RESUMO: A Constituição de 1988 traz uma nova concepção do Direito e do Estado brasileiros, em que a pessoa humana é o fundamento da ordem democrática e jurídica. Tendo isto por base, o artigo busca analisar o papel do direito positivo e do direito natural no sistema jurídico. Chega-se à conclusão de que não há contradição entre positivismo e naturalismo. Basta uma visão equilibrada do sistema para compreender que há autocomplementação entre eles. O direito natural necessita do direito positivo, e vice versa. Analise-se, na senda de Ronald Dworkin, os conceitos de princípios e regras como normas do sistema jurídico. Verifica-se, além disso, que a própria ordem democrática possui valores, princípios e fundamentos de base, sem os quais não poderia funcionar, como os conceitos de pessoa humana e igualdade.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo. Direito natural. Princípios e regras. Democracia.
SUMÁRIO: 1. Conceito de positivismo jurídico. 2. Bases filosóficas do positivismo. 3. Autores de base do positivismo jurídico: Bentham e Austin. 4. Considerações sobre o positivismo. 5. Princípios e regras em Hart e Dworkin. 6. Valores e fundamentos de um Estado Democrático. 7. Conclusão. 8. Referências.
1. CONCEITO DE POSITIVISMO JURÍDICO.
Positivismo jurídico é a doutrina que se caracteriza pela negação do direito natural e pela admissão de um único direito, o positivo, que é “posto” por uma vontade, expressa na forma da lei (FERRAZ JUNIOR, 2010, p. 47-49).
Há dois tipos de positivismo jurídico, aquele posto por uma vontade divina, formando um direito divino positivo; e aquele posto por uma vontade humana, pela autoridade competente, o legislador.
O positivismo jurídico, em suas diversas modalidades históricas, contrapõe-se ao direito natural, o qual desde a antiguidade fundamenta seus valores jurídicos numa ordem objetiva da realidade, independente da vontade humana ou divina. Ou seja, fundamenta-se na própria natureza das coisas, em outras palavras, numa ordem metafísica realista.
Diferentemente do jusnaturalismo, que admite a coexistência do direito natural e do direito positivo, o positivismo só admite a existência do direito positivo, relegando o direito natural ao campo da moral, da opinião de cada um.
2. BASES FILOSÓFICAS DO POSITIVISMO.
O ponto de partida do positivismo é a negação de uma ordem metafísica da realidade, a qual tem por base a doutrina nominalista de Ockham, no século XIV, juntamente com o surgir de novas doutrinas platônicas no início do Renascimento, valorizando sempre mais o aspecto matemático da realidade, ou seja, aspectos quantitativos, materiais, deixando de lado os aspectos não matemáticos do ente real, a saber, suas formas substanciais, qualidades e a finalidade. Trata-se de uma nova ciência da natureza, que se apresenta como paradigma de única ciência. Qualquer outra ciência que não abarque somente os aspectos quantitativos da realidade passa a ser considerada como opinião ou fé, ou seja, algo subjetivo, não aceitável no campo da ciência (SANTA CRUZ, 1998, p. 23).
Nesta linha de pensamento, a noção clássica de ciência (episteme, cognitio certo per cause: conhecimento certo pelas causas), é reduzida unicamente ao aspecto quantitativo ou à extensão do ente real.
É importante lembrar que é nesta linha de pensamento que se iniciam os grandes dualismos da era moderna, como a res cogitans e a res extensa em Descartes e a natureza e a liberdade em Kant. Ou seja, o homem e a natureza deixam de ser uma unidade: o espírito e a matéria passam a ser dois abismos incomunicáveis e insanáveis.
A negação da metafísica realista é a base do Racionalismo, do Protestantismo, do Empirismo, do Positivismo e do Kantismo. Portanto num sistema que considera a matéria em seu aspecto extensivo-matemático-quantitativo o único objeto sobre o qual se funda a ciência, qualquer menção a um direito natural, universal, de valores absolutos, cai por terra, pois, como dito, fica relegado ao campo da fé e da opinião (SANTA CRUZ, 1998, p. 32-36).
