RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA
(Orientador)
RESUMO: O infanticídio indígena é uma tradição que consiste no assassinato de crianças recém-nascidas por razões culturais, muitas vezes por deficiência, por ser filho de mãe solteira ou fruto de relação extraconjugal, ainda praticado nos dias atuais por algumas tribos brasileiras. O objetivo deste trabalho é analisar tal prática, os motivos que levam à sua execução e o posicionamento do Estado frente a esses acontecimentos, que até o momento se mantém inerte para não desrespeitar a cultura indígena, ao passo que o direito à vida é desrespeitado, levando à busca de soluções que possam respeitar tanto o direito à vida quanto a diversidade cultural, sem que nenhum seja suprimido, tendo em mente as teorias do Universalismo e Relativismo cultural. Para tal, será abordado o impacto da positivação dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, e de tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos, analisando também periódicos e decisão de tribunais superiores.
PALAVRAS-CHAVE: infanticídio indígena, diversidade cultural, direito a vida
ABSTRACT: Indigenous infanticide is a tradition that consists in murdering newborns by cultural reasons, often for deficiency, being the son of a single mother or the fruit of an extramarital relationship, still practiced currently by some Brazilian tribes. The objective of this study is to analyze the practice, the reasons that lead to its execution and the position of the State in the face of these events, which stays inactive to avoid disrespect the indigenous culture, while the right to life is disrespected, leading to the search for solutions that can respect both the right to life and cultural diversity, with none being suppressed, bearing in mind the theories of Cultural Relativism and Universalism. To this end, the impact of the affirmation of Human Rights in the Federal Constitution of 1988, and the international treaties and practices on Human Rights, will be discussed, as well as the periodicals and the decision of higher courts.
Key Words: indigenous infanticide, cultural diversity, right to life
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Metodologia – 3. Resultados de Pesquisa: 3.1 Relativismo e Universalismo Cultural: 3.1.1 Relativismo Cultural; 3.1.2 Universalismo Cultural; 3.1.3 Universalismo x Relativismo – 3.2 Dos Direitos Culturais e Diversidade Cultural – 3.3 Posicionamento do Estado brasileiro frente ao Infanticídio Indígena – 3.4 Conflito entre Direito a Cultura e Direito a Vida: 3.4.1 Princípio da Proporcionalidade; 3.4.2 Da Ponderação; 3.4.3 Posicionamento do STJ; 3.4.4 Da Solução – 4. Conclusão – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Direito é a possibilidade de executar condutas, de possuir coisas, usá-las, poder exigir, dispor, adentrar locais, e não sofrer nenhuma constrição do que é resguardado ao seu detentor. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais por sua vez, são direitos inerentes ao homem pelo fato de ser humano, são direitos universais, que independem de discriminação, e, visam, justamente, acabar com as diferenças entre os homens, além de lhes garantir um mínimo necessário para uma vida digna.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco divisório na legislação brasileira, trazendo consigo um vasto acervo de Direitos Fundamentais, cuja responsabilidade de proteger é do Estado, como a figura garantidora de tais direitos. Contudo, é uma tarefa árdua, pois grandes conflitos surgem entre os direitos, que acabam se colidindo em uma tentativa de conciliação. É o que ocorre no caso do Infanticídio indígena, tradição antiga que existe antes mesmo de os portugueses chegarem ao Brasil e consiste no assassinato de crianças recém-nascidas por motivos culturais. Apesar de antigo, ainda é praticado por algumas tribos nos dias de hoje, o que resulta colisão entre o Direito a vida e o direito a diversidade cultural, ambos constitucionalmente resguardados, levando a um questionamento sobre limites, de até que ponto se deveria respeitar um direito que desrespeita outro de tamanha proporção.
2. METODOLOGIA
Neste trabalho serão utilizados métodos de análise literária, análise de legislação, de entendimento dos tribunais superiores, periódicos, matéria jornalística e demais materiais bibliográficos.
