RESUMO: A presente pesquisa tem por finalidade a realização de uma investigação acerca da história das penas criminais, buscando, por meio de um processo de revisão bibliográfica, a sua compreensão evolutiva. Para tanto, investigar-se-ão, de início, as circunstâncias de definição e de aplicação das penas no período histórico da Antiguidade, centralizando-se o estudo em diplomas religiosos, no código de Hamurabi, onde está contida a lei de talião, e nas leis romanas. Posteriormente, analisar-se-á a pena no período histórico da Idade Média, e, ao final, estudar-se-á a evolução do modelo punitivo durante a Idade Moderna, especialmente em seu período de transição para a Idade Contemporânea, com destaque para o pensamento de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, perquirindo-se, em todos os casos, a relação da pena com o Estado e com a sociedade.
Palavras-chave: Pena. Sanção Penal. História das Penas. Lei de Talião. Cesare de Beccaria.
RESUMEN: El presente estudio tiene por finalidad la realización de una pesquisa acerca de la historia de las penas criminales, investigando su comprensión evolutiva a través de un proceso de revisión bibliográfica. Para ello, se averiguarán, en principio, las circunstancias de definición y de aplicación de las penas en el período histórico de la Antigüedad, centralizándose el estudio en diplomas religiosos, en el código de Hammurabi, en el que se incluye la Ley de Talión, y en las leyes romanas. A continuación, se investigarán las penas en el período histórico de la Edad Media, y al final se estudiará la evolución de la pena en el período de transición de la Edad Moderna a la Edad Contemporánea, con destaque para el pensamiento de Cesare Bonesana, el marqués de Beccaria, analizándose, en todos los casos, la relación de la pena con el Estado y con la sociedad.
Palabras clave: Pena. Sanción Penal. Historia de las Penas. Ley de Talión. Cesare de Beccaria.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A Pena na Antiguidade; 2 A Pena na Idade Média; 3 A Pena na Idade Moderna e no Período de Transição para a Idade Contemporânea; Conclusão; Referências.
Derivando do termo latim poena e do termo grego poiné, a palavra ‘pena’ representa linguisticamente a imposição de uma dor física ou moral ao violador de uma norma, ou seja, representa uma punição material ou imaterial por desvios de conduta do indivíduo.[1] Pela própria etimologia da palavra e também pela previsão de castigos nos mais antigos textos escritos da humanidade[2], observa-se que a origem da pena, como afirma Cezar Roberto Bitencourt, “é muito remota, perdendo-se na noite dos tempos, sendo tão antiga quanto a humanidade”[3]. De fato, a história das sanções pela prática de transgressões normativas, sejam elas morais, sociais ou jurídicas, mostra-se correlata à própria história dos seres humanos enquanto entes racionais e, consequentemente, capazes de distinguir ações socialmente aceitáveis de ações socialmente inaceitáveis.
Nesse contexto, reconhecendo a importância do estudo da pena na compreensão do próprio desenvolvimento social da humanidade, a presente pesquisa tem por finalidade a realização de uma investigação acerca de sua evolução histórica. Para tanto, por meio de um processo de revisão bibliográfica, investigar-se-ão, de início, as circunstâncias de definição e de aplicação das penas no período histórico da Antiguidade, centralizando-se o estudo em diplomas religiosos, no código de Hamurabi, onde está contida a lei de talião, e nas leis romanas. Posteriormente, analisar-se-á a pena no período histórico da Idade Média, e, ao final, estudar-se-á a evolução do modelo punitivo durante a Idade Moderna, especialmente em seu período de transição para a Idade Contemporânea, com destaque para o pensamento de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, perquirindo-se, em todos os casos, a relação da pena com o Estado e com a sociedade.
