RESUMO: O presente artigo propõe algumas reflexões a respeito da literatura enquanto bem jurídico fundamental, o direito ao seu acesso e como este pode contribuir para a promoção da dignidade humana. Para tanto, são considerados, principalmente, a concepção e os pressupostos de Antonio Candido sobre a literatura enquanto direito inalienável e humanizador, e pressupostos constitucionais.
Palavras-chave: Literatura. Bem Jurídico Fundamental. Dignidade Humana.
ABSTRACT: The present article proposes some reflections about literature as a fundamental legal good, the right to its access and how it can contribute to the achievement of human dignity. For this, the conception and assumptions of Antonio Candido on literature as an inalienable and humanizing right, and constitutional presuppositions, are considered.
Keywords: Literature. Good Legal Fundamental. Human dignity.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. A LITERATURA ENQUANTO BEM JURÍDICO FUNDAMENTAL. O ACESSO À LITERATURA E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
Introdução
O Povo[1]
O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. (Luiz Fernando Veríssimo)
A crônica de Veríssimo, referenciada acima através de uns de seus trechos, precipuamente, traz em seu bojo uma estruturada crítica aos pensamentos manifestos e posicionamentos dos grupos que compunham a elite diretiva do Brasil, a respeito do modo como estes enxergavam e tratavam o povo no momento em que esse texto foi publicado, a saber, o país se encontrava em meio aos extremos do regime militar.
O autor ao longo da crônica, através de uma provocante escrita irônica, destaca que o povo - notadamente vítima de um processo dirigido e desproporcional de acumulação de renda, que gerou uma das maiores desigualdades sociais do mundo - é contraditoriamente responsabilizado por impedir o desenvolvimento e o crescimento do país.
A situação ironicamente ilustrada na crônica é bastante oportuna, sobretudo porque a concentração de riqueza mensurada na época, deixou (e por resquícios, ainda deixa) quantidades significativas da população sem condições de satisfazer suas necessidades mínimas materiais e culturais, dentre as quais estão alimentação, saúde, educação, lazer.
De modo particular, no trecho supracitado da crônica, Veríssimo com seu tom sarcástico expõe intencionalmente o povo como sendo responsável por possuir supostos defeitos que maculam e comprometem o desenvolvimento da sociedade, como por exemplo “a falta de cultura”, quando na realidade a principal vítima da inacessibilidade à educação, museus, música, arte em geral e literatura, é o povo.
Atualmente, esses supostos defeitos, ou simplesmente problemas sociais, como é mais realista chamá-los, representam manifestamente a inobservância e violação de princípios basilares de um Estado Democrático de Direito. Isso significa dizer, que embora o Brasil tenha conseguido diminuir algumas dessas distâncias sociais, através de políticas públicas e mecanismos legais garantistas, nossas desigualdades continuam visivelmente inflamadas.
O cenário é esse: um país cujo povo recentemente foi retirado do mapa da fome mundial, estaria comprometido em sanar preocupações materiais e imediatas, muito maiores que garantir ao povo acesso a bens imateriais, libertários como o direito de se ler e de se fazer literatura. Afinal, qual seria a utilidade da leitura de versos e contos para a vida do povo?
Infelizmente, não é incomum que direitos revestidos de aspectos espirituais sejam tratados muitas vezes de forma desprestigiada, considerados como bens supérfluos, como estrategicamente foram tratados e encenados na crônica de Veríssimo.
Entretanto, esses direitos derivam diretamente do direito à vida, não no seu sentido estrito, levando em consideração somente critérios físicos, mas, sobretudo os critérios psíquicos, espirituais e morais, que promovem ao ser humano uma vida digna. Para tanto, a literatura assume um papel muito importante para a afirmação desses direitos na vida de cada pessoa.
De acordo com Antônio Candido (2004) as manifestações artísticas, dentre elas a literatura, conseguem educar os sentimentos e organizar as formas caóticas presentes no íntimo do ser humano, pois, o texto literário age em grande parte no seu inconsciente e subconsciente. E, portanto, a literatura se revela fundamental para a garantia do equilíbrio humano e, consequentemente, da sua dignidade enquanto pessoa, já que
assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. (CANDIDO, 2004, p.176)
Candido (2004) considera o acesso à literatura como um fator indispensável de humanização e que corresponderia, nesse sentido, a uma necessidade universal, cuja satisfação constitui um direito inalienável.
