Deputados, o legislador pareceu se atentar à necessidade de saneamento da lacuna legislativa, o próprio parecer da Comissão de Constituição e Justiça admitiu a necessidade de dar maior clareza ao texto de lei, in verbis:
Quanto ao mérito é de toda oportunidade a apresentação do Projeto de Lei. Estão incluídos no gravame penal os bens dominiais, como também os de uso comum do povo e de uso especial e os bens de entidades que desempenham atividades públicas e atividades de interesse público. O Distrito Federal é pessoa jurídica de Direito Público, integrando-se no pacto federativo, donde a natureza pública de seus bens e patrimônio. Ainda que a doutrina e jurisprudência tenham já se manifestado nesse sentido, por certo a aprovação do Projeto de Lei tornará mais clara e completa à disposição de Lei Penal[5].
Ocorre que a publicação da Lei nº 13.531/2017, embora tenha sanado um vício há muito apontado pelos operadores do direito, sobretudo no Distrito Federal, não teve o condão de solver a controvérsia jurídica existente até 8 de dezembro de 2017.
3 DO POSICIONAMENTO DO TJDFT E DO STJ SOBRE O TEMA
Como dito, embora a Lei nº 13.531/2017 tenha corrigido uma celeuma, há muito existente, e harmonizado a legislação, os debates sobre os fatos ocorridos antes da inovação legal foram bastante acalorados e têm potencial para continuar gerando polêmica.
O e. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), durante um longo período, de forma majoritária, entendeu ser apropriado dar ampliação extensiva à norma penal, garantindo uma maior proteção ao patrimônio distrital. Nesse sentido, a corrente prevalente no âmbito do TJDFT foi no sentido de que, sendo o Distrito Federal ente federado tal qual os municípios, os estados e a União, admitir-se-ia uma interpretação extensiva dos dispositivos legais.
Ressalte-se que, além da sanção mais severa, também era objeto de preocupação do Tribunal, especialmente no que tange ao crime de dano, a natureza jurídica da ação penal, tendo em vista que o dano simples é crime de ação penal privada, o que excluiria o Ministério Público como legitimado a intentar ação penal nos atos praticados contra o patrimônio do Distrito Federal.
Desta forma, no âmbito da Justiça do Distrito Federal, por diversas vezes, aplicou-se o artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal aos crimes de dano contra o patrimônio distrital. O principal argumento do e. TJDFT era o de que não tratar-se-ia de analogia in malam partem, mas de mera interpretação extensiva da norma penal, o que seria admitido na ordem jurídica nacional. Nessa direção, Cezar Roberto Bittencourt[6] preleciona que:
A analogia não se confunde com a interpretação extensiva. (...) A analogia, convém registrar desde logo, não é propriamente forma de interpretação, mas de aplicação da norma legal. (...) Com a analogia se procura aplicar determinado preceito ou mesmo os próprios princípios gerais do direito a uma hipótese não contemplada no texto legal, isto é, com ela se busca colmatar uma lacuna da lei. (...) Nessa hipótese, não há um texto de lei obscuro ou incerto cujo sentido exato se procure esclarecer. Há, com efeito, a ausência de lei que discipline especificamente essa situação. A finalidade da interpretação é encontrar a 'vontade' da lei, ao passo que o objetivo da analogia, contrariamente, é suprir essa 'vontade', o que convenhamos, só pode ocorrer em circunstâncias carentes de tal vontade. Em síntese, a analogia supre uma lacuna do texto legal, ao passo que a interpretação extensiva procura harmonizar o texto legal com sua finalidade, isto é, com a chamada volunta legis. (destaques originais)
Nesse sentido colaciona-se:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE DESACATO E DANO QUALIFICADO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. ESTADO DE ÂNIMO E EMBRIAGUEZ DO ACUSADO. IRRELEVÂNCIA. CONDUTA CONSCIENTE E VOLUNTÁRIA. TIPICIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA DANO SIMPLES. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. CONDENAÇÃO MANTIDA.