1 A PENA NA ANTIGUIDADE
Segundo Rogério Greco, desde os mais remotos tempos, já se podia observar a existência de uma noção de pena ou punição para casos de desvio de conduta, estando talvez a mais famosa delas detalhada na Bíblia Sagrada dos cristãos, importante livro histórico da humanidade, onde, em seu Velho Testamento, cita-se a punição de banimento do Jardim do Éden conferida por Deus a Adão e Eva em virtude da desobediência por eles praticada ao provar do fruto proibido.[4] Em verdade, ainda antes do surgimento do Livro dos Hebreus, os Códigos de Hamurabi e de Manu já haviam trazido normas de sancionamento pessoal pela transgressão de regras sociais, utilizando-se, como modelo de punição, o princípio de talião, comumente representado pela frase “olho por olho, dente por dente”, em límpida demonstração da forma vingativa e, para a época, proporcionalmente retributiva com que eram aplicadas as penalidades então existentes.[5]
Como ilustração da forma de punição estabelecida pelo Código de Hamurabi, podem-se citar os seus artigos 196 e 200, os quais retratam a aplicação da lex talionis: “art. 196 - Se um homem destruiu o olho de outro homem, destruirão o seu olho. [...] art. 200 – Se um homem arrancou o dente de outro homem livre igual a ele, arrancarão o seu dente”[6]. Atualmente localizado no Museu do Louvre, o Código de Hamurabi, baseado em leis semitas e sumerianas, é um dos mais antigos documentos jurídicos conhecidos da humanidade, tendo influenciado profundamente os direitos babilônico e hebreu.[7]
Segundo Ronaldo Leite Pedrosa, a Lei de talião, que significa “lei do tal qual”, foi provavelmente a mais importante disposição normativa do Código de Hamurabi, tendo sua repercussão histórica sido capaz de atravessar séculos e fronteiras, de modo a alcançar as mais variadas civilizações.[8] O talião, entretanto, não era a única norma penalizante presente no citado código, podendo-se observar, já em seu artigo 1º, uma primeira manifestação do rigoroso modelo punitivo nele previsto: “Se um homem acusou outro homem e lançou sobre ele suspeita de morte, mas não pôde comprovar, seu acusador será morto”[9].
Posteriormente, em Roma, foi criada a Lei das XII Tábuas, a qual era considerada pelos romanos a fonte de todo o direito público e privado.[10] Nesse contexto, apesar de ter sido considerada progressista e de ter engendrado a eliminação da diferença jurídica de classes[11], a Lex Decenviralis ainda previa a aplicação da lei de talião no art. 11 da sua Tábua Sétima: “Se alguém fere a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”[12]. Como se depreende da leitura desse artigo, a efetivação de um acordo entre as partes era uma possível saída à aplicação do princípio de talião, o que gerava um estímulo à composição, em busca de se evitar a desnecessária aplicação igualitária da violência sancionatória.[13]
Com efeito, até mesmo no Alcorão, revelado, para os que creem, por Alá ao profeta Maomé cerca de 600 anos depois de Cristo, livro onde se vislumbra o valor da generosidade como desígnio essencial do homem, admitia-se a pena de talião, como se nota na seguinte passagem: “art. 5:45. Vida por vida, olho por olho, nariz por nariz, orelha por orelha, dente por dente, chaga por chaga”.[14] Durante a Antiguidade, portanto, seja nos diplomas religiosos, seja no Código de Hamurabi, seja nas leis romanas, estruturavam-se os sistemas penais sobre modelos punitivos vingativos e retributivos, aplicando-se as penalidades então existentes de forma violenta e atingindo-se, em regra, o próprio corpo do condenado.