Desse modo, levando em consideração a compreensão de que a literatura é um bem essencial e, por essa razão, não pode ser negado a ninguém, o presente trabalho propõe-se a refletir sobre o tema a partir da perspectiva de Candido, destacando a relevância de se perceber a literatura como um bem jurídico fundamental, bem como uma forma legítima de contribuir para a garantia de condições mínimas existenciais necessárias à promoção dos efeitos do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.
A literatura enquanto bem jurídico fundamental.
Na concepção de Antonio Candido (1995), a natureza jurídica da literatura como um bem passível de ser tutelado, vem das linhas que ele mesmo escreveu – utilizando-se da distinção de “bens”, estabelecida pelo sociólogo francês Louis-Joseph Lebret - no texto intitulado Direito à literatura, no qual o autor destaca a existência de bens compressíveis, os que chamou de supérfluos e incompressíveis, os que não podem ser negados a ninguém e, portanto, essenciais.
Para ele, a literatura se enquadraria na segunda espécie, e sua justificativa é a de que não há sociedade no mundo que possa viver sem entrar em contato com algum tipo de fabulação. Vejamos nas suas exatas palavras:
São [bens] incompreensíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura. (1995, p. 240)
Nesse sentido, não é novidade que a literatura, enquanto manifestação artística, é revestida de um direito fundamental, na medida em que tanto normas constitucionais[2] como infraconstitucionais[3] podem alcançá-la, a exemplo do direito à cultura, liberdade de expressão, direito autoral, entre outros. Entretanto, o ineditismo, aqui, é representado pela noção de que existiria um direito à literatura não só relacionado àquele que a cria, mas também por parte daqueles a quem a literatura é dirigida: os leitores, ou seja, a sociedade em geral. E exatamente aqui, vamos ao encontro da concepção de Candido para qualificar a literatura como um direito tão fundamental quanto qualquer outro pertencente ao rol dos Direitos Humanos.
Nesse momento, é necessário compreendermos, ainda que de forma sucinta, o que faz de um direito um direito fundamental.
Para tanto, vamos nos valer da compreensão de Robert Alexy[4] (2001), que define que um direito humano para ser considerado fundamental tem de possuir cinco requisitos, a saber, preferencialidade, moralidade, universalidade, abstração e fundamentalidade.
Nesse sentido, levando-se em consideração os requisitos postos por Alexy (2001), para definição da natureza de um direito como sendo fundamental e considerando a natureza de bem incompreensível, trazida por Candido (1995), para situar a literatura no rol dos direitos universais, não restaria dúvida que o seu acesso pelas pessoas, configuraria um direito fundamental.
É óbvio que existe uma inclinação legítima em se reconhecer o acesso à literatura como um direito fundamental, exigível por cada pessoa. No entanto, do ponto de vista puramente jurídico não há uma resposta definitiva para a questão, sobretudo quando esta é exposta a aspectos constitutivos como por exemplo: apreciar se o referido direito se configura como sendo um direito subjetivo. Sob este ângulo (estritamente jurídico), seria pouco provável conseguir conformar o direito à literatura a um direito subjetivo.
Nesse caso, a exemplo do que já ocorre com o direito dos animais, protegidos pelo direito constitucional a partir da garantia de um meio - ambiente ecologicamente equilibrado[5], é possível, de pronto, vislumbrar também um tipo de proteção indireta para garantir o direito ao acesso à literatura.
Para tanto, a literatura precisa ser percebida e tratada como um bem jurídico relevante aos olhos da sociedade em geral (e não somente como um bem valioso, mas opcional para determinados grupos), a fim de que, como aconteceu progressivamente com a conscientização da necessidade de se ter e manter um meio-ambiente ecologicamente sustentável, se possa, a partir disso, pressionar o Estado no sentido de garantir efetivamente esse direito, e, de modo extensivo a todos, conforme estabelece a Constituição Federal.
Oportunamente, voltamos às palavras de Candido (1995) que, ao refletir sobre a natureza dos direitos humanos, destaca a imprescindibilidade de os colocar expostos a uma condição: a necessidade de “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” (1995, p. 239). E acrescenta que em si tratando dos bens espirituais, estes são muito mais facilmente esquecidos e ou negligenciados pelas pessoas, quando relacionados à característica da essencialidade dos direitos humanos.
Nas linhas escritas do pensamento do autor:
[...] as pessoas[...] afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução saúde – coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégios de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intensões no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre direitos humanos. (1995, p. 239-240)
Diante das palavras de Candido, não é difícil perceber que a discussão em torno de quais dos direitos humanos são tidos como imprescindíveis é delicada e controversa, uma vez que diz respeito a uma análise que comporta as mais diferentes visões, interesses e modos de conceber o outro e o valor de cada direito. Nessa perspectiva, o ser humano é compreendido como aquele que elabora, analisa, aprecia e desfruta dos seus direitos e reconhece os do seu próximo de maneira proporcionalmente simétrica.