(...).
4.A despeito da ausência de previsão expressa do Distrito Federal no rol dos entes de Direito Público elencados no art. 163, parágrafo único, inciso III, do CP, é possível sua consideração, para efeito de tipificação do crime de dano qualificado, por meio de interpretação extensiva. Tal exegese não implica analogia in malam partem, pois esta pressupõe ausência completa de disciplina legal do tema, ao contrário da interpretação extensiva, que extrai da norma legislada seu verdadeiro sentido, sua teleologia, retificando assim o déficit legislativo.
5. Recurso conhecido e desprovido[7]. (destaques originais)
As turmas recursais do e. TJDFT também se posicionaram no mesmo sentido:
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. CRIME DE DANO QUALIFICADO E DESACATO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL QUALIFICADO NA HIPÓTESE DE DANO AO PATRIMÔNIO DO DISTRITO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA NORMA - ART. 163, § ÚNICO, III, DO CP. PENA SUPERIOR A 2 (DOIS ANOS). RECONHECIMENTO DE OFÍCIO DA PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO. RECURSO CONHECIDO. DECISÃO ANULADA. REDISTRIBUIÇÃO AO JUÍZO CRIMINAL.
1.Não havendo dúvidas da existência de indícios suficientes de autoria e materialidade para o crime de dano ao patrimônio de uma Delegacia de Polícia do DF, a conduta típica amolda-se ao crime previsto no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal (dano qualificado), a ser processado por meio de ação penal pública incondicionada.
2.Não obstante o Distrito Federal não constar do rol de entes indicados no art. 163, parágrafo único, III, do CPC, trata-se de ente da Federação que merece idêntico tratamento legal e, dessa forma, o seu patrimônio possui tutela penal equivalente aos demais, de acordo com a interpretação extensiva da referida norma.
3.Tendo em vista que a pena cominada para o crime de dano qualificado é de 6 meses a 3 anos de detenção, o referido crime não pode ser considerado como de menor potencial ofensivo, pois ultrapassa o limite de competência dos Juizados Especiais de 02 (dois) anos fixado no art. 61 da Lei nº 9.099/95.
4.Recurso conhecido. Reconhecida, de ofício, a preliminar de incompetência absoluta dos Juizados Especiais para o processamento e julgamento da ação penal que contempla crime de dano contra o patrimônio do Distrito Federal. Redistribuição dos autos a uma das Varas Criminais da Circunscrição Judiciária de Planaltina. Anulada a decisão que rejeitou o recebimento da denúncia.
5.Sem custas e honorários, em razão da atuação recursal do MPDFT.[8]
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, em sentido oposto, dando uma interpretação literal ao dispositivo entendeu pela impossibilidade de se aplicar a qualificadora aos crimes de dano praticados contra o patrimônio distrital, por se tratar de analogia em prejuízo do réu, consoante o Habeas Corpus nº 154.051, o qual inclusive ressalva a natureza privada da ação, de modo que competiria ao próprio Distrito Federal, através de sua procuradoria:
PENAL. HABEAS CORPUS. DANO QUALIFICADO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO. IMPROVIDO. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. INVIABILIDADE. VIA INADEQUADA. LEI N.º 5.346/67. INCLUÍDAS AS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. LEGISLADOR NÃO AS CONSIDEROU ABRANGIDAS PELO ENTE UNIÃO DESCRITO NO TIPO. DISTRITO FEDERAL NÃO ELENCADO NO ROL. ANALOGIA IN MALAM PARTEM. VEDADA. FLAGRANTE ILEGALIDADE. EXISTÊNCIA. DANO SIMPLES. POSSIBILIDADE. PRAZO DECADENCIAL EXAURIDO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
(...)
