RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de delegação do poder de polícia administrativa a pessoa jurídica de direito privado, estabelecendo disthing entre sua perspectiva para empresas públicas e sociedades de economia mista.
A metodologia a ser utilizada consiste em estudo sobre a jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios sobre a temática, em especial a discussão estabelecida por repercussão geral sobre a tese 532.
PALAVRAS-CHAVE: Limites. Poder de Polícia. Polícia Administrativa. Administração Pública. Delegação.
1. Introdução
Para adentrar ao campo de conhecimento que nos leva a entender a necessidade de imposição de limites ao poder de polícia da administração pública, é necessário conhecer algumas premissas básicas.
O Poder de Polícia é um poder-dever que a Administração Pública, sendo esta compreendida como União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ou quem nesta qualidade esteja, detém para limitar os direitos individuais em prol de um interesse social.
Em meio a esse cenário o poder público intervém moderadamente na esfera particular através da legitimidade do poder de polícia. É com fundamento no conceito, pois, de Poder de Polícia que o ente público fiscaliza atividades relacionadas a eventos e festas públicas no País, sempre buscando atingir a harmonia social nessas atividades. E logo que entendamos tudo o que gira em torno do conceito de Administração Pública, fica mais fácil compreender o porquê da delegabilidade de certos poderes e os limites da mesma.
2. Do poder de polícia administrativa
Quando o interesse particular dá lugar ao interesse coletivo, imagina que se implantaria o caos caso não fosse este o sistema estabelecido, o Estado então precisa de mecanismos para que esta proposta seja implantada, ou seja, que o poder beneficie os direitos públicos. O Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia (CARVALHO FILHO, 2017, p.83).
O ordenamento pátrio conceitua o poder de polícia no bojo do artigo 78 do Código Tributário Nacional:
Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 1966).
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
De toda sorte, ainda que se tenha um conceito legal de poder de polícia, não há elenco normativo ou critérios identificadores de todas as manifestações possíveis da atividade de Polícia. É sobre esse campo que a doutrina passou a diferenciar os possíveis campos de atuação do poder de polícia em dois sentidos: o amplo e o restrito. O poder de polícia em sentido amplo reflete a ação estatal frente aos direitos individuais. O estrito se dá através das atividades administrativas.
Ao presente trabalho interessa o sentido estrito – ou restrito, como preferem alguns-, excetuando-se a atividade legislativa, ainda que restrinja ou condicione o exercício de liberdades públicas. Interessa tão somente as atividades administrativas sobre condutas ou situações cujos interesses transcendam a esfera particular, afetando os interesses coletivos.
Cabe registrar que, embora consagrada pela legislação (ex.: art. 145, II, da CRFB e art. 78 do CTN) e de ampla aceitação por parcela majoritária da doutrina e jurisprudência, há críticas a expressão “poder de polícia”, pela remissão ao caráter autoritário, indicando a sugestão de substituição do termo por “limitações administrativas à liberdade e à propriedade” ou “Administração ordenadora”.
5. Das fases do poder de polícia (ciclo de polícia)
Essencial para o prosseguimento do estudo sobre a possibilidade de delegação do poder de polícia administrativa é compreender a organização sequencial de atuação do poder de Polícia proposta por autores Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Marcos Juruena Vilela Souto, denominada ciclo de polícia. Para tanto, verifica-se que a função de polícia pode ser desmembrada em quatro momentos distintos, correspondendo a quatro modos de atuação, sendo eles: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia.
Por ordem de polícia entenda-se o dispositivo normativo que, previamente, limite ou condicione a atividade particular. No escólio Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, “em razão do postulado da legalidade, a ordem primária estará invariavelmente contida em uma lei, a qual pode estar regulamentada em atos normativos infralegais que detalhem os seus comandos” (PAULO E ALEXANDRINO, 2017, p. 300). Trata-se de fase inicial e imprescindível de qualquer ato de exercício do poder de polícia.
De forma simples, explica-se a fase de consentimento de polícia como a existência de concordância da Administração em relação ao exercício de determinadas atividades e direitos pelo particular, para os quais haja previsão de reserva de consentimento. Concretiza-se pela expedição de atos administrativos denominados alvarás, sejam da espécie licença ou autorização.