Surge então, nesse contexto, uma questão central: a literatura é um direito (bem) essencial à vida? Ou seja, a sua privação à sociedade em geral, mobiliza cidadãos, órgãos, grupos, instituições a reivindicá-lo como ocorre, por exemplo, quando qualquer componente do ecossistema é visivelmente agredido?
Daqui, surgem muitas reflexões e controvérsias sobre o tema, pois muitos avaliam como essenciais somente bens diretamente ligados à manutenção orgânica e visível de preservação da vida. É inevitável nos recordarmos das palavras, anteriormente citadas, de Candido (1995), pois a forma como a sociedade percebe o valor de um bem jurídico, irá determinar o modo como sente a lesão causada pela sua negligência e como reage a ela, diante do Estado.
Nesse sentido, assim como Candido (1995), e à luz dos princípios e garantias constitucionais, são direitos essenciais ao ser humano, além do direito à alimentação, habitação, vestuário, saúde, educação, lazer, indubitavelmente, também a literatura, compreendendo este como sendo um dos principais mecanismos de desenvolvimento e fortalecimento do intelecto e da consciência, meios essenciais para a atuação plena do indivíduo na sociedade.
Assim, se a concepção de essencialidade da literatura como um direito fundamental de todos, ainda não perpassa as fronteiras das nossas distâncias sociais, como bem pontua Candido (1995), é dever do Estado conceber e promover tal compreensão a partir da garantia do seu acesso a todos.
Sobretudo porque o direito à literatura faz parte do rol de direitos que garantem um mínimo de condições existenciais humanas, para a proteção da dignidade da pessoa humana, e o Estado não pode se eximir ou se desobrigar a assegurar a efetiva garantia desses direitos.
Neste sentido, pode-se defender o direito à literatura como um direito fundamental implícito, abarcado pelo instituto da proteção indireta, como já mencionado anteriormente, devendo ser efetivado para que se cumpra o disposto na Constituição Federal quanto ao direito fundamental à educação, uma vez que a educação é direito de todos e dever do Estado[6], a fim de promover o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
O acesso à literatura e a sua contribuição para a realização da dignidade humana.
Como já visto anteriormente, utilizando-se da concepção de Cândido no que tange à natureza jurídica da literatura, a qual, frise-se, é recepcionada neste trabalho, considera-se a literatura como um direito fundamental de todos os indivíduos, pois que “[...] ela é uma necessidade universal imperiosa, e [...] fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade.” (CANDIDO, 1995), uma vez que por seu intermédio outros direitos podem ser experimentados com eficácia, como o direito de liberdade e igualdade.
Para (COMPAGNON, 2009, P. 34), “[...] a literatura funciona como um instrumento de justiça e de tolerância, e a sua [...] leitura, experiência de autonomia, contribuem para a liberdade” e dignidade do indivíduo. Em outras palavras, a literatura pode não mudar uma realidade propriamente dita, mas certamente tem o poder de libertar da alienação e da opressão.
Nesse sentido, tendo em vista todas as suas peculiaridades e os valores que pode transmitir e proporcionar às pessoas, a literatura é algo que pode propiciar inúmeras experiências positivas e condições para formação da personalidade e uma compreensão macro acerca da vida, de modo que, não é possível limitar sua significância e funcionalidade.
Assim, a dimensão e o alcance da literatura para o ser humano e a sociedade como um todo, somente podem ser percebidos e compreendidos se o acesso a ela for promovido, ou seja, se for experimentada. E aqui, não importa se é popular ou erudita, a literatura deve ser tratada como essencial para a construção dos conhecimentos do ser humano e para que se aprimore a capacidade de discernimento em sua atuação em sociedade, por isso, a sua fruição constitui um direito inalienável. (CANDIDO, 2004)
Como já mencionado neste trabalho, uma das formas de assegurar a efetividade do acesso à literatura como um direito fundamental, é através da proteção indireta, neste caso, é dizer, por meio da proteção do direito constitucional à educação plena e de qualidade para todos.
Nessa perspectiva, é sabido que a forma materializada de se perceber o cumprimento dessa garantia constitucional é através da escola, sobretudo num momento em que absurdamente a cultura e as artes estão sendo tratadas como verdadeiros inimigos da ordem e da paz social. Isso parece exagero, sendo dito sobre a sociedade brasileira do século XI, mas infelizmente não é.
