RODRIGO SONCINI DE OLIVEIRA GUENA
(Orientador)
RESUMO: No Brasil, há expressa vedação legal ao aborto, salvo nas hipóteses previstas em lei. Todavia, tendo em vista o caráter eclético da Constituição Federal de 1988, sabe-se que muitos corroboram com o ordenamento jurídico pátrio e muitos discordam, cada um com base em seus respectivos fundamentos, baseados precipuamente em direitos tidos por fundamentais. Aqueles que defendem ser o aborto um direito, o fazem ante o direito à liberdade, direito fundamental de primeira geração, defendido na Revolução Francesa, que ganhou força com os movimentos sociais atuais, a exemplo do feminismo. Já os que dizem ser o aborto um crime, tutelam o direito à vida intrauterina, o ligando a fundamentos conservadores. Nesse sentido, o presente artigo tem por escopo apresentar as duas vertentes, mostrando ao final, a melhor orientação.
Palavras-chave: Aborto. Crime. Direito. Liberdade. Vida.
ABSTRACT: In Brazil, there is an express legal prohibition on abortion, except in the cases provided by law. However, given the eclectic nature of the Federal Constitution of 1988, it is well known that many corroborate with the legal order of the country and many disagree, each based on their respective foundations, based primarily on fundamental rights. Those who defend abortion as a right, do so in the face of the right to freedom, a fundamental right of the first generation, defended in the French Revolution, which has gained strength with current social movements, as feminism. Those who say that abortion is a crime, protect the right to intrauterine life, linking it to conservative grounds. In this sense, the present article has the scope to present the two aspects, showing at the end, the best orientation.
Key-works: Abortion. Crime. Freedom. Life. Right.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. DO REGRAMENTO DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. 2.2. DOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO ABORTO. 2.2.1. DOS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO ABORTO. 2.3. DO DIREITO COMPARADO. 2.4. DOS CUSTOS PARA O SISTEMA. 2.5. DO NÚMERO DE MORTES DE GESTANTES NO BRASIL. 2.6. DO ESTADO LAICO. 2.7. DO NÚMERO DE CRIANÇAS PARA ADOÇÃO. 2.8. DA FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS. 3. CONCLUSÃO. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Os artigos 124 a 128 do Código Penal disciplinam o aborto, conduta que é considerada típica no Brasil, tendo em vista a garantia à vida prevista constitucionalmente. Não obstante, deve se considerar a natureza criminosa da conduta à luz da época em que fora editado o Código Penal Brasileiro, qual seja o ano de 1940, época em que o direito das mulheres era extremamente maculado (BRASIL, 1940).
Nesse sentido, embora haja pertinência constitucional quanto à tipificação do aborto, faz-se necessário analisar, por meio de interpretação sistemática-humanitária a atual posição de tal conduta, uma vez que, não há falar em direitos fundamentais absolutos, de modo que simplesmente tutelar à vida não pode ser argumento razoável para ferir outros inúmeros direitos e garantias constitucionais.
Não obstante, embora no Brasil vigore o civil law, também é fonte normativa o costume, assim, conforme muito noticia os veículos de informação, cada vez mais vem ocorrendo a prática de determinada aborto em condições desumanas, hipótese em que visando o desacumulo jurisdicional, bem como o respeito à dignidade humana da mulher, deve se discutir a atual concretude de tal prática, a fim de que, a olhos críticos, seja possível a ponderação entre direitos fundamentais, respeitando precipuamente a dignidade da pessoa humana.
2.1. DO REGRAMENTO DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
O artigo 124 do Código Penal Brasileiro tipifica a conduta do aborto praticado pela gestante ou por outrem com seu consentimento, prevendo o preceito secundário a pena de detenção, de 1 a 3 anos. Trata-se de crime próprio, uma vez que só pode ser cometido pela gestante. Tal conduta é a mais corriqueira, seja porque não houve precaução quando da prática do ato sexual, seja por falta de informação, estrutura, condições econômico-sociais ou outras causas de cunho subjetivo (BRASIL, 1940).
No mesmo sentido, o artigo 125 do mesmo diploma legislativo prevê a conduta do aborto praticado por terceiro, cuja pena é de reclusão, de 3 a 10 anos. Aqui a conduta é mais gravosa, tendo em vista que outrem, sem o consentimento da gestante, lhe provoca o aborto. Trata-se de crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa.