O consentimento de polícia não ocorre em todo ciclo do poder de polícia, havendo casos em que o uso e a fruição de bens e a prática de atividades privadas não necessitam de obtenção prévia de licença ou autorização.
Em continuidade, ocorre a fiscalização de polícia quando a administração pública verifica, não apenas o cumprimento das ordens de polícia mas também para constatar a inexistência de abusos de consentimento. Para Moreira Neto, a fiscalização de polícia possui viés duplo: “realiza a prevenção das infrações pela observação do adequado cumprimento, por parte dos administrados, das ordens e dos consentimentos de polícia; e, [...] prepara a repressão das infrações pela constatação formal da existência de atos infratores” (MOREIRA NETO, 2014, p. 537). Para Paulo e Alexandrino, a fiscalização de polícia é:
[…] atividade mediante a qual a administração pública verifica se está havendo o adequado cumprimento das ordens de polícia pelo particular a elas sujeito ou, se for o caso, verifica se o particular que teve consentida, por meio de uma licença ou de uma autorização, a prática de alguma atividade privada está agindo em conformidade com as condições e os requisitos estipulados naquela licença ou naquela autorização. (PAULO e ALEXANDRINO, 2017, p. 300).
Contempla atividade estatal, como se verá adiante, podendo ser deflagrada ex officio ou mediante provocação. E, ainda que não exercida efetivamente, está presente em todo e qualquer ato de exercício do poder de polícia, um vez que o interesse público é indisponível e não pode ser extinto pelo seu não uso. Cabe dizer que o que não deixa de existir é a possibilidade de fiscalização da atividade e não a punição por infrações cometidas, essa sim sujeita à prescrição.
Por fim, falhando a fiscalização preventiva progride-se para a fase final do ciclo de polícia, com a sanção de polícia, “que vem a ser a função pela qual se submete coercitivamente o infrator a medidas inibidoras (compulsivas) ou dissuasoras (suasivas) impostas pela Administração”, consoante definição lançada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2014, p.537).
A fase sancionatória do ciclo do poder de polícia nem sempre estará presente. Isto pois a atividade fiscalizatória pode apontar que não há infrações administrativas razão pela qual haverá desnecessidade e impedimento a imposição de penalidade.
Ressalta-se, por necessário, que o presente subtópico aborda a possibilidade de aplicação de sanções administrativas, diferente das penas restritivas de direito ou privativas de liberdade apresentadas pelo direito penal.
6. Da delegação do poder de polícia
O poder de polícia pode ser exercido diretamente pela Administração Pública por meio dos órgãos integrantes de sua estrutura - Administração direta. Pode, ainda, exercer seu mister por meio de entes descentralizados, dotadas de personalidade jurídica própria, mas sem autonomia política, sendo sua criação feita diretamente por lei ou apenas autorizada por ela. O termo Administração indireta foi incorporada à legislação de organização administrativa, pela dicção do art. 4º, II, do Decreto-Lei nº 200, de 1967. Segundo esse preceito legal, a Administração indireta compreenderia “as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) autarquias; b) empresas públicas; c) sociedades de economia mista”, além das “d) fundações públicas”.
Neste contexto, embora haja inúmeras características que diferenciem as pessoas administrativas em tela, basta ter em mente que autarquias e fundações públicas possuem personalidade jurídica de direito público, em oposição as sociedades de economia mista e empresas públicas que possuem personalidade jurídica de direito privado.
Converge a doutrina sobre o fato de que há atividades que, por serem essencialmente públicas, só podem ser exercidas pelo Estado. Tais atividades, muitas vezes ligadas ao conceito de soberania e decorrentes do sistema republicano, não são passíveis de delegação a particulares, por tratarem-se de atividades essencialmente públicas. Neste sentido, eis a lição de Carvalho Filho:
Vale consignar – insista-se – que nem todos os serviços públicos podem ser prestados por empresas públicas e sociedades de economia mista. [...] Excluem-se, desse modo, os denominados serviços próprios do Estado, de natureza indelegável, cabendo ao ente estatal a exclusividade na execução. É o caso da segurança pública, justiça, soberania, serviços indelegáveis. Descartam-se também os serviços sociais, como as atividades assistenciais nas áreas médica, de inclusão e apoio social, ambiental e outras do gênero. Sendo, como regra, deficitários, tornam-se mais apropriados para autarquias e fundações governamentais (CARVALHO FILHO, 2017, p. 331).