A princípio será feita uma conceituação e análise sobre o delito de infanticídio tipificado no Código Penal, passando a uma análise do infanticídio indígena específico como prática cultural tradicional de algumas tribos e de suas características.
Para desenvolver o estudo, será feita conceituação e análise dos Direitos Humanos e comparação entre as teorias do relativismo e universalismo cultural.
O ponto chave deste trabalho é a dicotomia entre o direito à vida e o direito à cultura, que se colidem com a pratica tradicional do infanticídio indígena por algumas tribos, devendo assim, ser realizada uma análise da diversidade cultural, das teorias da proporcionalidade e ponderação, e dos direitos humanos e seus dispositivos legais internos, bem como as convenções e tratados de que o Brasil é signatário, de modo a validar a metodologia de pesquisa utilizada.
3. RESULTADOS DE PESQUISA
A palavra Infanticídio se origina do latim, infanticidium, que significa morte de criança. Tipificado no artigo 123 do Código Penal, trata-se de crime bipróprio, por requerer que tanto o sujeito ativo quanto o passivo sejam próprios, no caso em questão o sujeito ativo deve ser a mãe que mata o próprio filho (sujeito passivo), sob a influência do estado puerperal (condição psíquica, momento de desequilíbrio fisiopsicológico ocasionado pelo parto) durante o parto ou logo após (circunstância temporal exigida, pois se cometido antes do parto configura-se crime de aborto, e muito tempo após o parto, crime de homicídio).
Tendo em vista a exposição das características do infanticídio comum retratado no Código Penal, faz-se necessário ressaltar as expressivas diferenças entre este, e o infanticídio indígena.
Ao analisar num contexto geral, aparentam ser práticas semelhantes, à primeira vista, porém ao analisar as diferenças, deve-se prestar atenção ao motivo que leva à prática do delito, sendo que no infanticídio comum, é o desequilíbrio psíquico da mãe que a leva a cometer o crime, e já no infanticídio indígena, tira-se a vida da criança por razões culturais, como por exemplo quando o bebê é fruto de relação extraconjugal ou incestuosa, quando é filho de mãe solteira e por razões de deficiências físicas ou mentais.
Apesar de o infanticídio ser uma tradição muito antiga, e já ter sido abolido em muitas tribos, ainda é praticado nos dias atuais, em pelo menos 13 etnias do Brasil, sendo Caracaraí, uma cidade no interior de Roraima com 19 mil habitantes, considerada a cidade mais violenta do Brasil. (FANTÁSTICO, 2014)
Segundo o último Mapa da Violência, do Ministério da Justiça, em um ano, 42 pessoas foram assassinadas lá, sendo 37 índios, todos recém-nascidos vítimas da prática de infanticídio indígena, mortos pelas próprias mães. (FANTÁSTICO, 2014)
O motivo que ocasiona um choque tão grande, quando o assunto em questão é o infanticídio indígena, é o conflito, entre dois direitos de grande importância protegidos pela Constituição Federal, o direito à vida, e o direito à cultura.
É extrema a dificuldade que possui o ser humano em ter conhecimento, aceitar, que crianças sejam assassinadas pelo fato de se respeitar uma cultura, um modo de viver de uma tribo. Tal situação é muito comum nos dias de hoje, não só no caso em questão, mas também quando outros direitos estão em conflitos, e esse fato se dá muito em razão das diferentes culturas, Aquino & Zambam (2016) afirmam que “conviver com concepções de mundo divergentes e por vezes contraditórias, assim como com as suas respectivas práticas, são alguns dos desafios e compromissos da nossa época”.
Respeitar o direito à cultura dos povos indígenas, e não agir diante de tal ato ocasiona brutal desrespeito a um dos direitos mais importantes, se não o mais importante: o direito à vida.
Contudo, para os indígenas, por serem povos autônomos, afastados da sociedade, seria um enorme desrespeito impedi-los de viver como eles são acostumados, seguindo sua própria doutrina, suas regras, seus próprios costumes que são adotados por eles a tantos anos.