Sobre tal realidade, numa recente entrevista à revista Carta Capital, o presidente da Academia Brasileira de Letras, o professor Marco Lucchesi (2018) ponderou: “Isso é um regresso civilizacional. Inenarrável. A obra é autotélica. Ela tem uma finalidade em si própria. Ela não está colocada sub judice. A literatura, por exemplo, pode ser boa ou má, mas não santa ou perversa”.
Dessa forma, garantir o acesso à literatura por meio das escolas, é hoje, muito mais que uma possibilidade do cumprimento desse direito, é para as pessoas advindas de camadas mais populares a única forma.
Para tanto, a escola precisa e deve ser o canal de acesso ao texto literário e promoção de um letramento literário que permita ao aluno uma experiência de leitura que pode e deve ser ampliada com informações específicas do campo literário e para além dele. (COSSON, 2012)
Negar o acesso à literatura através da escola, é privar um direito fundamental ao aluno e, por reflexo, às suas famílias e à sociedade.
E mais, é somente a partir de um constante movimento de contato e de transmissão da literatura nas escolas, que progressivamente vão se constituindo relações de intimidade entre as mais diversas manifestações literárias e os alunos e, através destes, estendê-las aos seus contextos sociais. De modo que, expostos ao universo fabuloso da literatura - repleto de diferentes possibilidades e perspectivas –, possam percebê-la como um bem imprescindível ao desenvolvimento de uma vida equilibrada e digna.
Assim, perceber a literatura como parte essencial de uma vida plena, será cada vez mais perceptível à sociedade, permitindo reconhecer quando o direito ao seu acesso for lesado ou negligenciado e, dessa forma, reivindicar ao Estado o seu devido cumprimento.
Garantido o acesso à literatura, muitas são as suas contribuições para a pessoa do leitor, bem como para organização e desenvolvimento de uma sociedade. Todavia, para este trabalho mostra-se oportuno analisarmos a contribuição da literatura para a realização da dignidade humana.
O ser humano possui dignidade porque é considerado para além de sua matéria. Isto significa dizer que ele possui necessidades físicas, psicológicas, mentais, sociais, espirituais, etc.
Para o direito, tem-se a dignidade da pessoa humana como fonte e postulado de todo sistema jurídico, sobretudo porque o ser humano compõe o núcleo desse sistema. Assim, a dignidade da pessoa humana é o princípio matriz que deve ser inalterável sob qualquer circunstância em que as pessoas estejam.
Desse modo, o direito fundamental à literatura é também responsável pela promoção da dignidade humana do indivíduo, principalmente no que diz respeito ao seu processo de formação, no qual a experiência com a leitura do texto literário proporciona a si mesmo consciência e autonomia e à sociedade equilíbrio e equidade.
De acordo com Carvalho (2006):
O processo de leitura da literatura contribui para a formação do sujeito não só enquanto leitor, mas, sobretudo como indivíduo historicamente situado, uma vez que a interação texto-leitor promove o diálogo entre o conjunto de normas literárias e sociais presentes tanto no texto literário quanto no imaginário do sujeito.[...]Isso significa a ampliação de horizontes, visto que a incompleta identificação obra-leitor, a partir do embate de diferentes normas literárias e sociais, obriga o indivíduo a pensar sua condição sociohistórica, tendo como conseqüência uma possível mudança de postura diante da sociedade. (p. 127 e 128).
Nesse contexto, o acesso à literatura, tanto a popular quanto a erudita, e sua apropriação, auxiliam o ser humano a experenciar sua dignidade enquanto pessoa, na medida em que promove o seu autoconhecimento e sua capacidade de compreender o outro e seus sentimentos, minimizando distâncias arbitrárias socialmente estabelecidas e promovendo democratização do saber.
Sem dúvida, a literatura traz consigo um papel libertador, pois, além de divertir e encantar o leitor, o conduz, por meio da comparação, da análise e da reflexão sobre o mundo ficcional, à conscientização sobre variadas questões que lhe são muitas vezes restritivas ou ocultadas na sociedade - seja desvelando abusos de poder, percebendo aspectos de identidade nacional, impondo valores, ou, simplesmente, levando até o leitor exemplos das mais sublimes expressões de amor .
Candido (1995, p. 175), acertadamente, pontua que “[...] nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação [...] como equipamento intelectual e afetivo. Acrescenta que “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante".
