Resumo: O presente trabalho abordará a constitucionalidade do sacrifício de animais para fins de cultos religiosos de matriz africana, trazendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema.
Palavras – chave: Direito Constitucional. Liberdade de culto e crença. Sacrifício de animais. Supremo Tribunal Federal.
Sumário:1. Introdução. 2. A Tese do Supremo Tribunal Federal. 3. Conclusão. 4. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O Supremo Tribunal Federal, no corrente ano, resolveu manifestar-se acerca de tema complexo, cujo debate ocorre através da tramitação do RE 494.601-RS (de relatoria originária do Ministro Marco Aurélio e redator para o acórdão Ministro Luiz Edson Fachin), no qual se discute a constitucionalidade do parágrafo único do art. 2º da Lei estadual nº 11.915/2003, do Rio Grande do Sul. Aludido dispositivo legislativo traz em seu caput uma série de condutas que são consideradas maus-tratos de animais. No entanto, de forma diametralmente oposta, em seu parágrafo único, estabelece que não é vedada e, portanto, não é considerada maus-tratos a animais a conduta consistente em sacrificar animais em rituais de cultos de religiões de matriz africana.
Diante da existência desse dispositivo legal, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, órgão incumbido da defesa e proteção dos direitos coletivos em sentido lato sensu, aí incluídos os direitos difusos, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul alegando que esse parágrafo único seria inconstitucional tanto sob o ponto de vista formal como material.
Sob o ponto de vista formal, alegou o Ministério Público que a lei teria violado a competência exclusiva da União para legislar sobre direito penal, consoante prevê o art. 22, I, da CF/88, isso porque teria sido criada uma causa excludente de ilicitude para afastar a incidência de crime ambiental.
Ademais, sob o ponto de vista substancial, argumentou o Parquet que a lei, além de violar o princípio da igualdade e não discriminação, uma vez que somente permitiu o sacrifício de animais nos cultos de matriz africana, excluindo da regra os cultos de outras religiões, também violou o art. 225, §1º, VII, da CF/88, visto que a conduta de imolação (sacrifício) coloca os animais em situação de crueldade.
Diante da controvérsia imposta, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, o qual manifestou-se no sentido da constitucionalidade formal e material do aludido artigo, consoante será demonstrado ao longo do presente artigo.
2.A Tese do Supremo Tribunal Federal
Para embasar a constitucionalidade formal da lei, o STF entendeu inexistir ofensa ao princípio da repartição de competências constitucionais, uma vez que o parágrafo único do art. 2º da Lei questionada prevê hipótese de exclusão de responsabilidade administrativa na hipótese de sacrifício de animais em cultos religiosos, de modo que não trata de direito penal, tampouco de exclusão de ilicitude penal.
Ainda quanto a este ponto, concluiu o STF pela total inexistência de violação à competência da União para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente, uma vez que não há norma federal tratando sobre o sacrifício de animais em cultos religiosos. Sendo assim, cabe ao Estado Federado, de maneira plena, estabelecer regras a respeito do assunto, conforme dispõe o art. 24, §3º da CF/88.
Quanto ao aspecto material, talvez o âmbito mais controverso, decidiu o STF, após longo debate acerca da exegese dos direitos fundamentais, pela constitucionalidade da norma, estando relacionada com o exercício da liberdade de culto e liturgia.
O ponto crucial do debate reside na possível existência de violação ao dever estatal de proteção do ambiente, especificamente da proteção dos animais e proibição de tratamentos cruéis (art. 225, §1º, VII, CF/88). Os adeptos dessa teoria citam o artigo 32 da Lei 9.605/98, que prescreve ser punível com detenção, de três meses a um ano, e multa, a conduta de praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Desse modo, tal dispositivo daria margem à interpretação de que o sacrifício de animais em rituais religiosos é crime, uma vez que essa prática não se dentre as causas de exclusão da ilicitude da conduta do agente previstas no mesmo artigo.
Ademais, não só a existência de dispositivo específico embasa a corrente daqueles que entendem ser inconcebível a prática de sacrifício de animais para cultos religiosos. Tal assunto perpassa, primeiramente, pela proteção constitucionalmente assegurada aos animais, não sendo possível conceber a existência de práticas cruéis que violem a organização do meio ambiente.