2 A PENA NA IDADE MÉDIA
Analisando-se a história da pena no período medieval, observa-se, de início, a grande influência da doutrina cristã sobre o Direito, o qual, não seria muito dizer, confundia-se, muitas vezes, com a própria religião, havendo inclusive certa confusão entre os conceitos de crime e de pecado; nasceu, nesse período, a temida Inquisição, então responsável pela aplicação da Justiça Divina.[15] De fato, a punição criminal, na Europa, sempre guardou muitas semelhanças com a punição moral advinda da religião cristã, tendo o vocábulo “penitenciária”, lugar onde atualmente se encontram os criminosos condenados, surgido do Direito Canônico, no qual havia, e ainda há, o termo “penitência”, como referência à reprovação do indivíduo pela prática de atos considerados pecaminosos ou impuros e à sua consequente ou, ao menos almejável, recuperação por meio da dor ou da meditação.[16]
Explicando a importância e a influência da Igreja no Direito Penal, Cezar Roberto Bitencourt relembra que “essas noções de arrependimento, meditação, aceitação íntima da própria culpa são ideias que se encontram intimamente vinculadas ao direito canônico ou a conceitos que provieram do Antigo e do Novo Testamento”[17]. Nesse momento da história da humanidade, já se podia visualizar que a pena possuía duas finalidades bem específicas, a primeira era castigar, e, para tanto, a dor seria a maneira mais eficaz de maximizar o castigo; a segunda finalidade, existente pelo menos nas recém-criadas prisões eclesiásticas, era buscar, com a prisão, mediante a meditação acerca da culpa, o arrependimento do pecador.[18]
Por meio da influência canônica, portanto, passava-se a considerar que a sanção serviria não apenas para punir o infrator em razão da necessidade de reprovação ao ato praticado, mas também para tentar resgatá-lo do caminho tortuoso e pecaminoso, trazendo-o de volta ao seio comunitário. Essa segunda finalidade, todavia, não era percebida ainda de forma relevante no Direito Secular e nas prisões comuns, sendo característica evidente apenas das prisões eclesiásticas.[19]
De fato, o modelo punitivo comum fundava seus mais profundos alicerces sobre outra finalidade, o medo coletivo, almejando fazer que as pessoas se sentissem intimidadas com as punições empregadas aos violadores da lei e, em razão disso, evitassem cometer novas infrações.[20] Para atingir tal objetivo, as punições, aplicadas em forma de execuções, torturas, difamações e mutilações, ocorriam, muitas vezes, em praças públicas, como grandes atrações culturais da época, fazendo o povo se deleitar com o sofrimento alheio.[21] Acerca do tema, Garrido Guzmán relembra que os criminosos eram “submetidos aos mais terríveis tormentos exigidos por um povo ávido de distrações bárbaras e sangrentas”[22]. Detalhando os tipos de punições executadas em forma de espetáculo, o citado escritor assevera:
A amputação de braços, pernas, olhos, língua, mutilações diversas, queima de carne a fogo, e a morte, em suas mais variadas formas, constituem o espetáculo favorito das multidões desse período histórico.[23]
Acerca do tema, não sem razão, Luigi Ferrajoli anuncia:
A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e, às vezes, impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um.[24]
Até então, portanto, como fruto do pensamento punitivo vigente ao tempo de Hamurabi, dos Hebreus, de Roma, do Alcorão e da Idade Média, o Direito Penal esteve insculpido de requintes de rigor e de crueldade, tendo, desde os seus primórdios, tratado as punições de forma dura, intimidatória, vingativa e humilhante. De fato, como bem relatou Altavila, “o crime e a pena estavam comprimidos entre as folhas do direito hebreu; das leis atenienses; do código hamurábico; nas leis religiosas, morais e civis de Manu; no código tabulário de Roma; no Alcorão; na legislação medieval”[25], sendo a retributividade e o medo coletivo os estandartes máximos do sistema punitivo.
