RESUMO: O direito de propriedade, nas últimas décadas, tem passado por uma reinterpretação. De uma leitura meramente patrimonial e positivista, do Código Civil de 1916, a uma leitura funcional, equilibrada, própria da Constituição Federal de 1988, onde princípios e regras se conjugam. Trata-se do direito civil constitucional, onde a pessoa humana passa a ser fundamento, alicerce do sistema de direito privado. A nova visão constitucional da propriedade, de modo especial no que diz respeito ao seu aspecto funcional (função social, econômica e ambiental), é o objeto do presente artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Propriedade. Função social, econômica, ambiental.
SUMÁRIO: 1. Evolução do conceito de propriedade. 2. Propriedade como função econômica, social e ambiental. 3. Conclusão. 4. Referências.
1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PROPRIEDADE.
O conceito de propriedade privada, visto como um valor absoluto pelo sistema de direito civil napoleônico, tem evoluído, nas últimas décadas, a um ponto de equilíbrio. Em outras palavras, tem-se relativizado, em prol de interesses superiores ao do individualismo oitocentista (PEREIRA, 2011).
O individualismo do Código Napoleônico justificou-se, à sua época, em contraposição ao Estado intervencionista que sufocava as liberdades individuais; em reação ao sistema de propriedade feudal, no qual a vontade e a liberdade dos indivíduos era relegada em prol do sistema de estamentos. Valia mais o berço do que o mérito, a vontade e a liberdade (GOMES, 2011).
Aristóteles já dizia que a virtude encontra-se no equilíbrio. E neste sentido, tanto a visão individualista da propriedade, quanto a socialista, geram distorções e injustiças.
Faz-se necessário, portanto, uma visão equilibrada do instituto da propriedade.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema jurídico brasileiro evolui de uma visão positivista, legalista, para um sistema mais equilibrado, onde princípios e regras interagem e se complementam. Onde a pessoa humana ocupa uma posição central (FACHIN, 2012).
Em razão disso, o direito civil passa a ser estudado, lido e interpretado sob a ótica constitucional.
Interessante notar a mudança de paradigma nos próprios textos legais.
O Código Civil de Napoleão define a propriedade como o "direito de fruir e dispor das coisas do modo mais absoluto, contanto que não fosse exercido por forma proibida pela lei e regulamentos" (art. 544).
O Código Civil brasileiro de 1916 afirma que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua (art. 524).
Com a Constituição de 1988, há uma grande mudança. Veja-se:
Artigo 5
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Artigo 170
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
(...)
O conceito de propriedade é permeado pela ideia de função. A propriedade passa a ser uma garantia fundamental, pela qual o proprietário tem o poder-dever de usar, fruir e dispor da coisa, nos limites de sua função social, econômica e ambiental, e de reavê-la de quem quer que injustamente a possua.
O abuso do direito de propriedade (usar, fruir e dispor de forma absoluta), não tem cabida no atual sistema civil constitucional.
Neste diapasão, eis o artigo 1228 do Código Civil de 2002, já em consonância com o sistema constitucional:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
(...)
2. PROPRIEDADE COMO FUNÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL.
O direito de propriedade exerce uma função econômica, social e ambiental. São estes os três vetores trazidos pela Constituição Federal.
No que diz respeito à função econômica, a propriedade privada é fundamento da ordem econômica, ao lado da livre iniciativa, livre concorrência, entre outros. Sem propriedade privada, não há economia de mercado que se sustente nos modelos atuais.
No que diz respeito à função social, é necessário que o proprietário adote providências no sentido de dar utilização adequada ao bem.
A Constituição Federal determina que os imóveis urbanos obedeçam ao Plano Diretor para que seja cumprida sua função social. A ideia básica do Plano Diretor é fazer com que os imóveis sejam usados adequadamente. Proíbe-se, portanto, a sua não utilização ou subutilização, bem como a não edificação, sob pena de parcelamento ou edificação compulsórios, imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo, e, como medida drástica, a desapropriação sanção, com pagamento mediante títulos da dívida pública.
Nestes casos, o Poder Municipal notifica formalmente o proprietário, que terá um prazo para regularizar sua propriedade. Esta Notificação deve ser averbada na matrícula do imóvel. Trata-se de uma obrigação propter rem, que acompanha a coisa, independentemente de alienação.
