ADEMIR GASQUES SANCHES
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho pretende, preliminarmente, apresentar conceitos gerais acerca da teoria geral da prova no âmbito do direito processual penal, trazendo à baila o conceito e a função da prova, analisando os princípios que dirigem a matéria probatória e fazendo uma tentativa de desconstruir o mito da verdade real no direito processual penal pátrio. Ato contínuo, serão abordados aspectos acerca da prova testemunhal, tais quais o conceito de prova testemunhal, as características da prova testemunhal, bem como falar-se-á sobre as fases de formação do testemunho. Sob a ótica interdisciplinar, buscar-se-á fazer uma análise da memória humana, oportunidade na qual serão apresentadas como a memória humana funciona, abordando como e o motivo pelo qual a memória é passível de falhas. Por último, será debatida a questão das falsas memórias e os fatores que geram esse fenômeno, bem como a apresentação de medidas para a redução de danos, no âmbito do direito processual penal.
Palavras-Chave: Processo penal; Prova testemunhal; Memória humana; Falsas memórias; Técnicas para Redução de Danos.
ABSTRACT: The present work intends, preliminarily, to present general concepts about the general theory of the proof in the scope of criminal procedural law, bringing to the fore the concept and the function of the proof, analyzing the principles that direct the probative matter and making an attempt to deconstruct the myth of real truth in the country's criminal procedural law. Then, aspects of the testimonial test will be discussed, such as the concept of testimonial evidence, the characteristics of the testimonial evidence, as well as the stages of formation of the testimony. From an interdisciplinary point of view, an analysis will be made of human memory, an opportunity in which human memory will be presented, and how memory is susceptible to failure. Finally, the issue of false memories and the factors that generate this phenomenon will be discussed, as well as the presentation of measures to reduce damages, within the scope of criminal procedural law.
Keywords: Criminal proceedings; Witness test; Human memory; False memories; Techniques for Harm Reduction.
SUMÁRIO: 1. Itrodução; 2. Prova no Processo Penal; 2.1. Conceito e Função de Prova; 3. Princípios Processuais Penais; 3.1. O Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa; 3.2. Princípio do Devido Processo Legal; 3.3. Princípio da Verdade Real; 4. Da prova Testemunhal; 4.1. Noções Gerais; 4.2. Características da Prova Testemunhal; 5. Fases e Condições da Formação do Testemunho; 5.1. Condições de Percepção; 5.2 Condições de Memória; 5.3. Condições de Depoimento; 6. Memória; 6.1. Falhas Memórias; 6.2. Falsas Memórias; 7. Consequências das Falsas Memórias no Processo Penal; 8. Falsas Memórias e o Ato de Reconhecimento; 9. Técnicas para Redução de Danos; 9.1. Entrevista Cognitiva; 10. Conclusão.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar aos profissionais do direito, em especial aos profissionais da área processual penal, para o fato de que os testemunhos não devem ser arguidos à categoria de verdade absoluta, haja vista que existem variáveis que afetam a qualidade e a confiabilidade da prova testemunhal.
Muitos processos buscam a reconstrução do fato criminoso, as testemunhas são inquiridas para relatarem os acontecimentos passados. Neste cenário, as falsas memórias consistem em recordações de fatos que nunca aconteceram ou, se aconteceram, foram de forma diferente de como recordado pelo depoente.
O processo de falsificação da memória pode ser desencadeado por uma interpretação errada de um acontecimento, pela sugestionabilidade externa, ocasionada pela autoridade policial ou pelos atores processuais, durante a colheita do testemunho.
A memória assume relevante importância no processo de reconstrução do delito, razão pela qual é muito estudada pelos profissionais especializados na psicologia do testemunho e merece maior atenção dos operadores do direito processual.
Neste diapasão, far-se-á a análise de algumas noções fundamentais do sistema processual penal, da prova testemunhal e das falsas memórias, bem como demonstrar breves considerações acerca da memória humana, expondo fundamentos teóricos ligados ao fenômeno da falsificação de memórias, visando construir uma base sólida que permita ao leitor uma melhor compreensão do tema a ser abordado. Após, analisar-se-ão apresentações de algumas propostas elaboradas por estudiosos do tema na busca de uma redução dos danos causados pelo processo de falsificação das memórias, visando tornar o referido meio de prova, considerado fundamental, mais confiável e de melhor qualidade.