3 A PENA NA IDADE MODERNA E NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO PARA A IDADE CONTEMPORÂNEA
Com o fim da Idade Média e início da Idade Moderna, durante os séculos XVI e XVII, a pobreza continuou a se alastrar por toda a Europa, o que acentuou ainda mais a crise econômica e social já existente e aumentou a massa de marginalizados que perturbava o velho continente, sendo então contra eles utilizados pelos Estados todos os meios e formas de repressão social e institucional possíveis; todos, ressalte-se, sem real sucesso.[26] Descrevendo o clima político e social dessa etapa da Idade Moderna, Leite Pedrosa assevera que “os abusos contra os direitos individuais, não reconhecidos sequer formalmente, ignoravam limites”[27], mantendo-se, em grande parte, a violência, a crueldade e a intimidação coletiva dos períodos anteriores.
Nesse contexto, passou a ideia de recuperação do culpado, apesar da persistente crueldade punitiva, a migrar, ainda que bem timidamente, do sistema eclesiástico para as prisões comuns, sendo certo que, já “na segunda metade do século XVI, iniciou-se um movimento de grande transcendência no desenvolvimento das penas privativas de liberdade, na criação e construção de prisões organizadas para a correção dos apenados”[28]. Criaram-se, então, as houses of correction, na Inglaterra, e, em Amsterdam, as rasphuis, casas de correção para homens, e as spinhis, casas de correção para mulheres, todas voltadas para finalidades de recuperação do infrator, finalidade esta que seria ainda impulsionada pelo desenvolvimento do capitalismo então nascente, o qual encontrou, dentro dessas prisões, mão-de-obra barata para fomentar a produção e, consequentemente, potencializar suas incursões econômicas no novo cenário mundial.[29]
Apesar desse movimento, muito se demorou para que se observasse um progresso mais efetivo no tradicional sistema penal, imperando ainda o terror. Efetivamente, apenas com o Renascimento e, posteriormente, com o advento das ideias iluministas, é que passaram a ecoar os primeiros importantes questionamentos acerca da forma pela qual eram aplicadas as penalidades aos indivíduos infratores, iniciando-se enfim uma busca pela humanização do trato punitivo.[30]
Nesse contexto, Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, influenciado pelas ideias contratualistas de Rousseau e pelos ideais utilitaristas de seu tempo, lutou contra a selvageria punitiva ainda medieval que, mesmo com o passar do tempo, persistia em assolar a Europa.[31] Com a sua obra “Dei delitti e dele pene”, de 1764, o marquês revolucionou a compreensão acerca do sistema penal vigente à sua época, criando as bases do que se pode hodiernamente chamar de Direito Penal. De fato, logo no início de sua obra, no capítulo III, Beccaria reorientou a ciência penal, estatuindo o princípio da legalidade das penas como um de seus baldrames, de modo a limitar o poder punitivo do Estado aos contornos sancionatórios previamente estabelecidos, na lei, pela sociedade:
A primeira consequência desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.[32]
Para o marquês, destarte, somente as leis, elaboradas pelo povo por meio de seus representantes, podem determinar as penas de cada delito, não se podendo, com base no contrato social, justificar a inflição aos indivíduos de penas que não estejam estatuídas na legislação, já que, nesse caso, estar-se-ia a mercê do arbítrio do juiz, que é o membro da sociedade responsável por escolher e por aplicar a punição. De fato, ao renunciar à liberdade absoluta da vida em estado de selvageria, na guerra de todos contra todos, em nome da convivência em sociedade, em estado de paz, o Homem adere aos termos do contrato social, não outorgando ao Estado mais direitos sobre si próprio que aqueles estritamente definidos na legislação. A norma penal, nesse contexto, passa a se tornar o limite máximo da punição aplicável pelo Estado aos transgressores da lei.