Em relação aos imóveis rurais, a Constituição afirma que sua função social é atendida quando cumpridos os requisitos de aproveitamento racional e adequado do solo; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Em caso de descumprimento, o proprietário será desapropriado (desapropriação-sanção), sendo pago com títulos da dívida agrária.
A terceira função da propriedade é a ambiental. O proprietário tem o dever de zelar pelo meio ambiente, não só de forma a se abster de causar um dano ambiental, mas por meio de uma postura ativa.
A função social da propriedade exige uma postura ativa, e não somente uma obrigação de não fazer. Com a Constituição e o Código Civil, a propriedade passou a ser um poder dever, que vai muito além do mero interesse individual do proprietário. Aqui se insere a proteção ambiental (STIFELMAN, 2013).
A proteção ao meio ambiente impõe diversos deveres ao proprietário, como, por exemplo, estabelecer um percentual mínimo de Reserva Legal no imóvel rural.
Cumpre ressaltar que as obrigações ambientais possuem natureza real, propter rem, ou seja, acompanham a coisa independentemente de quem é o titular do imóvel.
É neste sentido que todo passivo ambiental deve ser averbado na matrícula do imóvel, a fim de que se lhe dê publicidade e para alertar os adquirentes dos eventuais ônus que deverão assumir.
O novo conceito constitucional de propriedade exige uma postura ativa do titular do direito. Trata-se de um direito-poder-dever de usar, fruir e dispor em consonância com sua função social, econômica e ambiental.
É mister lembrar que a aquisição da propriedade pode trazer mais ônus do que vantagens. Há casos de imóveis com passivo ambiental considerável; com obrigação de parcelamento ou edificação compulsórios; IPTU sanção; passivo tributário, condominial, enfim, obrigações propter rem.
Deste modo, faz-se necessário cautela ao adquirir um imóvel, seja por meio gratuito ou oneroso.
Neste sentido, há que se tomar cautela, por exemplo, com o artigo 543 do Código Civil. O dispositivo afirma que se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura. Contudo, ainda que a doação seja pura, o ônus que advém da propriedade pode ser maior que suas vantagens. Há um dano potencial para o absolutamente incapaz.
CONCLUSÃO
O conceito clássico do direito de propriedade tem passado por uma releitura, de modo especial com a Constituição Federal de 1988, de modo que não pode mais ser visto como um valor absoluto. Não pode ser exercido abusivamente. Exige uma atitude ativa do proprietário, que tem o poder-dever de cumprir a função social, econômica e ambiental da propriedade.
No novo sistema constitucional não existem direitos absolutos. O direito civil não pode ser visto sob a ótica unicamente patrimonial e legalista. Todos os direitos estão a serviço da pessoa humana, que é fundamento do sistema jurídico nacional, inclusive do direito privado (TEPEDINO, 2002).
REFERÊNCIAS
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 3º edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
GOMES, Orlando. Significado da Evolução Contemporânea do Direito de Propriedade. In: Doutrinas Essenciais. Obrigações e Contratos. Volume II. Gustavo Tepedino, Luis Edson Fachin, organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
PEREIRA, Altino Portugal Soares. O Direito de Propriedade e o Bem Estar Social. In: Doutrinas Essenciais. Obrigações e Contratos. Volume II. Gustavo Tepedino, Luis Edson Fachin, organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
STIFELMAN, Anelise Grehs. O Registro de Imóveis e a Tutela do Meio Ambiente. In: Doutrinas Essenciais. Direito Registral. Volume II. Ricardo Dip, Sergio Jacomino, organizadores. 2º edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil- Constitucional. 1º edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Pontifícia Regina Apostolorum, Roma, Itália. Bacharel em Direito pela FADISP, São Paulo. Especialista em Humanidades Clássicas pelo Centro de Estudos de Ciências e Humanidades, Salamanca, Espanha. Especialista em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral pela AVM-Faculdade Integrada, Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil e Direito Contratual pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Mestrando em Direito pela FADISP, São Paulo. Auditor-Fiscal do Trabalho até 2016. Atualmente é Registrador de Imóveis na Comarca de Palmeira d'Oeste, São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURTADO, Adriano Lorieri Ribeiro. Concepção do direito de propriedade segundo a Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 abr 2019, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52815/concepcao-do-direito-de-propriedade-segundo-a-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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