Diante a enorme indignação de alguns, surge o questionamento: até que ponto deve-se respeitar um direito que suprime outro?
Existe direito constitucional mais importante? O direito à cultura é mais importante que o direito à vida? E vice-versa?
3.1. RELATIVISMO E UNIVERSALISMO CULTURAL
Após 1945, as convenções internacionais passaram a compor um rol imenso de fontes de internacionalização dos direitos humanos, que se subdivide em: sistema global, gerenciado pela ONU e com documentos de alcance mundial, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; e sistema regional, com alcance menor, atingindo apenas determinadas regiões ou continentes, como por exemplo o sistema americano, europeu e o africano. (MORAIS, 2012)
Com a adoção dessa metodologia, que visa tutelar os direitos humanos, este, se torna interesse internacional, não restringindo sua proteção ao paradigma de cada Estado, pois a violação de tais direitos passa a ser uma questão que afeta toda a comunidade internacional. (MORAIS, 2012)
Assim surge um debate acerca do alcance da tutela dos direitos humanos, que busca um meio de compatibilizar essa ideia de universalidade dos direitos humanos em um país com tamanha diversidade cultural. (MORAIS, 2012)
3.1.1. RELATIVISMO CULTURAL
Para os adeptos do relativismo cultural, o enfoque é em manter as diferentes características culturais, exigindo respeito à diferença, à diversidade e identidades culturais. Para eles, cada cultura é única e deve manter sua essência, podendo as tradições serem praticadas livremente, resguardando proteção e respeito a cada uma delas. (MORAIS, 2012)
Percebe-se que, para os relativistas, não há a possibilidade de se estabelecer um padrão universal de direitos, pois acreditam que há, não só diversidade cultural, como também diversos sistemas morais, restando impossível estabelecer princípios morais universalizados, desconsiderando assim, um núcleo de direitos que pertencem ao homem pelo simples fato de ser humano e, não acatando qualquer padronização, pois seria incompatível com a pluralidade de cultura dos povos.
Há muitas críticas acerca da teoria relativista, pois essa necessidade de respeito de cada cultura impediria um diálogo entre outras culturas, não no sentido de tentar impor a sua cultura a outros povos, mas sim um diálogo intercultural que possibilitaria condições de se aplicar certa universalidade de alguns direitos.
3.1.2. UNIVERSALISMO CULTURAL
Surgiu no período pós-guerra, após 1945, com o sistema de internacionalização dos direitos humanos, como supracitado, sendo a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 a principal implantadora de universalidade de direitos, juntamente com a Declaração de Direitos Humanos de Viena, que, posteriormente, em 1993, surgiu para reafirmar a ideia de resguardar a dignidade da pessoa humana a todos os homens, como um valor universal inerente a todos, legitimando a ideia de indivisibilidade dos Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, adotada pelo Brasil, não é tecnicamente um tratado, pois não se sujeitou a procedimento de elaboração de tratados nos planos internacional e interno, sendo considerada uma mera recomendação, adotada pela Resolução nº 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, em 10 de dezembro de 1948. Seu intuito foi o de trazer uma nova interpretação das expressões “Direitos Humanos” e “Liberdades Fundamentais”, sendo tida por alguns como um código ético universal de direitos humanos que impactou as relações internacionais no mundo contemporâneo, introduzindo novos parâmetros aos Estados. Apesar de ser uma recomendação, seu impacto foi tanto que acabou sendo considerada uma norma de Jus Cogens, imperativa ao direito internacional, não tendo sido contestada nem mesmo pelos Estados com histórico de maior violação a Direitos Humanos e, assim deu causa à internacionalização dos direitos humanos, pois trouxe a concepção dos direitos humanos como unidade indivisível e universal.
Já no que tange à Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, apesar de causar um grande efeito internacional no âmbito dos Direitos Humanos com sua ideia de globalização da dignidade humana, não passou por nenhum processo de incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, possuindo efeito apenas no plano internacional, pois não há diploma normativo interno que a positive.