Ademais de tanto, como ensina Cezar Roberto Bitencourt, Cesare Bonesana procurou ainda utilizar a pena de maneira eficaz, pensando em torná-la um exemplo para o futuro do indivíduo e da sociedade, e não uma simples vingança ou retribuição pelos acontecimentos passados; sua visão utilitarista, nesse sentido, se mostraria importante marca da revolução de pensamento de sua época, pois a utilidade da pena não se subordinaria mais a uma concepção abstrata de justiça, devendo, ao contrário, a concepção abstrata de justiça se subordinar à utilidade da pena.[33] Sobre o tema, observem-se as palavras do marquês no capítulo XV de sua obra:
Das simples considerações das verdades até aqui expostas resulta a evidência de que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido. Como pode um corpo político, que, longe de se entregar às paixões, deve ocupar-se exclusivamente com pôr um freio nos particulares, exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já cometida? Não. Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime.[34]
Para o marquês, portanto, ao se revelar incapaz de desfazer a ação criminosa já perpetrada, a pena deveria ser concebida e empregada de maneira socialmente útil e eficaz, tendo por finalidades fomentar, na população, sentimentos que os afastassem do caminho da criminalidade, e evitar que o transgressor voltasse a agredir a sociedade. Nesse contexto, ao reconhecer a inutilidade social de uma sanção meramente retributiva, Beccaria buscou afastar o valor da vingança da justificação do exercício do poder punitivo pelo Estado, desautorizando a aplicação de qualquer pena que não fosse orientada para a proteção futura da própria sociedade.
Além disso, constata-se que, já naquela época, Beccaria deu início à introdução da proporcionalidade, com semelhanças à forma como hoje se conhece tal princípio, na composição material da pena, tendo o nobre escritor asseverado que, “entre as penas, e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois, escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado”[35]. De fato, ao impor a observância da “impressão mais eficaz e mais durável” a serem causadas na população, Cesare Bonesana resguardou a parcela da proporcionalidade denominada de “adequação”, exigindo que a punição fosse capaz de atingir seus objetivos da maneira mais eficaz; d’outro lado, ao exigir, de forma concomitante, que se aplicasse a punição “menos cruel no corpo do culpado”, resguardou o marquês também a parcela da proporcionalidade denominada de “necessidade”, balizando, tanto quanto possível para os padrões da época, os interesses punitivos sociais e a proteção física do indivíduo.
Nesse contexto, Beccaria buscou reduzir os excessos de crueldade e de truculência então utilizados nas punições criminais, demonstrando não apenas a inutilidade social dos requintes de crueldade da pena, mas também afirmando ser a normalização das atrocidades e da brutalidade estatal contraproducente no atingimento da finalidade de redução da violência e da criminalidade:
À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão.[36]
Com efeito, ao tornar comuns e frequentes as atrocidades punitivas, o Estado terminava por transformar a crueldade em um componente normal, e até mesmo natural, de sua sociedade, a qual, psicologicamente, passava a se adequar aos níveis de brutalidade contemplados, ampliando, assim, a sua margem de tolerância frente à violência. Segundo Beccaria, criava-se, desse modo, um ambiente negativo e contraproducente em relação ao alcance do objetivo político de redução da criminalidade, devendo-se iniciar um processo de moderação e de humanização das penas. Conforme o marquês, “para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime”[37], sendo desnecessária a espetacularização sanguinária das punições criminais.