Defende-se que a impossibilidade de delegação do exercício de poderes coercitivos com fundamento na premissa a “atribuição de poderes públicos a alguns dos cidadãos romperia o equilíbrio próprio das relações entre particulares, à medida que alguns passariam a deter o poder de decisão acerca da utilização de violência legítima sobre outros”.
6.1 Da delegação a pessoas jurídicas de direito público
A possibilidade de delegação de atos que efetivem o exercício do poder de polícia por pessoas jurídicas de direito público é majoritariamente aceita pela doutrina e jurisprudência, porquanto tais entidades são consideradas como longa manus do ente federativo.
Em verdade, por conta da submissão a regime público, as autarquias e fundações autárquicas pouco se diferenciam do próprio Ente estatal que as instituiu. Isso porque gozam dos mesmos “privilégios” processuais outorgados à Fazenda Pública, tais como prazo em dobro para se manifestar nos autos; não sujeição ao concurso de credores ou à habilitação de crédito em falência, concordata ou inventário, para cobrança de seus créditos, salvo para estabelecimento de preferência entre as diversas Fazendas Públicas; seus bens são considerados públicos contando com a impenhorabilidade, não-onerabilidade, alienabilidade condicionada e imprescritibilidade. Em contrapartida, submetem-se ao mesmo regime de licitação da Administração Direta, é obrigada a realizar concurso público para contratação de pessoal e seus servidores serão, necessariamente, contratados pelo regime estatutário entre outros ônus.
6.2 Da delegação do exercício do poder de polícia a empresas estatais
Conquanto compartilhem a personalidade jurídica de direito privado, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações públicas de direito privado são entes que integram a estrutura administrativa estatal em sua modalidade indireta.
A criação de “empresas estatais” ou “empresas governamentais” possibilita que o Estado execute atividades de seu interesse não necessitando submeter-se aos entraves burocráticos imposto as pessoas de direito público. Para Carvalho Filho, “a ideia básica que traduzem continua sendo a do Estado-empresário, que intenta aliar uma atividade econômica à prestação de um serviço de interesse coletivo” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 328). Segue o autor:
É preciso ter em conta, porém, o objetivo que inspirou o Estado a criar esse tipo de pessoas de natureza empresarial. Como os órgãos estatais se encontram presos a uma infinita quantidade de controles, o que provoca sensível lentidão nas atividades que desempenha, essas pessoas administrativas, tendo personalidade de direito privado, embora sob a direção institucional do Estado, possibilitam maior versatilidade em sua atuação, quando voltadas para atividades econômicas (CARVALHO FILHO, 2017, p. 329).
Quanto a seu objeto, pacificou-se o entendimento de que o termo “explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços”, previsto no artigo 173, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil vigente, poderia abarcar duas espécies: as atividades econômicas “stricto sensu” e os serviços públicos econômicos.
Nos interessa, em especial, a análise da viabilidade de delegação do poder de polícia a sociedades de economia mista. Nestas entidades, a formação de capital é proveniente da junção de verbas públicas e de recursos da iniciativa privada, tendo o Poder Público, por meio de entes públicos ou outras pessoas administrativas, a maioria das ações com direito a voto.
Justamente por conta desta composição híbrida de capital, passou a discutir uma possível tensão de interesses. Explica-se: na medida em que se permite ao Estado explorar diretamente a atividade econômica apenas quando necessário aos imperativos de segurança nacional ou para assegurar relevante interesse coletivo, a participação privada justifica-se pela busca ao lucro, ocasionando uma tensão de interesses.
6.2.1 Dos diversos posicionamentos doutrinários sobre a delegabilidade do poder de polícia
Diversas correntes doutrinárias versam sobre a complexa questão que envolve a possibilidade de delegação de atos que concretizem o poder de polícia por entidades estatais privadas.