O vocábulo “prova” encontra sua etimologia do latim – probatio –, que significa ensaio, verificação ou confirmação, isso em sentido amplo, mas no direito processual penal é o ato que busca a verdade dos fatos, bem como reconstruir fatos passados, através das provas encontradas, afim de instruir o julgador.
O professor Guilherme de Souza Nucci assim define prova:
A prova é a demonstração lógica da realidade, no processo, por meio dos instrumentos legalmente previstos, buscando gerar, no espírito do julgador, a certeza em relação aos fatos alegados e, por consequência, gerando a convicção objetiva para o deslinde da demanda. (NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 15.)
Portanto, para o direito processual penal, é inadmissível que ocorra erros, suposições ou dúvidas sobre um crime. É de extrema importância que os fatos precisam ser provados para que não haja a condenação de uma pessoa inocente, afetando um dos bens jurídicos mais sagrado que é a liberdade.
A função da prova tem como objetivo principal convencer o órgão julgador, e destaca-se também a ideia de que, para que se possa alcançar a dita verdade processual, ao reconstruir o fato histórico, no curso do processo, por meio de elementos probatórios, os sujeitos processuais devem buscar obter um conhecimento interdisciplinar, haja vista que, não raras às vezes, é exigível que se tenha noções básicas de Psicologia, Criminologia, Sociologia, Medicina Legal e outros ramos para que se tenha uma maior compreensão da qualidade e da importância da prova produzida.
Como exposto acima é fundamental fazer uma análise interdisciplinar no meio de prova oral, se é inegável sua importância para a reconstrução de um fato delituoso, e ao mesmo tempo é o mais manipulável e perigoso meio de prova admitido no processo penal, sendo um meio vulnerável para a contaminação do fenômeno da falsificação das memórias.
Antes, é necessário realizar uma breve análise sobre os princípios da prova no âmbito do direito processual penal.
Com previsão expressa no Código de Processo Penal de 1941, bem como, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, alguns princípios foram de extrema importância para harmonizar o código de processo penal, por ainda possuir forte caráter autoritário e inquisitorial, assim, o objetivo principal dos princípios, foi de proporcionar garantias processuais constitucionais que representam verdadeiros escudos protetores contra o abuso do poder estatal.
Sendo assim, é necessário fazer uma breve análise sobre os princípios considerados como a base fundante de um processo penal democrático-acusatório. São eles: O princípio do Contraditório e da Ampla Defesa, o princípio do devido processo legal, e o princípio da verdade real.
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, assegura que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Este princípio previsto na constituição é um dos mais importantes para o sistema processual penal, é por meio de tal princípio que o Estado concede ao acusado a garantia de se ter uma defesa, sendo ela de forma pessoal, técnica ou por assistência jurídica.
Dando continuidade ao assunto, o princípio do contraditório nada mais é a possibilidade de contrariar, ou seja, comprovar a verdade, o direito de buscar provas para se defender, é o seu direito de manifestação no processo. Já no que segue a ampla defesa, está intimamente ligada ao contraditório, pois o exercício daquela só é possível em decorrência do direito à informação, um dos corolários da garantia do contraditório, bem como a ampla defesa só é evidenciada por meio do direito de reação, outro corolário do princípio do contraditório.
O devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal no art. 5º., LIV e LV, ao estabelecer que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Como expresso na constituição, todos terão direito de um julgamento, onde as regras estão previstas em lei. Caso não haja respeito por esse princípio, o processo se torna nulo. Considerado o mais importante dos princípios constitucionais, é deste que derivam todos os demais.
No processo Penal, a verdade real busca a apuração de fatos, que mais se correlacionam com algum ocorrido. Para a aplicação desse princípio, é necessário que se utilize todos os mecanismos de provas para a compilação idêntica dos fatos.