O direito natural, com seus conceitos e valores universais, embasados que são numa metafísica realista, despojada agora de seu antigo posto de regina scientiarum, não pode mais ser considerado científico no sentido moderno. Quando muito será um postulado a dar coerência ao sistema jurídico como um todo, um ato voluntarista, típico do dualismo moderno, no qual se perde o sentido de unidade do real. Eis, portanto, a base filosófica do positivismo jurídico.
3. AUTORES DE BASE DO POSITIVISMO JURÍDICO: BENTHAM E AUSTIN.
Depois de analisada a base filosófica do positivismo jurídico, faz-se necessário estudar brevemente dois autores de base desta teoria jurídica: Bentham e Austin.
3.1. JEREMY BENTHAM (1748-1832).
Bentham é o grande precursor do utilitarismo inglês, doutrina que afirma que o homem se rege por dois princípios, o do prazer e o da dor. Neste sentido, tanto o homem como a sociedade devem buscar o princípio da utilidade, procurando, em todas as suas decisões, aquela que traga maior prazer e felicidade. O princípio da utilidade também se estende ao campo das leis, por meio do princípio da “maior felicidade do maior número de pessoas”, expressão tomada de alguns predecessores seus, como Hume, Helvécio, Beccaria e Priestley (SERRA, 2004, p. 179).
Crítico do jusnaturalismo e da common law, à qual considera um tipo de direito natural, Bentham vê na legislação o meio de racionalizar, à luz do princípio da utilidade, o conjunto de normas recebidas pela tradição.
Bentham distingue dois objetos na teoria do direito (jurisprudence): o que é o direito, por um lado, e o que o direito deve ser, por outro, o que dá lugar a uma teoria do direito expositiva (expository jurisprudence) e uma teoria crítica do direito (censorial jurisprudence). A segunda, chamada por ele de “arte da legislação” orienta-se num sentido prospectivo e tem como base os princípios de utilidade y da maior felicidade do maior número. Para Bentham a lei é a fonte do direito por excelência (SABINE, 1994, p. 515).
Neste sentido, e seguindo a senda de Hobbes, Bentham possui uma concepção voluntarista do direito, o qual emana da lei como expressão da vontade do soberano.
Por fim é importante ressaltar que Bentham compartilhava com os iluministas continentais o desejo de racionalização e simplificação do direito positivo por meio da codificação, articulada em três partes fundamentais do direito: civil, penal e constitucional.
3.2. JOHN AUSTIN (1790-1859) E A CIÊNCIA ANALÍTICA DO DIREITO.
A doutrina jurídica de Austin situa-se na mesma trajetória de Hobbes e de Bentham, apropriando-se de seus princípios e conceitos fundamentais: a utilidade como critério dos atos humanos e a lei como mandato de um superior. A originalidade de Austin consiste na atenção que dá ao direito positivo e à ciência jurídica em quanto tal, submetendo suas normas a uma análise rigorosa e sistemática.
Assim como Bentham distinguia uma teoria expositiva e uma teoria crítica do direito, Austin distingue uma teoria geral do direito (general jurisprudence) e uma ciência geral da legislação. Austin concentra seu estudo especialmente na teoria geral do direito, analisando o direito em quanto tal, investigando os princípios comuns aos diversos sistemas jurídicos. A teoria geral do direito austiniana, portanto, é uma teoria do direito analítica (analytical jurisprudence), que estuda os conceitos jurídicos abstratos dos diversos ordenamentos jurídicos positivos (SERRA, 2004, p. 187).