Já o artigo 126 do Código (BRASIL, 1940) prevê como criminosa a conduta de provocar o aborto com o consentimento da gestante, cujo preceito secundário descreve a pena de 1 a 4 anos. É tipo que somente pode ser praticado, desde que a gestante incida na conduta do 124, estando ambos relacionados sistematicamente. Assim como o aborto praticado sem o consentimento da gestante, trata-se de crime comum, cujo sujeito ativo pode ser qualquer indivíduo. Em seu parágrafo único, o tipo prevê que caso a conduta do caput seja cometida contra gestante menor de 14 anos, alienada, doente ou débil mental ou se sua anuência se dá por meio de violência, grave ameaça ou fraude, será aplicada a pena do artigo 125, pois, o dissentimento é presumido. Cita-se como exemplo de violência o cônjuge que amarra sua esposa e faz com que ela ingira substância abortiva proibida. Já a grave ameaça consiste na ameaça de mal grave e iminente, como por exemplo, o convivente que diz que se sua companheira não tomar o medicamento abortivo, a matará em seguida. Por fim, a fraude se dá por malícia, a título de exemplo, o namorado fingindo que terá relações sexuais com a namorada, ao iniciar a prática do ato, lhe introduz algo capaz de produzir o resultado desejado, qual seja o aborto.
O artigo 127 prevê a forma qualificada do aborto praticado por terceiro, descrevendo o aumento de 1/3 se em decorrência do aborto sobrevier lesão corporal à gestante e o aumento de ½ se lhe sobrevém o óbito. Tais causas de aumento de pena aplicam-se ainda que os crimes supracitados não se consumem, bastando o início da conduta, com seus meios executórios.
O artigo 128 trata do aborto necessário, prevendo que não será punido o aborto praticado por médico quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez resulta de estupro e a gestante ou quem a estiver representando legalmente consentir e o STF reconheceu recentemente a possibilidade do aborto de feto anencefálico, com base na dignidade tanto da mulher como da criança.
Ora, conforme se depreende da leitura do presente tópico, o próprio legislador quando da edição de referidas normas e fazendo bom uso da proporcionalidade em sentido estrito, puniu de maneira mais severa a conduta do terceiro que pratica o aborto com ou sem consentimento da gestante em detrimento do ato de a própria mulher lhe praticar ou aborto ou consentir que outrem lhe provoque. Assim, mesmo quando a sociedade era regida por outros valores tradicionais, já não se via gravidade absoluta na prática da mulher, de modo que o artigo 124 cominou a pena de mínima de 3 anos, de modo que é possível a suspensão condicional do processo, assim, na maioria dos casos, a gestante, ao ser processada pela prática do aborto, apenas cumpriria condições não privativas de liberdade pelo período de 2 a 4 anos e ao final, veria sua punibilidade extinta.
Assim, questiona-se: o aborto deve ser visto como um direito ou um crime.
2.2. DOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO ABORTO
Aqueles que defendem que o aborto continue a ser tratado como crime, tem seus argumentos ligados ao direito à vida e dizem que com a fecundação, há o surgimento uterino de uma pessoa humana, de modo que não deve se macular o direito de vida dessa pessoa, o que muito se assemelha à Teoria Concepcionista do Direito Civil.
Ainda descrevem que desde a formação do zigoto não há de se falar que o indivíduo concebido é mero conjunto de células, pois há estudos que demonstram que desde tal fase, cada pessoa já possui características específicas intrínsecas, primeiro da dimensão física ou externa e posteriormente nas dimensões psicológica e espiritual. Nesse sentido já decidiu a Comissão Warnock, na Inglaterra; décima quarta semana, na Argentina; ou décima segunda semana, ADPF 442, em julgamento no STF.
Seus argumentos normativos estão descritos no artigo segundo do Código Civil, o qual dispõe: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro; bem como na Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988), Título II, Dos Direitos e garantias fundamentais. Capítulo I, Dos Direitos e deveres individuais e coletivos. Artigo 5: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida...” e Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), artigo 3: “ A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou comunidade em que vivem”.
Em prática talvez até apelativa, descrevem que as estatísticas quando a redução do número de abortos clandestinos em países onde tal prática é autorizada, dizem tratar de fake numbers, uma vez que as pesquisas seriam supostamente financiadas por órgãos e entidades financiadoras do aborto. Não obstante, usam os dados do Ministério da Saúde, segundo os quais a respeito de mortes devido aos abortos (espontâneos ou ilegais eles não especificam), entre os anos 2014 e 2016 no Brasil foram, respectivamente, 40, 56 e 46 e não o número fornecido em outras pesquisas, que mostram um número imensamente maior de casos.