Vem então o Universalismo Cultural, com o intuito de padronizar os direitos humanos, sendo a primeira globalização social, atingindo a todos igualmente conforme a condição humana do homem, pois os direitos humanos possuem eficácia irradiante, tendo em vista que sua força e efeitos se irradiam para todas as esferas, devendo ser respeitados sem distinções.
Com a universalização, visa-se a tutela do indivíduo pelo simples fato de ser humano, independentemente de sua cultura. Portanto, qualquer que seja o contexto em que se encontra o homem, lhe é atribuído e garantido um conjunto de prerrogativas que lhe alcançará sem se valer de suas condições singulares.
3.1.3. UNIVERSALISMO X RELATIVISMO
Há de se observar que entre duas teorias tão antagônicas entre si resultaria um grande entrave. Quase que sempre, os adeptos de uma ideia atacam a outra em determinados pontos, havendo debates, buscando sempre se provar a superioridade de uma em relação à outra e, chegando a lugar nenhum.
Conforme afirma Morais (MORAIS, 2012):
O processo de internacionalização dos Direitos Humanos teve o mérito de deslocar a natureza jurídica dos indivíduos de objeto para sujeito de Direito Internacional. O que em si, é algo bastante positivo, já que a proteção da dignidade da pessoa humana passou a ocupar papel de destaque perante a Sociedade Internacional.
Desviando a atenção do debate entre o universalismo e o relativismo cultural e, atentando-se ao que realmente importa, resta falar desse processo de internacionalização dos Direitos Humanos, que abrangeu a proteção a tais direitos, pois eventual violação poderia causar uma responsabilização internacional do Estado brasileiro. Porém, o Brasil segue inerte frente ao ocorrido, pois “estabelecer um padrão que deva ser respeitado por todos é algo irreconciliável, dada a pluralidade cultural existente.” (MORAIS, 2012)
3.2. DOS DIREITOS CULTURAIS E DIVERSIDADE CULTURAL
A diversidade cultural é uma grande característica do Brasil, um país conhecido pela miscigenação, que tem presente essa mistura de etnias, culturas, valores e tradições, conhecida como multiculturalismo.
A prática do infanticídio indígena é pautada na tradição de algumas tribos do país, que acreditam estar exercendo seu direito à cultura, que é reconhecido, dada a inércia do Estado em relação ao caso. Segundo Aquino & Zambam (2016):
A busca pelo reconhecimento dos direitos das culturas precisa ser pautada pela tolerância, porque, sabendo da sua destacada importância moral, tem condições para orientar, educar e sancionar soluções que visem congregar e equalizar problemas ou divergências no interior de sociedades formadas pela diversidade de culturas e concepções.
No Brasil, a primeira garantia de Direitos Culturais veio com a Constituição Federal de 1988, porém, em âmbito internacional, tais garantias já existem a um bom tempo.
Com o sistema de internacionalização dos direitos humanos, tem-se claramente o direito à cultura resguardado em âmbito internacional, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo 22 diz que toda pessoa tem assegurado seus direitos culturais, sendo estes indispensáveis à sua dignidade.
Surge em 1966, o PIDESC, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, tutelando a diversidade cultural e seu pleno exercício, por meio de seus Estados signatários, que tem dever de garantir tais direitos aos seus cidadãos.
Há também que se falar da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, que preconiza os princípios da diversidade cultural.
3.3. POSICIONAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE AO INFANTICIDIO INDÍGENA
Neste ponto, faz-se necessário uma análise do posicionamento do Estado brasileiro frente ao infanticídio indígena, que até então, tem se demonstrado omissivo em relação à pratica cultural em relato.
O principal órgão indigenista no Brasil, responsável por proteger e promover os direitos indígenas, é o FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que também tem se permanecido inerte, frente aos casos de infanticídio indígena cometidos em território nacional.