Cesare Bonesana, portanto, com a sua obra “Dei delitti e dele pene”, de 1764, terminou por inserir, no sistema penal, as sementes de uma noção de proporcionalidade, de legalidade, de igualdade e, principalmente, de moderação das penas, conferindo ao sistema punitivo mais humanidade e privilegiando, sempre que possível, devido a sua nítida influência utilitarista, a recuperação do infrator e o seu consequente retorno à sociedade.[38]
CONCLUSÃO
Reconhecendo-se a importância do estudo da pena na compreensão do desenvolvimento social da humanidade, realizou-se, no presente artigo, uma investigação bibliográfica acerca de sua evolução histórica. Inicialmente, analisaram-se as circunstâncias de definição e de aplicação das penas no período histórico da Antiguidade, tendo sido constatada a existência de noções de pena e de punição nos textos escritos mais antigos da humanidade, dentre os quais se destacaram o Código de Hamurabi[39], a Bíblia Sagrada dos cristãos[40], a Lei das XII Tábuas de Roma[41] e o Alcorão, documentos nos quais se vislumbrou os baldrames de retributividade punitiva oriunda da Lei de Talião.[42]
Analisando-se as punições previstas e aplicadas durante esse período histórico, observou-se a opção por um modelo de punição fundado no valor da vingança e da retributividade[43], inexistindo maiores preocupações em se validar racionalmente o exercício do poder punitivo com base em critérios de reinclusão do infrator no seio social. De fato, somente no período medieval, percebeu-se, ao menos em relação às punições de ordem moral impostas pela Igreja Católica, uma referência à tentativa de recuperação ou de resgate, por meio da dor ou da meditação, do violador das leis religiosas, ou seja, do pecador.[44]
D’outro modo, ainda na análise relativa à Idade Média, percebeu-se que o sistema punitivo comum se pautava pelo medo coletivo, ambicionando intimidar os cidadãos a não cometerem infrações por meio da espetacularização pública e sanguinária das punições impostas aos delinquentes.[45] Como visto, para atingir tal objetivo, admitiu-se a aplicação de punições com os mais variados requintes de crueldade, sendo comum que execuções violentas, mutilações e torturas físicas e morais ocorressem a céu aberto, em praças públicas, como grandes atrações culturais da época.[46] Com efeito, somente durante a Modernidade, passou a ideia de recuperação do infrator a migrar, ainda que de forma sutil, do sistema eclesiástico para o sistema punitivo comum, mantendo-se, todavia, o modelo de crueldade e de rigor punitivo até então instalados.[47]
Finalmente, averiguou-se a evolução da pena no período de transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, destacando-se o pensamento de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, que, pautado por ideais iluministas e contratualistas, passou a questionar a forma pela qual eram aplicadas as penalidades aos indivíduos infratores, dando início à humanização do sistema punitivo.[48] De fato, pela análise de sua obra, “Dei delitti e dele pene”, de 1764, constatou-se uma contraposição à selvageria punitiva então vigente, tendo o nobre escritor estatuído o princípio da legalidade das penas como um baldrame do Direito Penal, de modo a, com base no Princípio Democrático, restringir o poder punitivo do Estado aos limites da lei.[49]
Das lições de Cezar Roberto Bitencourt, notou-se ainda que Beccaria procurou empregar a pena de maneira socialmente utilitária e eficaz, pautando-a por finalidades relativas à proteção futura da sociedade, de modo a buscar a não repetição do crime pelo infrator e de modo a buscar fazer que a população se desviasse do caminho da criminalidade, rechaçando a vingança e a mera retributividade como justificativas racionais para o exercício do poder punitivo pelo Estado.[50]
Observou-se ainda que Beccaria deu início à introdução do princípio da proporcionalidade na composição material da pena, buscando reduzir os excessos de crueldade então utilizados no sistema penal, demonstrando não apenas a inutilidade social da espetacularização sanguinária das punições criminais, mas também afirmando ser a normalização das atrocidades e da brutalidade estatal contraproducente no atingimento da finalidade de redução da violência e da criminalidade.[51]
Nesse contexto, pode-se concluir que, ao inserir, no sistema penal, noções básicas de proporcionalidade, de legalidade, de moderação e de utilidade das penas, Cesare de Beccaria provocou uma revolução humanista no sistema punitivo vigente à sua época, criando as bases do que hodiernamente se denomina de Direito Penal, de modo a influenciar as legislações de diversos países, como a do Brasil, que, mesmo após 200 anos, ainda se baseiam nos princípios por ele apregoados.
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[1] GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 126.
[2] GRECO, Rogério. op. cit., p. 125.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão – causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 27.
[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 10.ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 485.
[5] CHARLES F. Horne. The Code of Hammurabi: Introduction. Disponível em: http://www.fordham.edu/halsall/ancient/hamcode.asp, acesso em: 29/03/2019.