A noção de lei é o ponto de partida de Austin. Para ele, a lei em sentido próprio é um mandato (command). Neste sentido, ele considera que as leis que não são mandatos, são leis em sentido impróprio, o que o faz delimitar as leis em quatro classes, das quais somente as duas primeiras são leis em sentido estrito (SERRA, 2004, p. 188). Vejamos.
1. Leis divinas;
2. Leis positivas, postas pelos homens e para os homens;
3. Leis morais positivas;
4. Leis em sentido figurado ou metafórico, por exemplo, leis da natureza.
Para Austin, entre as diversas definições que deu para as leis, emergem as “leis positivas”, jurídicas, as leis por excelência. Para Austin, as leis jurídicas positivas se caracterizam pelo fato de que emanam de um ser determinado dotado de razão ou de uma assembleia determinada de seres dotados de razão que implicam uma relação de subordinação, e a possibilidade de sua imposição coercitiva, o que implica para o destinatário do mandato o dever de obediência sob pena da sanção estabelecida. Tal fato supõe órgãos apropriados; em outras palavras, o direito positivo só pode ser concebível numa sociedade organizada em Estado.
Austin insiste que somente as leis positivas se aplicam efetivamente, deixando de lado, como opinião ou fé, os princípios e valores fundamentais e universais, o que é fruto da mentalidade da época, eminentemente positivista-mecanicista, que como dito, nega qualquer perspectiva metafísica do ente real. Tal mentalidade estará assaz presente na teoria jurídica até as duas Grandes Guerras Mundiais. Diante das atrocidades cometidas contra o ser humano, nas citadas guerras, surgirão outras visões na teoria geral do direito, que voltam a dar importância ao direito natural e seus princípios universais, especialmente o da dignidade humana (SERRA, 2004, p. 189).
Por fim cabe mencionar que a obra de Austin exerceu grande influência na escola analítica do direito, em autores como T. E. Holland, E. C. Clark. Sua obra também influenciará na “jurisprudência de interesses” de R. von Ihering, e na “teoria pura do direito” de Kelsen.
4. CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO.
Ao querer fazer do direito uma ciência jurídica nos moldes científicos modernos, que já foram analisados, temos que a única lei que dispõe de valor, efetividade e coercibilidade é aquela posta pela vontade da autoridade competente, que pode ser uma pessoa ou um grupo de pessoas por meio de consenso. Portanto, ficam excluídos da ciência jurídica os princípios universais da dignidade humana, bem como qualquer regra ou princípio do direito natural, os quais são relegados ao campo da fé e da opinião de cada cidadão, à vida privada de cada qual.
O que se quer dizer, em última instância, é que o positivismo levado ao extremo pode ser um grande perigo para a sobrevivência da sociedade, do ser humano e da própria democracia. Um sistema jurídico não regulado por princípios, mas somente pelo critério da vontade do legislador é um sistema fadado ao desastre e à tirania. Basta, para isso, analisar a história da humanidade. As duas Guerras Mundiais são o exemplo mais próximos disso, da tirania de um sistema jurídico regulado somente por leis positivas.
Vale a pena salientar a grande lição do Estagirita, segundo a qual a virtude se encontra num ponto de equilíbrio, e não nos extremos (COLPLESTON, 2004, p. 318). Ou seja, assim como um sistema baseado somente na lei natural torna-se injusto, assim também é injusto o sistema com base exclusiva no positivismo jurídico. E aqui vale lembrar que o jusnaturalismo bem entendido não retira o valor das leis positivas. Pelo contrário, trata-se de um sistema que as valoriza, e ao mesmo tempo garante que elas sejam regidas por princípios jurídicos asseguradores da mais alta dignidade humana, limitadores de tiranias e de ataques à ordem democrática. Trata-se de um sistema autocomplementar. É necessário, portanto, abandonar os extremos. E neste sentido temos vários estudos interessantes. Por exemplo, Dworkin considera tanto os princípios como as regras como espécies de normas jurídicas, ao contrário de Hart, que somente considera a regra positivada. Analisaremos estes dois autores mais adiante.