Ainda alegam que Dados da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro revelam que o aborto está em quarto lugar nas causas de mortes de mulheres, e mostram que morrem mais mulheres na hora do parto do que por aborto, de modo que implicitamente mitigam a gravidade do aborto clandestino.
Por fim, a título de direito comparado revelam que no ano de 1973, a Suprema Corte Americana legalizou o aborto nos EUA, no famoso caso Roex versus Wade. Até o ano 1973, o número de abortos realizados naquele país era da ordem de 600.000 ao ano.
Em 1983 foram realizados 1.570.000 abortos, e desde 1973 até 2013 foram mortos por abortos diretamente provocados 58.286.256 crianças. Ou seja, em 10 anos o número de abortos subiu em 224% e em 40 anos subiu 832%.
2.2.1. DOS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO ABORTO
A crescente corrente que defende ser o aborto um direito fundamental, o faz a luz dos princípios da dignidade, liberdade, igualdade, proporcionalidade e intervenção mínima do Estado.
Segundo tal posição, nos países onde há vedação ao aborto, na prática não há redução dos casos, de modo que aquelas que não tem recursos socioeconômicos acabam por fazê-lo de forma clandestina, colocando em vida sua integridade física, psíquica e moral, bem como sua vida.
Não obstante, quem descriminaliza não está automaticamente legalizando, mas tão somente dando viés para o arbítrio feminino em decidir se é ou não o momento oportuno para gerar uma vida, a qual acarreta inúmeras obrigações e responsabilidades.
Não se trata o direito ao aborto de um incentivo para referida prática, mas apenas de uma medida que dá meios para quem queira realiza-lo o faça de maneira segura, mediante orientações provenientes de políticas públicas. Políticas estas que inclusive, são sempre destinadas para a prevenção da prática abortiva e, apenas como última rateio apontam a forma segura de a mulher implementar sua liberdade.
Ainda discorrem, ao contrário da primeira corrente, que nos países onde houve a descriminalização do aborto, houve significativa redução dos índices de mortalidade materna quando da prática do aborto. Assim, o que se busca não é impor tal conduta como necessária, obrigatória ou cogente, mas apenas trata-la como um direito de cunho subjetivo, cuja decisão incumbe exclusivamente à gestante.
Além disso, ainda não se vê o direito ao aborto reconhecido, uma vez que os debates sobre o tema ainda são veiculados precipuamente por homens, juristas e religiosos no âmbito do Congresso Nacional, os quais, notoriamente não representam o interesse da classe defendida por tal direito, quais sejam mulheres, em sua maioria hipossuficiente econômica, cultural, social e/ou organizacional.
Não menos importante, do ponto de vista científico, o que há dentro da mulher não é um bebê, mas sim um conjunto de células, uma vez que enquanto não completo o sistema nervoso central, não há falar em pessoa humana e direito à vida. Desse modo, só poderia se falar em vida quando o embrião se implantasse na parede uterina.
Com o neoconstitucionalismo, que emprega força normativa aos princípios, tornou-se possível a interpretação de dispositivos constitucionais de forma mais ampla, especialmente nas matérias interligadas ao direito de família, tutela pelo direito civil.
Por fim, a mulher tem direito ao seu corpo, podendo decidir se quer ou não ser mãe, não cabendo essa decisão ao Estado e somente No Brasil, 503.000 mulheres fizeram aborto no ano 2010 (dados fornecidos pela Pesquisa Nacional sobre o aborto, citados num artigo assinado pelo Frei Beto, no jornal O Globo, dia 1-VIII-2018).
Países onde o aborto não é considerado crime: Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Canadá, Estados Unidos da América, Bósnia, Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Portugal e Turquia, Albânia, Áustria, Bulgária, Dinamarca, Eslováquia, Estônia, Grécia, Islândia, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia, Moldávia, Montenegro, Noruega, República Tcheca, Rússia, Suíça, Ucrânia, Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Kosovo, Romênia, Suécia, Hungria, Holanda, Bielorrússia, África do Sul, Cabo Verde, Moçambique, Tunísia, Armênia, Azerbaijão, Bahrein, Cazaquistão, Geórgia, Mongólia, Nepal, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão, Vietnã, Camboja, Singapura, China, Coreia do Norte e Austrália (DREHMER, 2018).