Nas palavras de Morais da Rosa, “a verdade real é empulhação ideológica que serve para acalmar a consciência de acusadores e julgadores. A ilusão da informação perfeita no processo penal recebe o nome de Verdade Real”. (MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. 2° ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 117.
Sendo assim, podemos analisar que a verdade real é algo que não pode se concretizar, basta ir mais afundo sobre o assunto do artigo, como exemplo, o fato de que a testemunha presta compromisso legal de dizer a verdade, sob pena de responder pelo crime de falso testemunho.
É difícil trazer aos autos a reconstrução perfeita de um fato delituoso, e isso está intimamente ligado com a prova testemunhal e bem como com o complexo processo de captação, retenção e recordação das memórias humanas, que, dentre outros fatores, está sujeito às interferências emocionais, sugestões externas e formações de falsas memórias, alcançar a denominada verdade real é tarefa impossível.
Após apresentar uma breve e necessária introdução acerca da prova no processo penal brasileiro, é fundamental tecer alguns comentários a respeito do meio de prova objeto do presente trabalho, a prova testemunhal.
Conforme já ventilado, a prova testemunhal, no processo criminal, “é a mais comum, encontradiça e alicerçada das provas e, ao mesmo tempo, representa a mais controvertida, ao ponto de receber o epíteto pejorativo de a prostituta das provas”. ( ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 157)
Por tal razão, o estudo da prova testemunhal merece um capítulo próprio, visto que, no processo penal, não rara às vezes, as sanções impostas, de natureza privativa de liberdade, são fundamentadas exclusivamente no que foi dito durante a colheita da prova testemunhal.
Nas lições de Renato Brasileiro: Testemunha é a pessoa desinteressada e capaz de depor que, perante a autoridade judiciária, declara o que sabe acerca dos fatos percebidos por seus sentidos que interessam à decisão da causa. A prova testemunhal tem como objetivo, portanto, trazer ao processo dados de conhecimento que derivam da percepção sensorial daquele que é chamado a depor no processo. ( DE LIMA, 2016, p. 680.)
O vocábulo “testemunhar” possui sua origem etimológica no latim testari que, por sua vez, significa mostrar, asseverar, manifestar, testificar, confirmar.
Testemunha é aquela pessoa que não é parte no processo, sendo considerada sujeito processual secundário, e nem precisa ter tido efetiva participação no acontecimento ocorrido, podendo ter presenciado ou ter tido apenas conhecimento dos fatos, trazendo informações relevantes para o julgamento.
A prova testemunhal está prevista no artigo 202 ao 225 do Código de Processo Penal. No capítulo denominado “das testemunhas” que se encontram as características da prova testemunhal, os deveres e direitos das testemunhas, as espécies de testemunhas e o rito que deve ser observado no momento da colheita do depoimento.
As principais características que a doutrina brasileira considera fundamental para o testemunho é: oralidade, objetividade e retrospectividade.
a) Oralidade: a prova testemunhal é feita oralmente, conforme disposto no art. 204 CPP. Não se permite depoimentos por escrito, e nem que a testemunha faça a leitura de um depoimento previamente escrito. Entretanto, o Código traz duas exceções à regra: quando a testemunha é muda, as perguntas serão feitas oralmente e as respostas são dadas por escrito; e quando é surda-muda um interprete intervirá no ato como pessoa habilitada a entendê-la.
b) Objetividade: A testemunha deve se ater aos fatos, sem expor opiniões pessoais ou realizar qualquer juízo de valor. Ha exceção quando o juízo de valor é necessário para reprodução dos fatos.
c) Retrospectividade: O testemunho prestado versa sobre fatos passados, e não futuros. Cabe a testemunha, tão somente, narrar os fatos que estão gravados em sua memória. É exatamente neste ponto que pode existir o processo de falsificação da memória, tema central do presente trabalho acadêmico.
No entanto, tal fato deixa em evidência a fragilidade da prova testemunhal, meio de prova mais utilizado para legitimar decretos judiciais do âmbito do direito penal e processual penal.