De acordo com o autor,
Assim, como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é um fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. (CANDIDO, 1995, p. 243)
Destarte, o acesso à literatura constitui um instrumento intelectual e afetivo poderoso, formando personalidade “segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade”, (Candido,1995, p. 243), conformando o indivíduo à condição de plenitude, discernimento e de equilíbrio, que alicerça o princípio da dignidade da pessoa humana.
A garantia da dignidade humana pressupõe que ao ser humano foi lhe possibilitado vivenciar sua totalidade enquanto pessoa, para si mesmo e para a sociedade na qual está inserido, concebendo o outro como sujeito digno da mesma experiência, e “a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis” é fundamental para assegurar ao ser humano a efetividade desse princípio constitucional. inclusive, de modo contrário, na medida em que evidencia as suas violações, permitindo ao cidadão buscar a devida reparação.
A vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada clara, por conseguinte a única vida plenamente vivida, é a literatura.
Marcel Proust
Mergulhados nessas sensíveis, mas profundas palavras de Proust (1995), sobre a concepção de uma vida plena - possível através da literatura -, e depois das reflexões apresentadas, caminhamos para o fim deste trabalho, seguros de que, a viagem ao universo ficcional contribui diretamente para desenvolvimento do conhecimento do indivíduo e em sua atuação autônoma, consciente e plena na sociedade.
Restou evidente também que o universo fabulado da literatura não pode e, não deve, ser privilégio a ser desfrutado apenas por uma pequena parte da sociedade uma vez que o seu acesso é capaz de educar os sentimentos e organizar as formas caóticas presentes no interior do homem, pois, como afirma Antonio Candido (2004), a leitura literária atua em grande parte no inconsciente e no subconsciente humano, daí a relevância da literatura para o equilíbrio do homem.
Nesse sentido, “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (CANDIDO, 2004), sobretudo porque, conforme acertadamente considerou o autor, esta se conforma como sendo fator indispensável de humanização, de caráter essencial, razão pela qual torna-se uma necessidade universal, cuja satisfação constitui um direito inalienável. (CANDIDO, 2004)
Uma vez concebido o acesso à literatura, como um bem jurídico fundamental, é necessário prezar pela sua garantia. Assim, a partir da reflexão proposta aqui, foi possível compreender que um meio efetivo para assegurar o cumprimento desse direito, é através do instituto da proteção indireta, nesse caso, a partir da proteção ao direito constitucional da educação, esta, institucionalizada pela escola, principalmente, porque para a maioria da população brasileira esse é o único meio de acesso à literatura.
Por fim, foi possível entender o quão é relevante a promoção do acesso à literatura para a dignidade humana, na medida em que proporciona a cada pessoa a possibilidade de transformar a vida num sonho lúcido capaz de fomentar a criatividade, a imaginação, a criticidade e a humanização do sujeito, uma vez que os torna mais conscientes, participativos na sociedade e capazes de compreender o seu semelhante, respeitando-o em sua dignidade, que é personalíssima.
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CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In. CANDIDO, A. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 169-191
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CARVALHO, D. B. A. de. A leitura da literatura na escola: o lugar da criança como sujeito sócio-histórico. In: AGUIAR, V. T.; PENTEADO, M. A. A. Territórios da leitura. Da literatura aos leitores. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006.
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PROUST, Marcel. Em busca do tempo recuperado. Tradução de Fernando Py. RJ, Ediouro, 1995.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O popular. 3. ed. Porto Alegre. LPM Editores, 1984.
[1] Crônica publicada em 1973, no livro O Popular, o qual marca oficialmente o início da carreira do escritor.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
[3] Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, reconhecida como Lei dos Direitos Autorais. Art. 1º Esta Lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes são conexos.
[4] Robert Alexy é um dos mais influentes filósofos do Direito alemão contemporâneo.
[5] Constituição Federal, art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[6] Constituição Federal, art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
mestranda na área de Linguagem e Letramentos Sociais pela Universidade Federal de Sergipe, Campus São Cristóvão - SE. Bacharela em Direito, Pela Faculdade Pio X, Aracaju/SE, licenciada em Letras com habilitação em Português. Advogada na área de Direito Público - Educacional, Administrativo e Tributário - no âmbito do Terceiro Setor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BITTENCOURT, Adriana Edvirges de Santana. A literatura enquanto bem jurídico fundamental - O direito ao seu acesso e sua contribuição para a promoção da dignidade humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2019, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52738/a-literatura-enquanto-bem-juridico-fundamental-o-direito-ao-seu-acesso-e-sua-contribuicao-para-a-promocao-da-dignidade-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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