Essa inércia do Estado brasileiro é motivada, principalmente, pelas várias legislações de direitos culturais, que resguardam o direito à cultura, principalmente a povos autônomos como as tribos indígenas, sendo o caso, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, já citada anteriormente, e da Convenção 169 da OIT, que resguarda proteção da cultura dos índios, lhes garantindo grande autonomia logo em seu preâmbulo, onde reconhece que os povos indígenas devem “manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”. (BRASIL, 2004)
Como é de notório conhecimento, quando o Brasil ratifica um tratado internacional sobre direitos humanos, este, passa a ter força de Lei Ordinária, possuindo hierarquia supralegal se aprovado pelo rito ordinário e, caso se sujeite ao procedimento das Propostas de Emenda à Constituição, sendo aprovado em dois turnos, em ambas as casas do Congresso Nacional por 3/5 dos membros, possuirá equivalência às Emendas Constitucionais. Em ambos os casos, o tratado irá aderir grande força no ordenamento interno e, ao ser signatário, o Brasil deve se precaver para não ser responsabilizado internacionalmente com eventual violação.
Além do plano internacional, faz-se necessária uma atenção ao plano interno, deparando-se com uma conduta omissiva adotada pelo governo, de extrema incoerência, pois além do direito à vida, constitucionalmente resguardado em diversos dispositivos, não só no artigo 5º, caput, como também quando garante a dignidade da pessoa humana e quando proíbe a pena de morte, há também, por exemplo, a penalização do aborto no Código Penal e, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que como o próprio nome diz, tutela os direitos da criança e do adolescente e, em seu texto legal, não se encontra menção que se refira à existência de distinção entre crianças indígenas ou não indígenas. (SEREGATTE & SILVA, 2017)
Tendo em vista os diversos dispositivos que repelem a finalização dolosa da vida, há que se indagar a incoerência da inércia do Estado frente à pratica do infanticídio indígena.
Portanto, o governo deve olhar além de uma obrigação contida nos tratados internacionais e, adotar medidas para solucionar o problema, diminuindo cada vez mais essa prática, buscando sempre um equilíbrio entre o respeito à diversidade cultural e a tutela do direito à vida, evitando que mais mortes de crianças inocentes ocorram ao passo que, não desrespeitem a cultura desses povos.
Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei da Câmara 119 de 2015, ou Lei Muwaji (LIMA, 2015), que cria medidas para prevenir a ocorrência de mais casos de infanticídio indígena no país, porém, o referido projeto ainda está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
Alguns pontos sobre a Lei Muwaji devem ser levados em conta. Dentre os programas que visa instituir, a Lei Muwaji propõe a implantação de programas que protejam recém-nascidos, crianças e adolescentes rejeitados pela família ou tribo, como por exemplo retirar as gestantes da tribo e acompanha-las durante a gestação quando verificado que o bebê corre risco e desde que a mãe concorde, ou até mesmo retirar o próprio bebê do convívio do grupo, temporariamente, devolvendo após cessados os riscos.
Vale ressaltar também, que a Lei dispõe sobre uma forma de delação aos cidadãos do convívio que tenham ciência de situações que possam ferir a integridade de gestantes e bebês do grupo, devendo denunciar os atos que gerarem riscos.
Para os propositores e defensores do projeto de lei, trata-se de medida necessária e com boas intenções, porém, é considerado discriminatório por muitas tribos, que o consideram preconceituoso e de mal retratação dos povos indígenas.
3.4. CONFLITO ENTRE DIREITO A CULTURA E DIREITO A VIDA
Conforme visto anteriormente, apesar do projeto de lei proposto em 2015, o Estado de forma geral adota uma postura omissiva em relação ao acontecimento do infanticídio indígena no Brasil por motivos culturais.
Para sair dessa omissão, medidas devem ser adotadas e, para tanto, devem ser postos em análise o direito à vida e o direito à cultura, que são o conflito principal no tema em questão, restando saber, como respeitar ambos, visto que não há direito fundamental mais importante que o outro, buscando uma solução que acabe por respeitar ambos.