5. A norma criminal insculpida no artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal foi acrescida pela Lei n.º 5.346/67, a fim de incluir a empresa concessionária de serviços públicos e a sociedade de economia mista, findando a discussão anterior acerca de se o dano cometido contra esses entes estaria abrangido neste tipo, ao tratar do evento danoso contra o patrimônio da União.
6. De se notar que o Distrito Federal é um ente federativo, regido por lei orgânica, lhe sendo atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios (artigo 32, caput, e § 1.º, da Constituição Federal).
7. In casu, existe manifesta ilegalidade pois, não se descurando da mens legis, no tocante à proteção do patrimônio público, nem da discrepância em considerar o prejuízo aos bens distritais menos gravoso do que o causado aos demais entes elencados no dispositivo criminal, verifica-se que é inadmissível fazer-se interpretação analógica in malam partem, vedada em Direito Penal, com o escopo de incluir o Distrito Federal no rol previsto no delito de dano qualificado.
8. Caberia para a conduta descrita na exordial acusatória em análise a imputação relativa ao dano simples, previsto no caput do artigo 163 do Código Penal, mediante queixa-crime apresentada pela Procuradoria do Distrito Federal, inviável no presente caso, visto que entre a data do fato até o presente momento, operou-se o prazo decadencial, fulminando essa possibilidade, pelo advento da extinção da punibilidade (Artigo 107, inciso IV, do Código Penal).
9. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, a fim de anular a ação penal desde o oferecimento da denúncia, inclusive; e, em ato contínuo, reconhecer a extinção da punibilidade do fato.[9] (destaques acrescidos)
Não obstante, verifica-se que, mesmo após a decisão do e. STJ, o e. TJDFT permaneceu aplicando a interpretação já elencada, conforme se depreende da própria data dos julgados colacionados. Assim sendo, mesmo após a manifestação do STJ, o tema que permanecia controvertido no âmbito dos tribunais.
Ocorre que, antes que a discussão se alongasse, o legislador pátrio, finalmente, supriu a lacuna existente através da Lei nº 13.531/2017.
No entanto, é de se ressaltar que os posicionamentos mais recentes do e. TJDFT têm convergido com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em muito, impulsionados pela novidade legislativa, nesse sentido, destaque-se o recente julgado da 2ª Turma Criminal:
APELAÇÃO CRIMINAL. DANO QUALIFICADO. PRELIMINAR DE OFÍCIO. PATRIMÔNIO DO DISTRITO FEDERAL. FATO ANTERIOR À LEI Nº 13.531/2017. DESCLASSIFICAÇÃO. DANOSIMPLES. AÇÃO PENAL PRIVADA. NULIDADE. ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ACOLHIDA. CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. INERENTE AO TIPO. CONSEQUÊNCIAS. COLISÃO EM OUTROS VEÍCULOS. DANO A TERCEIROS. POSSIBILIDADE. SUSPENSÃO DO DIREITO DE DIRIGIR. PERÍODO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Considerando que o patrimônio do Distrito Federal foi incluso no rol dos bens protegidos pelo inciso III do parágrafo único do artigo 163 do Código Penal somente pela Lei nº 13.531, de 7 de dezembro de 2017, e que, antes disso, a jurisprudência consolidada no STJ entendia que o dano ao patrimônio distrital não configurava o crime de dano qualificado, deve a conduta ser desclassificada para forma simples.
(...)
6. Preliminar acolhida, de ofício, para declarar a nulidade do processo quanto ao crime de dano. No mérito, recurso parcialmente provido quanto ao crime de embriaguez ao volante.[10]
Apesar disso, a controvérsia permanecerá quanto aos fatos ocorridos antes da referida lei, considerando que o texto normativo ainda é recente, de modo que é necessário aguardar o posicionamento consolidado dos tribunais sobre o tema.