Utilizando a título de comparação o Uruguai, país também integrante da América do Sul, onde o aborto é permitido até a décima segunda semana de gestação, prazo que prorroga-se para a décima quarta semana em tratando-se de caso de estupro e pode se estender ainda mais em casos de risco à vida da gestante ou anomalias radicais no feto, percebe-se que desde primórdios de 1938 o aborto resultante de estupro já era legalizado, mas estendeu a possibilidade às hipóteses de aborto voluntário somente em outubro de 2012, quando, a priori, houve aumento significativo nos índices de aborto, os quais, posteriormente foram estabilizados, circunstância que evidencia a inversa proporcionalidade entre a legalização e prática abortiva, como mostrado no gráfico 1.
Gráfico 1. Abortos realizados após legalização no Uruguai
Fonte: Gênero e Número, 2018 (Disponível em: http://www.generonumero.media/portugal-espanha-e-uruguai-o-que-aconteceu-apos-legalizacao-do-aborto/).
Em linhas comparativas, no Brasil o número de abortos legais aponta para outra realidade: Em 2017, foram feitos 1.636 abortos legais, segundo o Ministério da Saúde, ao passo que, quando ao número de abortos ilegais, o governo federal não apresenta informações precisas. No sistema de saúde, também não há dados justamente porque o procedimento é crime quando está fora das 3 previsões legais. Mas há indicativos que ajudam a mensurar a clandestinidade.
De acordo com o DATASUS (2017), em 2017, foram registradas 177.464 curetagens pós-abortamento, um tipo de raspagem da parte interna do útero. Outro procedimento em casos de aborto é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU). Em 2017, foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações.
2.4. DOS CUSTOS PARA O SISTEMA
Segundo aponta o próprio Ministério da Saúde, no ano de 2017, a média de gastos com a curetagem, como decorrência do aborto clandestino foi de R$37,97 milhões de reais, a medida em que os gastos para a prática abortiva legal, também no ano de 2017 foi em cerca de R$360 mil. Assim, mostra-se evidente que, além de questões de cunho social e intrínsecas à mulher, liberar o aborto implica em considerável redução de gastos para o Estado e consequentemente, para toda a população, bem como diminui o número de pacientes em situação de urgência para atendimento médico-hospitalar decorrente da clandestinidade da prática do tipo previsto no artigo 124 do Código Penal.
2.5. DO NÚMERO DE MORTES DE GESTANTES NO BRASIL
De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a 5ª causa de morte materna no País. Em 2016, dos 1.670 óbitos causados por problemas relacionados à gravidez ou ao parto ou ocorridos até 42 dias depois, 127 foram devido ao abortamento (FERNANDES, 2019).
Ora, o próprio Ministério da Saúde revela gritante necessidade em se dar meios regulares para a prática do aborto, uma vez que conforme dados percebe-se que a vedação ao aborto não impede sua consumação, a qual se dá de forma clandestina, com recursos médicos precários, o que leva ao óbito não só do feto, como da própria gestante. Sob essa premissa, a vedação ao aborto, importa em grave violação aos direitos fundamentais da mulher, precipuamente à vida e à dignidade, fundamentos defendidos por quem defende a vida do feto.
Conforme se depreende da história do Brasil, a qual gera efeitos normativos até os dias atuais, a Colônia do Brasil, por sofrer grande inúmera influência portuguesa, também seguia a fé católica, a qual sempre inadmitiu qualquer ato contrário ao aborto. Assim, em nossa primeira Constituição Federal, em 1824, a prática do aborto era absolutamente vedada, tratando-se de crime contra a vida. Não obstante, o Código Penal Imperial também descrevia como preceito primário de uma norma penal incriminadora a prática do aborto.
Todavia, desde a primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, o Estado é laico, de modo que não pode sofrer qualquer influência ideológica de cunho religioso. Assim, não se pode permitir que a prática abortiva seja incriminada com base em valores primordiais, provenientes de uma época em que a mulher sequer poderia votar e ser alguém independentemente de seu esposo. Desse modo, não se pode macular direitos femininos com o mesmo rigor em que era feito quando seu único papel formal na sociedade era gerir o lar e à família, tratando-se de um dever inerente a sua própria condição, gerar filhos (BRASIL, 1891).
Em meados de 2010, a Pesquisa Nacional do Aborto (DINIZ e MEDEIROS, 2010) foi realizada por pesquisadores da Universidade de Brasília (UNB) e demonstrou que:
· 55% das mulheres precisou de internação por complicações decorrentes do aborto;
· 48% das pesquisadas referiu ter usado medicamentos para abortar;
· 13% delas relatou ter feito aborto entre 16 e 17 anos;
· 16% entre 18 e 19 anos;
· 24% entre 20 e 24 anos.