Percebe-se que, vários dispositivos resguardam os direitos aqui tratados, como por exemplo a atual Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), que em seu artigo 231 discorre sobre os direitos dos índios e seus costumes e tradições:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
No outro polo desse entrave, no que tange ao direito à vida, tem positivado na Constituição Federal (BRASIL, 1988), logo em seu artigo 1°, inciso III, instituído como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e, mais a frente, em seu art. 5º, caput, a garantia aos brasileiros e estrangeiros, à inviolabilidade de direito à vida, à liberdade e à igualdade. Ao garantir esses direitos humanos fundamentais, a Constituição Federal não estabeleceu exceção em sua aplicabilidade, ou seja, não há hipótese em que o Direito à Vida possa ser ignorado, deixado de lado por quem quer que seja.
Esses conflitos entre direitos fundamentais, surgem em razão de oposições de um princípio em relação ao outro.
Faz-se importante lembrar que, os direitos fundamentais não possuem natureza absoluta, restando que não existe prevalência de um sobre o outro.
É claro que, o direito à diversidade cultural é constitucional e de igual valor ao direito à vida e, portanto, não podem ser desrespeitados os costumes e tradições das tribos indígenas brasileiras, que são povos que possuem sua própria organização e, devem ser protegidos igual aos outros brasileiros, independentemente de suas diferenças culturais. Porém, é passivo o entendimento de que, o infanticídio é extremo desrespeitador do direito à vida, quanto a isso não há o que se questionar.
Como já dito anteriormente, o grande enigma é como solucionar o problema sem desrespeitar ambos os lados da moeda. Quais medidas adotar, quais soluções plausíveis, que respeitem o direito à vida e, ao mesmo tempo, não seja discriminatória a nenhuma cultura existente.
Independente das medidas que forem adotadas para solucionar o conflito, sempre haverá colisões de alguns valores, pois as circunstâncias que envolvem essa dicotomia são de complexa solução.
3.4.1. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Também chamado de limite dos limites e, não devendo ser erroneamente confundido com o princípio da razoabilidade e nem com o da vedação ao excesso, trata-se pois, em razão do caráter não absoluto dos direitos fundamentais, de instrumento indispensável para conferir legitimidade a leis e atos administrativos que restringem direitos fundamentais, operacionalizando o método de ponderação entre os princípios alvo de colisão.
Tal ponderação deve se dar sempre de acordo com o caso concreto em questão, e é feita devido ao caráter principiológico dos direitos fundamentais, conforme ensina Alexy (2006, p. 117-118) "o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos”.
Atualmente no Brasil, tal princípio possui uma alta aplicação pelo judiciário no viés de garantir a efetividade de direitos fundamentais constitucionalmente resguardados.
Quando se diz em princípio da proporcionalidade, como método da ponderação, exige-se aquele uma análise profunda dos pontos positivos e negativos de determinada medida, sempre se atendo ao questionamento da proporção do benefício alcançado, e se este é maior do que o direito fundamental que foi sacrificado.
3.4.2. DA PONDERAÇÃO
Operacionalizada pelo princípio da proporcionalidade anteriormente visto, trata-se de método de solução de dicotomia entre princípios.
Veja que, o objetivo de tal método, é solucionar o conflito entre duas normas de mesma hierarquia, fazendo uma prevalecer sobre a outra, sempre de acordo com o caso concreto, a partir de um juízo de ponderação, levando em conta as circunstâncias e peculiaridades da situação, fazendo-se do uso da harmonização entre os princípios em questão, sempre identificando os limites de cada um desses. Segundo Alexy (2006, p. 117) “Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão”.
Vale frisar, quando da aplicação da ponderação, que a sucumbência de um dos princípios em conflito não implica sua supressão, dado seu caráter de mandado de otimização, fazendo com que a prevalência de um princípio sobre outro aplique-se apenas para solucionar o conflito existente.