A partir dos temas debatidos é possível se depreender que a intenção do legislador, desde a redação originária do Código Penal, foi a de tratar com maior rigor os crimes patrimoniais contra bens públicos. Assim, é difícil crer que o legislador tenha tido a intenção de proteger a União, os Estados e os Municípios, mas não se interessado em conferir essa proteção potencializada ao patrimônio do Distrito Federal. Caso não se tratasse, na hipótese, de legislação penal, bem provável que os tribunais superiores, dando uma interpretação sistemática e teleológica ao ordenamento jurídico, estendessem as consequências jurídicas dos dispositivos legais às condutas praticadas contra o patrimônio distrital, o que também fundamenta o posicionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Não obstante, o manejo Direito Penal exige especial cautela por parte do operador do direito, uma vez que a tutela do direito de liberdade está submetida a princípios constitucionais protetivos, dentre os quais se destaca o princípio da reserva legal elencado no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Assim, seguindo o consenso doutrinário de que na seara criminal não é admitida a analogia in malam partem. O Superior Tribunal de Justiça, contrariando diversos precedentes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, entendeu por bem afastar a aplicação analógica do artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, antes do avanço da Lei nº 13.531/2017. O posicionamento da Corte Cidadã é condizente com a proteção conferida ao cidadão em um Estado Democrático de Direito.
Contudo, o implemento da legislação que equiparou as condutas também está em consonância com ditames constitucionais, sobretudo com o princípio da isonomia, o qual exige que situações equivalentes tenham o mesmo tratamento legal, permanecendo, sem embargo, a controvérsia quanto aos fatos anteriores à norma.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. - São Paulo: Saraiva, 2007. vol. 1.
BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 3763/2004. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=92F62A4938F958636CB0A9B084A84807.proposicoesWebExterno1?codteor=257050&filename=Tramitacao-PL+3763/2004> Acesso em: 28 fev. 2019.
SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Método, 2005.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus 154051/DF, Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. j. 27/05/2013.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Apelação Criminal: 20120111325284APR. Terceira Turma Criminal. Rel. Desembargador Jesuino Rissato. J. 01/07/2015.
_____. Apelação Criminal no Juizado Especial 20130510104152APJ. Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal. Rel. Juiz Robson Barbosa de Azevedo. j. 12/08/2015.
_____. Apelação Criminal 20170110235183APR, 2ª Turma Criminal, Rel: Desembargador Silvanio Barbosa dos Santos j. 30/11/2018.
UNIÃO. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 28 fev. 2019.
_____. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 28 fev. 2019.
______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 28 fev. 2019.
[1] BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. p. 944.
[2] Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno: I - a União; II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III - os Municípios; IV - as autarquias; IV - as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005); V - as demais entidades de caráter público criadas por lei.
[3] Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
[4] SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Método, 2005. p. 105.
[5]CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 3763/2004. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=92F62A4938F958636CB0A9B084A84807.proposicoesWebExterno1?codteor=257050&filename=Tramitacao-PL+3763/2004> Acesso em: 28 fev. 2019.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. - São Paulo: Saraiva, 2007. p. 155/156. vol. 1.
[7] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Apelação Criminal: 20120111325284APR. Terceira Turma Criminal. Rel. Desembargador Jesuino Rissato. J. 01/07/2015.
[8] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Apelação Criminal no Juizado Especial 20130510104152APJ. Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal. Rel. Juiz Robson Barbosa de Azevedo. J. 12/08/2015.
[9] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Habeas Corpus: HC 154051/DF 2009/0226277-8, 6ª Turma, Relatora: Maria Thereza de Assis Moura. j. 27/05/2013
[10] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Apelação Criminal
20170110235183APR, 2ª Turma Criminal, Rel: Des. Silvanio Barbosa dos Santos j. 30/11/2018.
Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Analista do Ministério Público da União/Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Pâmela Resende. Análise sobre os crimes de dano e receptação contra o patrimônio do Distrito Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 mar 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52707/analise-sobre-os-crimes-de-dano-e-receptacao-contra-o-patrimonio-do-distrito-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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