Perfilhando esse entendimento, o professor Daniel Braga Lourenço entende que “o livre exercício dos cultos religiosos esbarra nos limites da ordem pública e dos bons costumes, bem como nos limites traçados pelo ordenamento jurídico, sendo absurdo permitir que o exercício da liberdade religiosa contravenha às leis”. Assim, de acordo com parcela doutrinária, embora seja necessária a defesa das liberdades religiosas e culturais, não podem os atos praticados sob essa justificativa violar normas de ordem pública, tampouco trazer completo desassossego ao meio ambiente animal.
Contudo, de modo contrário, entendeu o STF não existir violação à Constituição Federal, uma vez que se deve evitar que a tutela de um valor constitucional relevante (meio ambiente) aniquile o exercício de um direito fundamental (liberdade de culto).
Em primeiro lugar, a Suprema Corte, fazendo um paralelo aos hábitos corriqueiros e naturais da população, entendeu que seria desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso quando diariamente a população consome carnes de várias espécies. Ademais, após consulta aos meios utilizados, verificou-se que os animais sacrificados nestes cultos são abatidos de forma rápida, mediante degola, não consistindo em práticas cruéis com animais.
De mais a mais, existe, ainda, dentro do sistema de ponderação de princípios, a necessidade de observar o direito fundamental à liberdade religiosa e de culto, de modo que, havendo colisão de princípios e direitos fundamentais, deve aquele prevalecer, desde que respeitados determinados limites e condições, dentre as quais, o não sacrifício com a utilização de meios cruéis.
Pode-se suscitar a dúvida acerca do reconhecimento pelo STF da inconstitucionalidade das práticas e manifestações culturais consistentes na farra do boi, na rinha de galo e na vaquejada. Se não seria o caso de decisões distintas a casos com o mesmo fundamento jurídico. Contudo, deve-se dar particular atenção ao julgamento aqui comentado, uma vez que no presente caso estava em causa a proteção/garantia da liberdade religiosa plenamente assegurada na Constituição Federal, no seu art. 5º, VI.
Ademais, a decisão ora comentada ainda tratou de tema inédito, qual seja, a (in)existência de violação ao principio da igualdade, tendo em vista que a decisão apenas se referiu à prática de imolação nas culturas de matriz africana. Quanto a este tema, entendeu o STF que a cultura afro-brasileira merece maior atenção do Estado em razão do preconceito estrutural que a acomete. Assim, ao conferir proteção aos cultos de religiões historicamente estigmatizadas, o legislador não ofende o princípio da igualdade. Ao contrário, impõe igualdade material diante do preconceito histórico sofrido.
Por fim, preconizou o STF que também não houve violação ao princípio da laicidade, tendo em vista que a proteção legal às religiões de matriz africana não constituiu um privilégio, mas sim um mecanismo de assegurar a liberdade religiosa, garantindo, assim, a proteção da laicidade do Estado. Desse modo, o que houve foi uma situação oposta à violação do principio da laicidade, vez que o Estado, através da normal legal ora impugnada, buscou evitar o menosprezo a religiões minoritárias.
3. Conclusão
Sendo assim, consoante demonstrado, trata-se de assunto controverso ainda que decidido pela Suprema Corte, ainda mais se observar as recorrentes discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca do embate entre a liberdade religiosa e o dever de proteção dos animais.
Por isso, propõe-se, aqui, uma reflexão sobre problema tão complexo e que atrai inúmeras posições divergentes.
4. Referências Bibliográficas
WOLFGANG SARLET. Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 12 ed. rev. ampl. e atual. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 494.601-RS. Relator: Ministro Marco Aurélio. 2019. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28CULTO+RELIGIOSO%29&base=baseInformativo&url=http://tinyurl.com/yc24nt6f.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Pós-Graduada Lato Sensu em Direito do Estado pela Faculdade Guanambi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Laize Maria Silveira Cardoso de. A Constitucionalidade do Sacrifício de Animais em Cultos Religiosos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52863/a-constitucionalidade-do-sacrificio-de-animais-em-cultos-religiosos. Acesso em: 23 dez 2024.
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