Outro autor de grande importância no século XX, por equilibrar a balança entre direito natural e direito positivo, é Alfred Verdross com sua teoria do direito.
Verdross parte de uma concepção positivista dominante para terminar, depois de uma longa vida de estudos e magistério, dando valor ao direito natural, que ele relaciona com a tradição do direito natural cristão desde Tomás de Aquino. E aqui é importante ressaltar que não se trata do direito natural anti-metafísico e extremamente abstrato dos racionalistas modernos, mas sim aquele que tem como base a metafísica realista dos clássicos como Aristóteles e Tomás de Aquino. A doutrina jurídica de Verdross é um convite a abandonar os insanáveis e perniciosos dualismos modernos (matéria x espírito; liberdade x natureza; direito positivo x direito natural) para chegar a uma teoria geral do direito harmônica e equilibrada (SERRA, 2004, p. 319-334).
Analisemos agora o tema dos princípios e regras no sistema jurídico, fundamental para uma compreensão maior tanto da doutrina positivista quanto do direito natural.
5. PRINCÍPIOS E REGRAS EM HART E DWORKIN.
A relação entre princípios e regras é de fundamental importância para o ordenamento jurídico, especialmente para a hermenêutica jurídica contemporânea. Neste diapasão, um magistrado, por exemplo, que considera os princípios como espécies de normas jurídicas, aplicará a lei ao caso concreto observando obrigatoriamente os princípios jurídicos. Por outro lado, o magistrado que hipoteticamente não considere os princípios como normas jurídicas, não terá de observá-los na aplicação da lei ao caso concreto. É fato que as duas posições, não raro, podem produzir decisões judiciais contrapostas.
No debate sobre o tema há duas correntes principais, uma apregoada por Hart e a outra por Dworkin.
Hart defende o positivismo jurídico, que, como vimos, é um sistema de normas composto unicamente por regras positivadas. Como o Direito é um sistema de normas que estão a regulamentar os atos humanos, dos quais a característica principal é a liberdade, inferimos que é humanamente impossível criar um sistema de regras capaz de abarcar todas as possibilidades de criação e ação livres do homem. Portanto o magistrado, segundo a corrente positivista de Hart, ao deparar-se com situações não normatizadas por regras, deve resolver a lide criando o direito de modo discricionário (DWORKIN, 2002, p. 49-50).
Por outro lado, Dworkin, representante do chamado pós-positivismo, critica o positivismo jurídico de Hart, ao afirmar que o sistema jurídico normativo é composto não somente por regras, mas também por princípios jurídicos, de modo que o magistrado, em todas suas decisões, aplicará a regra ao caso concreto levando em consideração os princípios. Deste modo, ao deparar-se com uma situação ainda não regrada, o magistrado não criará o direito discricionariamente, mas decidirá conforme os princípios, que passam a ser, juntamente com as regras, espécies de normas jurídicas (DWORKIN, 2002, p. 127 e ss.).
Nesta linha de pensamento é importante fazer uma consideração com relação ao conceito de princípio. Segundo Aristóteles, princípio é a causa, o ponto de início, ponto de partida de algo. Princípio é aquilo que sustenta, que está à base, que serve de alicerce (COLPLESTON, 2004, p. 318). Portanto, ao trazer os princípios para o âmbito das espécies normativas, ao lado das regras, Dworkin estabelece uma regra de hermenêutica jurídica completamente diversa daquela apregoada por Hart. O magistrado necessariamente deve considerá-los ao aplicar as regras ao caso concreto, fato que proporciona maior unidade ao ordenamento jurídico.
6. VALORES E FUNDAMENTOS DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO.
Como proposto por Dworkin, o sistema jurídico é composto por normas (gênero) especificadas em princípios e regras. Faz-se necessário, portanto, distinguir o que são os princípios e o que são as regras.