A primeira tese doutrinária defende a impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares. Dentre os argumentos utilizados está o comando grafado no artigo 173, § 1º da Carta Suprema. O texto faz menção ao fato de que, quando exploram atividade econômica, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e outras entidades, devem sujeitar-se ao regime próprio das empresas privadas, incluindo-se aí as obrigações trabalhistas e tributárias. Ora, se ao particular não é permitido exercer o poder de polícia administrativa, não o deveria ser a empresas estatais que não podem, em tal situação, receber privilégios não extensíveis aos particulares. Rafael Oliveira cita como defensores dessa corrente os administrativistas Celso Antônio Bandeira de Mello, Diógenes Gasparini e Marçal Justen Filho (OLIVEIRA, 2015, p. 278).
Uma segunda escola doutrinária, valendo-se do ciclo de polícia outrora apresentado, propõe a delegabilidade de apenas algumas fases – o consentimento e a fiscalização de polícia, podendo ser feita a particulares em geral, integrantes ou não da Administração Indireta. Tendo como expoente Diogo Figueiredo Moreira Neto, tal corrente defende como indelegável as fases de ordem de polícia, sujeita à reserva legal e a fase de sanção de polícia, atividade coercitiva vinculada ao poder de império estatal.
Por fim, cataloga-se posicionamento adotado por José dos Santos Carvalho Filho, defendendo a delegabilidade do poder de polícia mediante o preenchimento de alguns requisitos, conforme estruturação dada por Rafael Oliveira, sendo eles:
a) a delegação deve ser feita por lei, não se admitindo a via contratual;
b) apenas a fiscalização de polícia pode ser delegada; e
c) as entidades privadas delegatárias devem integrar a Administração Indireta (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações estatais de direito privado), não sendo lícita a delegação às entidades privadas em geral (OLIVEIRA, 2015, p. 278).
Rodrigo Pagani de Souza, em interessante trabalho titulado como “Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia”, elenca os quatro principais argumentos que comumente embasam a tese da suposta indelegabilidade do poder de polícia a empresas governamentais, sendo eles:
1. O de que o exercício de poderes de império, por empresa estatal, seria inconciliável com a natureza de pessoa jurídica de direito privado;
2. O de que a persecução do lucro, pelas empresas estatais, seria inconciliável com o exercício de poderes de polícia;
3. O de que o regime de trabalho dos empregados das empresas estatais, que é o celetista, seria incompatível com o exercício do poder de polícia, por não lhes assegurar estabilidade no emprego e assim, em tese, não os proteger contra perseguições e outras represálias em razão do exercício da função; e
4. O de que o regime de remuneração dos agentes dessas empresas, eventualmente com base na performance de fiscalização, geraria distorções, indicativas de desvio de poder no exercício da função de polícia. (SOUZA, 2015, p. 52)
Dentro os argumentos com maior apelo consta a ideia de que a persecução de lucro poderá transformar a empresa estatal em uma “indústria de multas”, cujo objetivo primordial seja a distribuição de dividendos entre os acionistas e não a consecução do interesse público. Souza refuta tal ilação afirmando que tal postura independe da composição de capital, podendo também ser adotada, in casu, por autarquias ou Secretarias de Estado, que estariam “igualmente intensificando a arrecadação de receita para os cofres públicos”. Carvalho Filho, sobre tal imbróglio, pontifica:
A questão aqui é outra. Cuida-se de abuso de poder, que precisa ser severamente reprimido pelas autoridades competentes. Tal abuso, todavia, tanto pode vir de pessoas privadas quanto de pessoas públicas incumbidas da função fiscalizadora. Portanto, esse aspecto não serve para solucionar juridicamente a questão posta sob enfoque. O que se exige é o controle e a exemplar punição pelo cometimento de abusos, o que, infelizmente, quase nunca acontece (CARVALHO FILHO, 2017, p. 86).
Feita essa breve digressão sobre as possíveis correntes doutrinárias aplicáveis a hipótese, debrucemo-nos sobre o entendimento que os Tribunais Superiores pátrios tem julgado sobre o tema.
7. Do posicionamento dos Tribunais Superiores
Diversas foram as demandas apresentadas ao Judiciário brasileiro para que se posicionasse sobre a possibilidade de delegação do poder de polícia administrativo.
Exemplo é o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717/DF, proposta pelos Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), questionadora da constitucionalidade do artigo 58 e parágrafos da Lei federal nº 9.649/98, que estabelecia a possibilidade de serviços de fiscalização de profissões fossem transferidos, por delegação, a entidades privadas.