Essa ideia, além de presente na técnica da ponderação, também pode ser vista positivada na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), que no parágrafo 2º do artigo 5º, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, discorre: “§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Esse parágrafo vem para caracterizar que o artigo 5º é um rol exemplificativo, o que não exclui a possibilidade de outros princípios incidirem em diversos casos mesmo que não presentes no referido artigo e, pode-se fazer também uma interpretação de que, no caso de uma norma se prevalecer sobre outra da mesma hierarquia, não causará a exclusão da sucumbida.
3.4.3. POSICIONAMENTO DO STJ
Na ocasião de conflito, pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 984803 (STJ, 2009, on-line) a solução:
Não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e do aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizada.
Percebe-se que, pelo entendimento do STJ, há uma concordância com o princípio da proporcionalidade e com o método da ponderação no que diz respeito à busca de harmonia, porém, na ponderação uma norma prevalece sobre a outra e, nisso, o STJ guarda total discordância, afirmando que não se pode negar direitos, devendo buscar um equilíbrio em que ambos possam coexistir.
3.4.4. DA SOLUÇÃO
Frente a tantos posicionamentos, fica difícil estabelecer qual seria o método mais correto a ser aplicado em caso de conflito entre direitos fundamentais.
Se levar em conta a ponderação, com a ideia de ter que sacrificar um direito para que outro prevaleça, sempre restará o mesmo questionamento: existe direito fundamental mais importante que outro?
Todavia, se a resposta para a questão anterior for negativa, tem-se a ideia de buscar o equilíbrio, uma solução em que ambos os direitos coexistam em harmonia, o que, para muitos, soa ser o mais adequado. Porém, é também a solução mais difícil, sendo claramente notada a dificuldade se analisarmos que, o infanticídio indígena é uma prática muito antiga e, nenhuma solução concreta foi ainda aplicada.
Entretanto, na situação atual, alguns pensam que no caso de tal prática ainda ocorrer no Brasil e medidas não serem tomadas, nessa inércia do Estado, o direito à cultura está sendo respeitado, porém o direito à vida de muitos recém-nascidos não está.
Sendo assim, devem ser adotadas medidas que, consigam garantir que não ocorram mais danos à vida e, ao mesmo tempo, não desrespeitem o direito à diversidade cultural.
O debate sobre o Direito das Culturas é representativo dos desafios que as sociedades democráticas precisam assimilar neste período histórico. Não se trata, apenas, de afirmar a necessidade de garantir direitos, seja no âmbito jurídico seja nos demais espaços da Sociedade, mas de explicitar a constituição do ‘imaginário’ que compõe a identidade cultural de um grupo e as condições para a convivência e interação com os demais. (AQUINO & ZAMBAM, 2016, grifo nosso)
A interação intercultural se mostra de extrema eficiência, trazendo respaldo a uma solução muito viável, qual seja o diálogo, muito adequado a quase todas as soluções de conflitos, universalmente utilizado e, deve ser explorado à fundo, principalmente entre os povos que possuem a diferença cultural entre si, com o intuito de compreenderem-se e tomarem decisões para amenizar gradualmente o problema, sempre individualizando cada caso concreto, tomando cautela sempre nos casos mais graves e propondo alternativas para que haja a harmonia objetivada.
Há direito à cultura? Diversidade cultural? Com toda certeza, isso é inegável, porém, as culturas não são incontestáveis, vez que todas as diversas culturas não pertencem apenas àquele pequeno grupo de pessoas que a adota, mas sim a toda a sociedade, a todo o país.
O Estado, não só por ser o ente que deva garantir o direito à vida, mas também tendo em vista que a cultura é patrimônio brasileiro, não pode jamais permanecer inerte, como está atualmente, e sim, se tornar ativo e trabalhar com seriedade para solucionar, não só cada um dos casos individualmente, mas também adotar medidas que, a longo prazo, evitem que novos casos voltem a ocorrer, sempre trabalhando por meio do diálogo.