Princípio é uma norma mais generalista, que serve de base, de alicerce ao ordenamento jurídico. Trata-se de uma norma de caráter aberto, de conteúdo generalista, que deve permear o ordenamento jurídico como um todo. Por exemplo, a dignidade da pessoa humana é um princípio que envolve todo o ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, todas as leis, todas as regras normativas bem como a hermenêutica jurídica. Todas devem respeitar a dignidade do ser humano, sob pena de violação do alicerce do sistema jurídico, fato gravíssimo. Inferimos, portanto, que o princípio tem um caráter aberto, é uma cláusula geral, expansiva a toda e qualquer situação humana.
Neste diapasão, é importante fazer uma reflexão sobre a gênese de grande parte dos princípios jurídicos, por tratar-se de um aspecto não raro esquecido pelos governantes, legisladores, e pelos operadores e estudiosos do Direito. Grande parte dos princípios jurídicos têm por base valores e ideologias culturais. Em outras palavras, refletem a cultura, a formação e a ideologia de uma sociedade construídas geração após geração.
Analisemos o caso do Estado Democrático de Direito, fundamento da ordem jurídica nacional. Claro está que nestas linhas não há tempo nem espaço para desenvolver detalhadamente os princípios basilares da ordem jurídica e democrática nacional. Mas a modo de pinceladas bastará mencionar o mais importante deles.
O princípio basilar de uma sociedade democrática é a dignidade intrínseca da pessoa humana, valor supremo proveniente do cristianismo, do qual emana a igualdade de todo ser humano, independentemente do sexo, raça, opção religiosa ou política. Todos são iguais pelo simples fato de existir (LUCAS, 2007, p. 139-142).
Aristóteles, ao estudar os fatores constitutivos da “Polys”, Cidade-Estado, chega à conclusão de que ela está fundamentada em três alicerces: o fator econômico que força os indivíduos de uma sociedade a se relacionarem para fins de subsistência; a unidade de governo ou de poder, e finalmente a unidade chamada por ele de “filia”, ou seja, de amizade-vínculo entre aquele povo, ponto que é fundamental para a subsistência de um Estado (SERRA, 2004, p. 156-167). Pois bem, tais conceitos provenientes da Grécia Antiga aliados ao conceito de dignidade da pessoa humana desenvolvido pelo cristianismo, são o alicerce sobre o qual se constrói o Estado Democrático de Direito. Não há democracia sem o respeito pela individualidade de cada pessoa, sem que todos sejam considerados iguais em dignidade, direitos e obrigações, independentemente de qualquer fator de diferenciação (sexo, cor da pele, religião, posição política, origem, etc.). Só há real democracia onde o ser humano é valorizado e considerado pelo simples fato de existir.
Por isso se vê com frequência que a democracia não sobrevive em Estados onde não há tais valores de base, como em grande parte dos países árabes. Para que a democracia possa se arraigar é necessário que se opere primeiramente uma mudança cultural. A democracia não pode ser imposta, pois trata-se de um método de governo que tem por base um conjunto de valores, uma axiologia própria.
Ao chegar a este ponto de nosso estudo, podemos concluir que a base do ordenamento jurídico nacional é principiológica, e a gênese dos princípios jurídicos implícitos ou explicitados na Constituição Federal de 1988 tem por base um modo de pensar, uma cultura, cujas raízes remontam ao pensamento clássico greco-latino e aos valores da cultura judaico cristã. Grande parte destes valores culturais, construídos por mais de dois mil anos de história, são considerados por boa parte da doutrina jurídica como valores e princípios universais e naturais, com fortes bases filosóficas, razão pela qual o jusnaturalismo não é uma doutrina ultrapassada. Pelo contrário, princípios basilares dos ordenamentos jurídicos dos países ocidentais têm como base valores considerados universais: a dignidade da pessoa humana, o próprio conceito de pessoa (tipicamente cristão ocidental), a igualdade, a liberdade, fraternidade, entre outros.
