ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO: Doutor em Direito, Professor Titular de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo; condecorado com o Colar do Mérito Judiciário pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Advogado e ex-Conselheiro Federal e Estadual, por São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil; Parecerista e Consultor Jurídico.
Sumário: 1. Dignidade da pessoa humana — 2. Titular do direito à vida e liberdade de crença religiosa — 3. Jurisprudência específica — 4. Direitos da personalidade — 5. Direito de escolha de tratamento médico-Art. 15 do Código Civil - 6. Lei dos Transplantes de órgãos - 7. CFM — Conselho Federal de Medicina — 8. Aspectos constitucionais —— 9. Matéria Penal: Omissão de Socorro e Constrangimento ilegal — 10. Direito a Vida e suicídio assistido.
1. Dignidade da pessoa humana
O principio fundamental que a Constituição Federal de 5 de outubro do 1988, aponta, em seu artigo 1°, inciso III, é a dignidade de pessoa humana.
Nele, a autonomia da vontade e da liberdade de agir, integram seu sentido.
2. Titular do direito à vida e liberdade de crença religiosa
Outro principio constitucional é o direito à vida, em seu artigo 5°, caput, pelo qual, completa o Código Civil, em seu artigo 15, que o Cliente tem o poder na escolha de seu tratamento médico, em toda a plenitude da autonomia de sua vontade e Liberdade de ação.
Aqui o caso das Testemunhas de Jeová, que têm o direito de escolher tratamento sem transfusão de sangue, na salvaguarda de seus direitos religiosos.
Nesse sentido, a proteção às entidades religiosas está garantida no artigo 5°, da Constituição Federal-1988, como um dos direitos e garantias fundamentais, incisos VI, VII e VIII, dizendo este último que “ninguém será privado de direito por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou politica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos impostas e recusar-se e a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Resta, assim, evidente essa proteção a todas as crenças religiosas, desde que não colidam com as normas jurídicas nacionais.
Ai a liberdade das crenças religiosas.
Qual o principio mais importante, o que protege o direito à vida ou à liberdade de crença?
Não há principio mais importante do que outros; é preciso sempre estudar o caso concreto, pois, às vezes, a proteção do direito à vida, que é direito da personalidade do seu titular, outras vezes, o risco de perdê-la é menos importante do que a salvaguarda da alma. Vale então o direito do Paciente de manter sua vida digna.
3. Jurisprudência específica
Embora existam outros julgados[1], citarei dois, bem expressivos.
Conclui-se no último julgado, citado, de Minas Gerais, que a sentença bem ressaltou a prevalência do livre exercício dos cultos religiosos (artigo 5°, inciso VI, da CF).
Destaque-se desse decisório que “contrariar a vontade da suplicada, obrigando-a a receber a transfusão de sangue, seria um ato monstruoso e que invadiria a órbita da tortura, atualmente equiparada aos delitos hediondos”. Ressalta o magistrado com o entendimento do Desembargador Alberto Villas Boas no agravo 191,519-6/001 (TJMG).
Reconheceu-se o direito à vida condigna, optando-se pelo julgamento diante do caso concreto.
Cite-se, ainda, caso importante[2] em que foi indeferida liminar e a própria inicial, em que se pretendia autorização judicial para realização de transfusão de sangue, em paciente adulto e capaz com quadro clinico de insciência renal crônica e anemia, que se recusou peremptoriamente a esse procedimento médico, por professar a religião Testemunhas de Jeová.
4. Direitos da personalidade
Os direitos da personalidade, guardam-se no interior do ser humano como verdadeiro tesouro, só do seu titular.
Assim, o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, resguardados no caput do artigo 5° da CF. A religião, especialmente, destaca-se, também como direito de personalidade, no mesmo artigo 5°, da CF, em seu inciso II (1iberdade de consciência, de crenças ou de crenças e de cultos).
Esses direitos da personalidade, da pessoa, são invioláveis, menciona o mesmo art. 5°, citado, da CF, inciso X, e 5510 regulamentados pelo Código Civil de 2002, em seus arts.11 a 21.
5. Direito de escolha de tratamento médico
Entre eles, desponta o art.15 que assenta: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida (morte), a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Aliás, a transfusão de sangue pode transmitir doenças graves, como AIDS, doença de chagas, sífilis etc.
A exemplo um grande Hospital Americano fechou suas portas em razão de transmissão sanguínea de AIDS a inúmeras pessoas, ante a pesada condenação judicial sofrida.
6. Lei dos Transplantes de órgãos
A Lei de transplantes de órgãos e tecidos, 9.434, de 23 de março de 2001, é bem rigorosa e só admite esse procedimento com o expresso consentimento do receptor do órgão ou do tecido, após rigoroso aconselhamento médico.
Essa Lei reconhece expressamente esse consentimento do Paciente, respeitando sua titularidade de direito sobre seu corpo, seu direito da personalidade de cuidar dele.
7. CFM — Conselho Federal de Medicina
O CFM, em caso de eminente perigo de vida, autorizava a transfusão de sangue contra a vontade do Paciente CCFM-Resolução 1.021/80).