Há que se levar em conta a aplicação do Projeto de Lei da Câmara 119 de 2015, ou Lei Muwaji, que, caso seja aprovado, seria de grande auxílio, pois possui medidas promissoras, para a solução de grande parte dos casos de infanticídio indígena, pois seus programas que serão adotados, em conjunto com o uso do diálogo com as tribos ensejariam em um grande avanço. Porém, com o grande atraso em seu processo de positivação, talvez seja necessária a criação de uma nova lei, mesclando ideias da Lei Muwaji com a garantia da realização de medidas de comunicação entre culturas, que, com toda certeza, potencializaria a tutela à vida, o respeito à cultura e, nos veríamos frente a um grande avanço nessa área.
Alguns dos programas sugeridos pela Lei Muwaji com toda certeza apresentariam significativos resultados se combinados com outras medidas e com a exploração do diálogo, sendo eles essenciais e, adotar medidas para resolver o problema do infanticídio indígena sem a utilização desses programas, seria algo absurdo. Atente-se, por exemplo, à medida de retirar a mulher grávida de sua tribo, durante o período de gestação, se assim ela o desejar, ficando assim em algum alojamento criado pelo Estado e que mantenha cadastro atualizado das pacientes.
Outra atuação que também reflete enorme importância, é a de o Estado manter uma frequente observação e análise das tribos, sem ser invasivo, para detectar possíveis riscos que a criança venha a correr e, se necessário, adote medidas, como remover a criança temporariamente do convívio daquele determinado grupo, devolvendo-a logo que cessados os riscos.
4. CONCLUSÃO
Por fim, restou-se clara a repercussão que o problema causa no país e, diante de tal, requer uma solução.
Em razão do exposto, não há que se falar em ponderação como medida principal, mas sim seguir a linha de entendimento do STJ, que busca uma harmonização onde ambos os direitos possam coexistir. Para atingir este ponto de equilíbrio, a atitude mais eficaz a ser tomada visando o respeito mútuo entre os dois Direitos Fundamentais seria fazer com que as tribos enxergassem a proporção que a prática deles causam na dignidade de quem não é membro da comunidade indígena, em razão de crenças diversas e, conscientizá-los da pluralidade cultural que existe no país, mostrando os diversos costumes existentes, para que entendam que não são os únicos povos autônomos distintos e, assim passem a respeitar gradativamente, sem cessarem totalmente suas práticas. Porém, esse respeito tem que ser conquistado em longo prazo, por meio do diálogo intercultural que pode ser realizado através de eventos e palestras periódicas, reiterando aqui a ideia de que, o Estado deve evitar ser invasivo e agressivo o máximo possível.
Contudo, em casos específicos em que ocorra violação muito grave e que o diálogo se mostre ineficaz dada à urgência, faz-se necessária a utilização, excepcional, do método de sopesamento da ponderação, até porque neste método, como já citado, o direito à cultura quando sucumbir não sofrerá supressão, continuará a existir, apenas sendo vencido no caso concreto específico. Nesse caso, o direito à cultura seria vencido no âmbito de aplicar algumas das medidas apresentadas pela Lei Muwaji, como a retirada da criança da tribo quando presentes os riscos.
5. REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2006. Disponível em: < http://noosfero.ucsal.br/articles/0010/3657/alexy-robert-teoria-dos-direitos-fundamentais.pdf >. Acesso em: 04 mar. 2019.
AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; ZAMBAM, Neuro José. Elogio à diversidade: globalização, pluralismo jurídico e direito das culturas. In: UniversitasJUS, Brasília, v. 27, n. 1, pp. 49-62, jun. 2016. Disponível em < http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/viewFile/3914/2996 >. Acesso em: mar. 2019.
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Bacharelando em Direito pela Universidade Brasil Campus de Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATELO, Mateus Henrique. Infanticídio indígena: direito à vida versus diversidade cultural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52818/infanticidio-indigena-direito-a-vida-versus-diversidade-cultural. Acesso em: 23 dez 2024.
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