[6] VIEIRA, Jair Lot. Código de Hamurabi; Código de Manu, excertos (livros oitavo e nono); Lei das XII Tábuas / (Série Clássicos), São Paulo: Edipro, 3.ed., 2011, p. 31-32.
[7] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 09.
[8] PEDROSA, Ronaldo Leite. Direito em História. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008, p. 81.
[9] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 11.
[10] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 123.
[11] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 123.
[12] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 128.
[13] PEDROSA, op. cit., p. 160.
[14] PEDROSA, op. cit., p. 182-183.
[15] PEREIRA, Marcos A. Beccaria – O precursor do Direito Penal moderno. Coleção pensamento e vida, vol. 5. Ed. Escala, 2011, p. 36-37.
[16] BITENCOURT, op. cit., p. 35.
[17] BITENCOURT, op. cit., p. 35-36.
[18] BITENCOURT, op. cit., p. 35-36.
[19] BITENCOURT, op. cit., p. 36.
[20] TOMAS Y VALIENTE, Francisco. El derecho penal de la monarquía absoluta: siglos xvi, xvii, xviii. Madrid, Ed. Tecnos, 1969, p. 356.
[21] GRECO, Curso.., p. 485.
[22] GUZMÁN, Luis Garrido. Manual de ciencia penitenciaria. Madrid, Edersa, 1983, p.77.
[23] GUZMÁN, op. cit., p.77.
[24] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 310.
[25] ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 6.ed. São Paulo: Ícone, 1995, p. 198.
[26] BITENCOURT, op. cit., p. 37.
[27] PEDROSA, op. cit., p. 240.
[28] BITENCOURT, op. cit., p. 38.
[29] BITENCOURT, op. cit., p. 38-42.
[30] BITENCOURT, op. cit., p. 52-53.
[31] PEREIRA, op. cit., p. 18-24.
[32] BECCARIA, Cesare, marchese di. Dos delitos e das penas. Tradução: Paulo M. Oliveira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 28.
[33] BITENCOURT, op. cit., p. 56.
[34] BECCARIA, op. cit., p. 58-59.
[35] BECCARIA, op. cit., p. 59.
[36] BECCARIA, op. cit., p. 60.
[37] BECCARIA, op. cit., p. 60.
[38] PEREIRA, op. cit., p. 41,42 e 44.
[39] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 31-32.
[40] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 10.ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 485.
[41] VIEIRA, Jair Lot, op. cit., p. 128.
[42] PEDROSA, op. cit., p. 182-183.
[43] CHARLES F. Horne. The Code of Hammurabi: Introduction. Disponível em: http://www.fordham.edu/halsall/ancient/hamcode.asp, acesso em: 29/03/2019.
[44] BITENCOURT, op. cit., p. 35-36.
[45] TOMAS Y VALIENTE, Francisco. El derecho penal de la monarquía absoluta: siglos xvi, xvii, xviii. Madrid, Ed. Tecnos, 1969, p. 356.
[46] GRECO, Curso.., p. 485
[47] BITENCOURT, op. cit., p. 38-42.
[48] BITENCOURT, op. cit., p. 52-53.
[49] BECCARIA, op. cit., p. 28.
[50] BITENCOURT, op. cit., p. 56.
[51] BECCARIA, op. cit., p. 60.
Servidor Público. Atuou como advogado de março de 2013 a junho de 2019. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. Aprovado nos concursos públicos de Promotor de Justiça do estado de Rondônia, de Defensor Público dos estados de Santa Catarina, de Alagoas e do Espirito Santo, de Consultor Legislativo da Câmara Municipal do Recife, de Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, de Analista Processual do Ministério Público do estado do Rio de Janeiro e de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do estado do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRAXEDES, Thiago Castro. A história das penas: da lei de Talião às ideias de Beccaria Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52780/a-historia-das-penas-da-lei-de-taliao-as-ideias-de-beccaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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