Na oportunidade, a Corte Suprema, firmada no voto do relator, Ministro Sydney Sanches, decidiu pela impossibilidade de delegação a entidades privadas do exercício do poder de polícia para aplicar sanções, conforme se vê no excerto do julgado:
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime (ADI 1.717-DF, Rel. Min. Nelson Jobim, publ. 28.03.2003) .
Sem embargo, o “leading case” sobre o tema é sem dúvidas e a ação envolvendo a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte – BHTRANS, sociedade de economia mista de Belo Horizonte (MG), voltada ao controle do trânsito.
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão prolatada por sua 2ª Turma, no Recurso Especial 817.534/MG, julgado em 04.08.2009, de relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, debruçou-se sobre a identificação das fases do ciclo de polícia para, a partir daí, identificar quais delas viabilizariam delegação.
Em voto-vista, o Ministro Hermam Benjamim, acompanhando o voto do relator, alertou para os perigos de permitir que “o trânsito de uma metrópole pode ser considerado atividade econômica ou empreendimento, fins para os quais deve ser constituída entidade com essa natureza jurídica”.
Adotou a Corte Cidadã o entendimento de que atos que não importem em exercício do poder normativo primário ou atividades coercitivas podem ser objetos de delegação. Klein acrescenta que “pode ser delegada a mera execução de atos materiais de constrição da propriedade privada, em cumprimento a decisões prévias do poder público”, podendo, inclusive, “consistir em atos de aplicação e execução de atos normativos e atos administrativos propriamente ditos, desde que não impliquem exercício de amplo poder decisório pelo particular”.
Carvalho Filho, com a clareza que lhe é peculiar, exemplifica caso em que o poder público delega, por vínculo contratual, “a operacionalização material da fiscalização através de máquinas especiais, como ocorre, por exemplo, na triagem em aeroportos para detectar eventual porte de objetos ilícitos ou proibidos”. Para o autor, na situação narrada, o Estado mantém seu “jus imperii”, apenas atribuindo ao contratado a “tarefa de operacionalizar máquinas e equipamentos, sendo-lhe incabível, por conseguinte, instituir qualquer tipo de restrição; sua atividade limita-se, com efeito, à constatação de fatos” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 86).
Similarmente, no RESp 759.759/DF, julgado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Humberto Martins, considerou-se válida a multa detectada por meio de radar eletrônico. O Ministro ressaltou que o artigo 280 do Código de Trânsito Brasileiro “é claro em permitir que a comprovação da infração ocorra por intermédio, mas sem, em qualquer momento, dispensar a lavratura do devido auto de infração por autoridade competente”. Analisando o julgado, Bianca Duarte Teixeira Lobato conclui:
A contrariu sensu, o que aquela Corte Superior afirma é que se o mecanismo fosse utilizado para aplicar a multa não seria reconhecida a legitimidade de autuação. Ou seja, se a empresa contratada ou recebedora de delegação não apenas instalasse os dispositivos, mas também imprimisse e enviasse as multas, sem a participação do agente público, a multa não seria tida por resultado do regular exercício do poder de polícia.
Por seu torno, o Supremo Tribunal Federal, em Recurso Extraordinário – RE 658.570/MG, ementou que “a fiscalização do trânsito, com aplicação das sanções administrativas legalmente previstas, embora possa se dar ostensivamente, constitui mero exercício de poder de polícia, não havendo, portanto, óbice ao seu exercício por entidades não policiais”.
Os Ministros também entenderam haver repercussão geral sobre a matéria, porquanto a questão constitucional em evidência ultrapassava o interesse das partes originais, propalando relevante interesse jurídico, econômico, político e social. Na ocasião, assentou-se que o enunciado restringir-se-ia a constitucionalidade da atribuição de atos de polícia administrativa de trânsito e tráfego às guardas municipais, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas. Após os debates, foi aprovada a seguinte tese:
Tema 472: É constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas.
Em meio as votações, não obstante o caso em tela versasse sobre a BHTRANS, pessoa jurídica de direito privado, deliberaram os Ministros que os debates sobre o exercício do poder de polícia por agentes não estatais deveriam aguardar o julgamento do tema 532, cujo caso paradigma é Recurso Extraordinário nº RE 633.782/MG, de relatoria do Ministro Luiz Fux.