Visto o ordenamento jurídico deste ponto de vista, podemos dizer que as normas principiológicas têm por base valores considerados universais, de cunho eminentemente jusnaturalista, enquanto as normas propriamente legais, as regras do ordenamento jurídico, têm por base o positivismo, dado que são postas por consenso de uma maioria parlamentar. Hodiernamente, portanto, pode-se considerar o ordenamento jurídico nacional como um sistema híbrido, um tanto naturalista (princípios) e um tanto positivista (regras).
Regra, diferentemente do princípio, é uma norma de caráter mais fechado, pensada para uma situação concreta. Não é uma cláusula geral como o princípio, não serve de alicerce, de base, mas simplesmente regula uma situação mais concreta da vida humana, dos atos humanos, que são imbuídos de liberdade, conditio sine qua non do Direito, bem como de qualquer ciência. Não há ciência, nem regras normativas, nem princípios normativos, entre os animais, pois carecem de liberdade: seu agir tem por base os instintos, conceito tipicamente determinista, antítese da liberdade.
No sistema jurídico híbrido, portanto, princípios e regras se complementam, de modo que as regras devem respeitar os princípios, e os princípios não podem ser vistos como uma totalidade unitária, pois tal fato daria margem à arbitrariedade e injustiças no sistema jurídico. Sendo assim, o operador do direito não pode criar uma regra, como defende Hart. Tampouco pode trabalhar os princípios como entidades jurídicas unitárias, pois os princípios jurídicos são eminentemente relacionais, ou seja, guardam relação entre si e entre as regras. O próprio conceito de sistema tem como base a inter-relacionalidade de institutos, pois se assim não fosse, não se chamaria sistema ou ordenamento, mas sim unidade jurídica. Neste sentido, o operador do direito, ao aplicar a regra ao caso concreto, observará os princípios jurídicos.
Como vimos, lecionava Aristóteles que a virtude não se encontra nos extremos, mas sim no equilíbrio. Esta lição do Estagirita aplica-se plenamente no caso ora estudado. Nem extremamente positivista, nem extremamente naturalista. Reafirmamos que se faz necessário encontrar o meio termo, o equilíbrio, de modo que se alcance um sistema jurídico justo.
Ainda na linha da distinção entre princípios e regras, há uma diferença significativa em relação à solução de conflitos.
Quando se está diante de uma antinomia, ou seja, duas regras conflitantes, uma delas deve ser eliminada por meio da aplicação dos metacritérios clássicos de solução. Segundo Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico, há três meta critérios para solução das antinomias: o cronológico (lei posterior afasta a anterior); o da especialidade (lei especial afasta lei geral) ; e o hierárquico (lei superior afasta lei inferior). Entre os três meta critérios, o hierárquico é o mais forte, o especial é o intermediário, e o cronológico é o mais fraco (BOBBIO, 1995, p. 91-97).
A modo de síntese, pode-se dizer que as antinomias de regras normativas, de um modo geral, são aparentes, pois bastará ao operador do direito aplicar os metacritérios, que consequentemente saberá a regra a ser aplicada.
Por outro lado, quando se está diante de conflitos entre princípios, o critério de solução é diverso. Não se pode dizer que se aplica um em detrimento do outro, pois todos os princípios são válidos e aplicáveis. Chega-se a uma solução por meio de critérios de ponderação, ou seja, é necessário fazer uma análise do caso concreto de modo a se averiguar qual princípio exerce um peso maior (DWORKIN, 2002, p. 46-50). Por exemplo, diante de um conflito, de um hard case, entre o princípio da liberdade religiosa (proibição de transfusão de sangue) e o princípio da proteção à vida, deve-se analisar qual o princípio de maior peso no caso concreto, qual o bem jurídico de maior valor. Não se trata de anular um pelo outro. Trata-se de ponderar, de medir os pesos de cada qual.