Diante de todo exposto sobre as características da testemunha, podemos observar que o testemunho exige conhecimento além do direito penal material e do direito processual penal, sendo necessários, a título de exemplo, conhecimentos em sociologia, antropologia e psicologia, em especial o campo da Psicologia do Testemunho, na análise do processo de formação de falsificação da memória.
O testemunho passa, necessariamente, por três fases, quais sejam: conhecimento do fato, conservação do conhecimento pela memória e declaração do conhecimento.
No decorrer da primeira fase, durante a apreensão ou conhecimento é que ocorre o contato inicial, a tomada do depoimento da testemunha. Este momento também pode ser subdividido em outras três fases, denominadas sensação, percepção e avaliação.
Ressalta-se, por oportuno, que neste diapasão, a sensação, percepção e avalição, não pode ser algo que possa confiar completamente, pois tudo vai depender do estado em que a pessoa está, e com isso pode surgir qualquer tipo de imagem subjetiva do mundo externo que não é a realidade daquele momento.
Em suma:
O depoimento de uma pessoa sobre um acontecimento qualquer depende de alguns fatores: do modo como percebeu esse acontecimento; do modo como sua memória o conservou; do modo como é capaz de evocá-lo; do modo como quer expressá-lo e do modo como pode expressá-lo. (MIRA Y LOPEZ, Emilio; ARRUDA, Elso (Trad.). Manual de Psicologia Jurídica. São Paulo: Mestre Jou, 1967. p. 159.)
Diante de todo o exposto é fundamental analisar de maneira mais detalhada alguns dos fatores que podem condicionar o processo de formação do testemunho, inclusive todo o processo de captação da memória humana.
As condições de percepção podem ser divididas em ordem objetiva ou de ordem subjetiva e, exercem influência na primeira fase de formação do testemunho, no momento da percepção do fato. Em relação às condições objetivas, pode-se dizer que estas não se referem à testemunha diretamente, mas sim ao ambiente externo ao seu redor (tempo, lugar, iluminação, barulhos, entre outros).
Já as condições subjetivas estão intimamente relacionadas ao autor do testemunho, são condições pessoais do depoente. Há estudos sobre o assunto de que a condição subjetiva que mais influência na percepção do fato é a emoção. A pessoa que está emocionalmente abalada pode ter um considerável grau de redução da sua capacidade perceptiva.
Podemos considerar, que sendo maior ou menor grau de condição da percepção com o fato que ocorreu, pode estar relacionado aos mais variados fatores, tais como: o lapso temporal entre o fato e a colheita do depoimento, a iluminação, o barulho do local no momento em que se deram os fatos, se estava próximo ou distante do momento da ação, e etc.
É de conhecimento de todos que a nossa memória é falha. Podemos ter como exemplo, ao se contar uma história, que ocorreu há três anos ou dez anos, sempre deixamos de lado detalhes que não passaram despercebidos quando a mesma história é contada alguns minutos depois do acontecimento, pois no decorrer do tempo pode haver qualquer tipo de influência, que pode modificar o que realmente aconteceu na data do fato.
Neste diapasão, destaca-se que também é possível que o método utilizado para inquirição das testemunhas exerça considerável influência negativa no processo de recordação dos fatos apreendidos pela memória. A título de exemplo, uma pergunta viciada por sugestões ou insinuações, ou até mesmo em casos mais graves, onde a colheita do testemunho é feita sob coação, pode gerar um abalo emocional capaz de influenciar a narrativa testemunhal. Por tal razão, necessário é empregar meios capazes de evitar a realização de questionamentos intimidadores e insistentes, tão comuns no dia a dia da prática processual penal.
No código de processo penal nos artigos 210, caput e parágrafo único e 217, estabelecem condições em que serão realizados os depoimentos das testemunhas, citando mecanismos capazes de reduzir a incidência de pressões de natureza internas e externas no momento do testemunho, sem violar as garantias constitucionais.