Para a Procuradoria-Geral da República, que já lançou parecer nos autos, a possibilidade de delegação do poder de polícia deve limitar-se exclusivamente às pessoas de direito público interno, nelas incluídas as entidades autárquicas e as guardas municipais não se estendo essa possibilidade à fiscalização de trânsito e veículos automotores a particulares. E conclui:
Diante do exposto, não há como admitir-se a legitimidade da delegação das atividades de policiamento e autuações de infrações de trânsito de veículos às sociedades de economia mista, sob pena de ofensa aos artigos 5º, II, 144, 173 e 175 da Constituição da República e artigos 21 e 24 do Código Nacional de Trânsito.Por essas razões, o parecer é pelo não conhecimento do recurso extraordinário ou, uma vez conhecido, pelo seu desprovimento.
O tema aguarda julgamento pela Suprema Corte.
8. Conclusão
Em um país de proporções continentais e considerado o custo de manutenção da máquina pública, a delegação do poder de polícia a terceiros passou a ser considerada alternativa para consecução dos fins estabelecidos no Texto Constitucional e perseguidos pelo Estado.
Analisar as consequências jurídicas e as divergências que emanam no âmbito doutrinário e jurisprudencial em decorrência dos limites à delegabilidade do poder de polícia administrativa é de suma importância, seja porque o poder de polícia em determinadas situações precisa ser delegado, seja porque esta delegabilidade não pode se dar de forma irrestrita, haja vista o interesse público em questão.
O exercício do poder de polícia diretamente pelo ente estatal ou mesmo por intermédio de pessoas jurídicas de direito público não levanta maiores debates do cenário atual, uma vez que estas últimas são consideradas como longa manus do ente federativo.
Fundada na compreensão de o poder de polícia é manifestação em primeiro grau do poder de império estatal, próprio e privativo do Estado, refuta-se a delegação de atos que comportem seu exercício a particulares.
Embora haja vozes doutrinárias minoritárias que defendam a possibilidade de delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado instituída por particulares, a exemplo dos concessionários e permissionários de serviço público, a grande celeuma fica por conta da possibilidade de sua delegação a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Indireta.
Não obstante os Tribunais Superiores pátrios já tenham se manifestado sobre o tema, decidindo que a aplicação de sanções ou outros atos decorrentes do poder de império estatal não possam ser delegadas a entidades privadas, sendo permitida apenas delegação de atividades meramente instrumentais e fiscalizatórias, sem poder de decisão, resta ainda aguardar o julgamento da tese 532 de repercussão geral proposta ao STF.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado. 25ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2017.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense Ltda., 2017.
FEITOSA, Isabela Britto. O poder de polícia como instrumento de fiscalização e controle da legislação. Jurisway.org, 2011. Disponível em: https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=6083. Acesso em 24 de abril. 2018.
FREITAS, Karina Costa. Limites ao poder de polícia. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,limites-ao-poder-de-policia,53413.html; Acesso em: 01/05/2018.
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KLEIN, Aline Lícia. Delegação de Poder de Polícia. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/132/edicao-1/delegacao-de-poder-de-policia; Acesso em 20 de Abril de 2018.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.
LOBATO, Bianca Duarte Teixeira. Do exercício do poder de polícia por agentes privados. Conteudo Jurídico, Brasília-DF: 20 nov. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.40706&seo=1>. Acesso em: 08 abril de 2018.
MARRARA, Thiago. O exercício do poder de polícia por particulares. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2018/02/08/o-exercicio-do-poder-de-policia-por-particulares/; Acesso em 23 de abril de 2018.
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense Ltda., 2014.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015.
SOUZA, Rodrigo Pagani de. Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 15, n. 170, p. 47-63, abr. 2015.
Bacharel em direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. Pós-graduada em Direito em Direito Público - Docência Ensino Superior pela Faculdade Damásio. Servidora pública federal do Ministério Público da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Cinthia Steffane Bento de. É possível a delegação do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52844/e-possivel-a-delegacao-do-poder-de-policia-a-pessoas-juridicas-de-direito-privado. Acesso em: 22 nov 2024.
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