2.7. DO NÚMERO DE CRIANÇAS PARA ADOÇÃO
No país, cerca de 47 mil crianças e adolescentes crescem nos abrigos, mas, desses, apenas 7.300 estão aptos judicialmente para serem adotados, segundo balanço do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA) (BERTOLUCCI, 2017).
Conforme se depreende dos dados apontados pelo CNA E CNCA, há grande número de crianças e adolescentes para adoção no Brasil, o que é dificultado pela morosidade e burocracias do sistema. Assim, percebe-se que vedar o aborto não garante uma vida digna aos que nascem, tendo em vista que de nada adianta nascer, ter o dom da vida, mas não exercê-la com dignidade, receber carinho, amor, afeto, atenção, educação, alimentação digna, enfim, construir uma vida com base em valores e oportunidades que somente uma família pode nos dar.
Se o sistema fosse capaz de propiciar a adoção a todos que se encontram em abrigos, não haveria de se falar em mácula à dignidade, uma vez que não pode se considerar como família apenas a natural/biológica, mas também a substituta. Todavia, infelizmente, só ocorre a consumação da adoção, na maioria dos casos, em relação a bebês brancos, de modo que os abrigos se encontram superlotados.
Nesse sentido, o mesmo sistema que não dá meios à efetivação de uma adoção célere e integral a todos que a buscam, não pode incriminar a conduta da mulher que não se julga apta a gerir.
Em que pese os argumentos supracitados, não só a colocação à adoção é uma mácula social, mas também importa em prejuízos tanto à criança como à sociedade a circunstância em que uma mãe cria o filho sem a intenção de fazê-lo, uma vez que é obrigada pelo sistema. Nessa toada, por vezes, a mãe desconta sua revolta no filho, que por sua vez, em não raros casos, o reflete na sociedade, pois a situação enfrentada em casa pode levá-lo a fazer uso de substâncias entorpecentes, indiretamente colaborando com o tráfico, que por sua vez, destrói inúmeras outras famílias.
2.8. DA FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS
Os gráficos 2 e 3 demonstram que o problema no Brasil não é o aborto, mas sim a falta de políticas públicas educacionais com o escopo de se evitar gravidez indesejada. Tal tese mostra-se comprovada, ante a gritante maior porcentagem de casos de aborto em regiões menos desenvolvidas sócio, econômico e culturalmente. Não obstante, há maior incidência de casos em mulheres sem instrução educacional.
Em suma, em que pese sua tipificação legal, deve o aborto ser tratado como um direito e não como um crime, o que se fundamenta na liberdade, igualdade, vida e dignidade da mulher, valores fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988, conhecida por Constituição Cidadã.
Nesse sentido, revela-se arbitrário e incoerente impor à mulher o dever de gerar um filho contra sua vontade, mesmo porque, conforme demonstrado no presente artigo, tal obrigatoriedade não mitiga os números de abortos consumados, todavia de forma clandestina, o que implica em violação à integridade física e psíquica da gestante.
Por fim, o aborto representa a incompetência estatal quando à políticas educacionais, de modo que não se deve atribuir à gestante a responsabilidade por uma mácula que não é só dela, mas de toda a coletividade.
ArqRio. Aborto: argumentos a favor e contra. 2018. Disponível em:<http://arqrio.org/formacao/detalhes/2354/aborto-argumentos-a-favor-e-contra>. Acesso em: abr/2019.
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BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de Fevereiro de 1891). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Rio de Janeiro, 1891. Acesso em: mar/2019.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Rio de Janeiro, 1940. Acesso em: abr/2019.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. ECA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Brasília, 1990. Acesso em: mar/2019.
BERTOLUCCI, R. Brasil tem 47 mil crianças em abrigos, mas só 7.300 podem ser adotadas. O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-47-mil-criancas-em-abrigos-mas-so-7300-podem-ser-adotadas-21384368>. Acesso em: mar/2019.
DATASUS. Plano Diretor de Tecnologia da Informação 2017/2018. Disponível em: <http://datasus.saude.gov.br/images/pdti/PDTI_MS_1718.pdf >. Acesso em: abr/2019.
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DINIZ, D.; MEDEIROS, M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Disponível em: <http://apublica.org/wp-content/uploads/2013/09/PNA.pdf>. Acesso em: abr/2019.
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MAGALHÃES, L. Aborto no Brasil. TodaMatéria. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/aborto-no-brasil/>. Acesso em: abr/2019.
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Bacharelando em Direito pela Universidade Brasil - Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Júlio César Barros da. Aborto: Direito ou Crime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2019, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52878/aborto-direito-ou-crime. Acesso em: 10 out 2024.
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