CONCLUSÃO
A modo de conclusão, podemos afirmar que tanto o positivismo quanto o naturalismo, vistos unilateralmente, são sistemas ontologicamente desequilibrados, ou seja, acabam por trazer injustiças e insegurança jurídica. Se o objetivo do Direito, do Estado, é alcançar o bem comum e a paz social, é necessário que estejam enraizados numa concepção filosófica e jurídica equilibrada, sem extremismos.
Neste sentido, assume grande importância o estudo de Dworkin, que trata as regras e princípios como espécies de normas jurídicas, o que vem a ser um fator de equilíbrio no ordenamento jurídico nacional, nem tão positivista nem tão naturalista.
Não se pode deixar de ressaltar a importância dos princípios para o legislador e para o aplicador do Direito, especialmente na seara da hermenêutica jurídica. Outro ponto fundamental é o estudo da gênese dos princípios, que tem por fundamento a cultura, o pensamento, a história de um povo, bem como alguns valores universais, como a dignidade da pessoa e a igualdade. A universalidade de alguns princípios jurídicos é tema para estudos sempre mais aprofundados, pois amplamente debatida e contestada por filosofias de cunho relativista. Entretanto, há uma base de convergência, segundo a qual os princípios jurídicos têm por base valores e modos de ser de uma sociedade. Se tais valores são de ordem universal ou não, é outra discussão. O fato é que sistema jurídico, valores, ideologias e princípios são realidades interligadas e interdependentes.
Neste sentido, entendemos que a teoria de Dworkin apresenta-se mais equilibrada e próxima da realidade social que a teoria de Hart, extremamente positivista, unilateral. Dworkin, ao situar os princípios como espécies de normas jurídicas, ao lado das regras, faz com que o ordenamento jurídico seja mais justo e equilibrado, pois através dos princípios, os valores mais caros à sociedade estarão a permear todo o ordenamento jurídico.
Vale lembrar que o positivismo levado ao extremo, como sistema de regras criado por uma maioria de votos, ao não ser imbuído por princípios jurídicos, pode criar um Estado tirano e extremamente injusto. Os princípios jurídicos servem como freios e contrapesos à ambição de tirania e de poder sem limites.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6º edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
COLPLESTON, Frederick. Historia de la Filosofía. 1: Grecia y Roma. 7º edición. Barcelona: Editora Ariel, 2004.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 1º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2010.
LUCAS LUCAS, Ramón. Orizzonte Verticale. Senso e significato della persona umana. 1ª edição. Milão: Edizione San Paolo, 2007.
SABINE, George H. Historia de la Teoría Política. 3º ed. - México: FCE, 1994.
SANTA CRUZ, Victor Sanz. Historia de la Filosofia Moderna. Navarra: EUNSA, 1998.
TRUYOL E SERRA, Antonio. Historia de la Filosofía del Derecho y del Estado. De los Orígenes a la Baja Edad Media. 13º ed. - Madrid: Alianza Editorial, 2004.
___________. Historia de la Filosofía del Derecho y del Estado. Idealismo e Positivismo. 1º ed. - Madrid: Alianza Editorial, 2004.
bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Pontifícia Regina Apostolorum, Roma, Itália. Bacharel em Direito pela FADISP, São Paulo. Especialista em Humanidades Clássicas pelo Centro de Estudos de Ciências e Humanidades, Salamanca, Espanha. Especialista em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral pela AVM-Faculdade Integrada, Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil e Direito Contratual pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. Mestrando em Direito pela FADISP, São Paulo. Auditor-Fiscal do Trabalho até 2016. Atualmente é Registrador de Imóveis na Comarca de Palmeira d'Oeste, São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURTADO, Adriano Lorieri Ribeiro. O necessário equilíbrio entre Positivismo Jurídico e Direito Natural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52845/o-necessario-equilibrio-entre-positivismo-juridico-e-direito-natural. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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