Como vemos, isso aconteceu antes da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil, de 2002.
Atualmente, o Código de Ética Médica, de 2009, garante a autonomia do Paciente, que deve ser respeitada.
Ha muito tempo atrás, realizei uma palestra sobre o Paciente e sua vontade autônoma de não querer se submeter a transfusão sanguínea, no Hospital das clínicas, de São Paulo, a pedido de aproximadamente 40 médicos professantes de testemunhas de Jeová, à época matéria de difícil orientação. Essa palestra foi dada sobre prismas filosóficos, à falta de uma legislação específica como a atual.
8. Aspectos constitucionais
Lembre-se de que, desde a Constituição Imperial, de 25 de março de 1824, já se mencionava, em seu art. 179, inciso I, que “Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da Lei’.
Rezava a Constituição Imperial, seu art. 5°, que a “Religião Católica e Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinados, sem forma alguma exterior de Templo”.
Na Constituição Republicana, de 24 fevereiro de 1891, repetiu-se esse preceito, em seu art. 72, §1°.
A Constituição de 16 de julho de 1934 tratou desse texto no capitulo relativo aos direitos e garantias individuais, com a mesma redação, no art. 113, inciso 2, e nesse artigo, inciso 1, declarava “Todos são iguais perante a lei: Não haverá privilégios, nem distinções por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias politicas”.
A Constituição de 10 de novembro de 1937 tratou da matéria, no art. 122, inciso 4: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes”.
Ao seu turno, a Constituição de 18 de setembro de 1946 ressalta, em seu art. 141, §2°, que ninguém pode ser obrigado ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Também evidencia a importância da convicção religiosa (art. 141, §8°).
Também a Constituição de 24 de janeiro de 1967, cuida da mesma matéria, no art. 150, §2° e §§5°, §6°, respectivamente; depois da Emenda Constitucional n° 1 de 17 de outubro de 1969, respectivamente, art. 153, §2° e §5° 6 6° e 7°.
9. Matéria Penal: Omissão de Socorro e Constrangimento ilegal
O art. 135 do Código Penal caracteriza o crime de omissão de socorro quando se deixa de prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal a criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao desamparo e em eminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública.
O crime é doloso, devendo existir a vontade consciente e livre de não prestar possível auxilio, como previsto na lei penal.
Assim, se o Paciente recusa-se ao tratamento transfusional, optando por outros tratamentos médicos, que a dispensem, não se consumará o crime referido de omissão dolosa pelo profissional da medicina.
Quanto ao crime de constrangimento ilegal, caracteriza-se se o Paciente se recusar expressamente a realização de transfusão de sangue e ela realizar-se contra a sua vontade (caput do art. 146 do Código Penal).
A base desse crime está no art. 5°, inc. II, da CF que assegura eu “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”.
Não há lei que obrigue o Paciente a aceitar ou submeter-se a um determinado tratamento médico.
No caso das Testemunhas de Jeová, por exemplo, não ha suicídio nessa recusa, mas escolha de tratamento médico.
10. Direito a vida e suicídio assistido
Se bem que, na Suíça por exemplo, é possível o suicídio assistido.
É o direito de morrer com dignidade.
Cito como exemplo, o caso real de um ancião, com 104 anos de idade, que se declarou infeliz, com o desejo de morrer; sendo austríaco em cujo País não seria possível esse procedimento, mudou-se para a Suíça, marcando o dia de sua morte.
O Brasil não acolhe tal prática; aliás à que sou pessoalmente contrário, no plano espiritual.
Todavia essa admissão de suicídio assistido prova meu entendimento em tese, de que o Paciente é titular do seu direito a vida.
A vida foi-lhe dada por Deus ou pela Natureza (para os descrentes), só Estes ou o Paciente (titular do direito) podem dele dispor.
Assim, o direito a vida é do Paciente (direito da personalidade); qualquer paternalismo legal pode ser dispensado.
Esse direito é defendido pela lei, em face de pessoas (terceiros) que o violem ou pretendam violá-la. Não contra o titular, que pode dele dispor.
São Paulo, 13 de setembro de 2018.
[1] TJ MT, Rec — A1. 2239512006, Cuiabá, 5° Câmara Cível, Relator Des. Leônidas Duarte Monteiro, j. em 31.05.2006; TIMG, Agr. 191.519-6/001 in www.tjmg.gov.br, j. em 14.08.2007 (no mesmo sentido de “preservar os valores morais, espirituais e psicológicos, que se lhe agregam), Rel. Des. Alberto Villas Boas.
[2] TJMG, Med. Cautelar inominada da 3ª V. Cível de B.H., com sentença do Juiz Raimundo Messias, de 09.06.2008, proc. 002408102781-5, cassou liminar e indeferiu a própria inicial pretendia realização de transfusão de sangue.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSOCIAçãO DAS TESTEMUNHAS CRISTãS DE JEOVá, . Autonomia do paciente em face da legislação-88 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52865/autonomia-do-paciente-em-face-da-legislacao-88. Acesso em: 23 dez 2024.
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