Nas palavras de Malatesta:
A animosidade, a afetação, a premeditada identidade do depoimento são consideradas como três causas formais de diminuição da fé nos testemunhos, assim como a equanimidade, a naturalidade e a não-premedição do depoimento são consideradas como as três causas formais de aumento da fé. Mas, além dos depoimentos, há exterioridades indiretamente reveladoras do espírito mesmo na pessoa do depoente: é o complexo daqueles indícios que emanam do conteúdo pessoal da testemunha e aumentam ou diminuem sua credibilidade. A segurança ou excitação de quem depõe, a calma ou perturbação de seu semblante, sua desenvoltura como de quem quer dizer a verdade, seu embaraço como o de quem quer mentir, um só gesto, um só olhar, por vezes, podem revelar a veracidade ou mentira de uma testemunha. Eis , mil outras exterioridades quem devem também ser consideradas nos testemunhos, para bem avaliá-los”. ( MALATESTA, 2004, p. 360.)
Neste diapasão podemos visualizar com clareza, que mesmo com todas as garantias constituídas em lei, a prova testemunhal não demostra a credibilidade que deveria ter, pois o depoente é ser humano e todos são cheios de emoção. A maioria tem um temor de testemunhar, e isso pode influenciar no resultado final do processo. Se o juiz, delegado, promotor de justiça, não souber trabalhar com essa situação, pode-se afetar as pessoas inocentes, pois poderão induzir a testemunha dizer-se aquilo que nem ela sabe se viu, fazendo afirmações que não poderiam ser feitas e é por isso que necessita ser mudado todo o processo de inquirição das testemunhas.
Conforme já dito por diversas vezes, o escopo do presente trabalho é fazer uma abordagem sobre a prova no processo penal, demonstrando a sua instrumentalidade no método de reconstrução dos fatos delituosos, chegando o mais próximo possível do que de fato aconteceu, respeitando todas as garantias constitucionais.
Ocorre que a palavra da testemunha não é capaz de reconstruir a dinâmica dos fatos da exata maneira que ocorreram no mundo real. Isto porque, ao testemunhar, a pessoa recorre à memória e, ao capturar e armazenar os fatos, não raras às vezes, o cérebro distorce a realidade percebida, de modo que a nossa memória pode ser uma máquina de falhas sabotadoras.
Não se pode, portanto, atribuir natureza de verdade absoluta a palavra da vítima ou de eventuais testemunhas, bem como não é razoável embasar um decreto condenatório exclusivamente neste meio de prova, sem que sejam estabelecidos critérios mínimos para determinar se o que foi dito, seja pela vítima ou por uma testemunha, merece ou não credibilidade.
Para o dicionário Aurélio, memória é a “Faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço”. Tal definição dá robustez à ideia de que a memória não é uma coisa uma, imutável, mas sim um mecanismo humano associado à retenção e à recuperação de vários dados.
Conforme já exposto, o processo de formação e acesso às memórias podem sofrer influência de diversos fatores, internos ou externos, existindo, assim, a possibilidade do cérebro humano transformar a realidade existente ou criar uma realidade própria, que nunca existiu de fato, evidenciando o grande problema que é atribuir o valor de verdade absoluta à prova testemunhal, no âmbito do direito processual penal.
O termo “falsas memórias”, tal como conhecemos hoje, foi cunhado pela primeira vez no ano de 1881, por Theodule Ribot, a partir da análise do caso de um homem chamado Louis, de 34 anos, o qual passou a ter memórias de situações nunca antes vivenciadas por ele.
Todavia, tem-se notícia de que os primeiros experimentos acerca do fenômeno da falsificação da memória se deram alguns anos depois, com Binet, na França, em 1900; Stern, na Alemanha em 1910 e Bartlett, na Inglaterra, em 1932. Enquanto os dois primeiros pesquisadores concentraram seus esforços na demonstração da existência das falsas memórias em crianças, Bartlett foi o primeiro a estudar a ocorrência do fenômeno em adultos.
Nesse contexto, Elizabeth Loftus apareceu bem depois, ou seja, nos anos 70. Entretanto, a nosso ver, o que fez dela uma das maiores autoridades sobre o assunto, foi justamente a introdução de uma nova técnica para o estudo das falsas memórias, consistente na sugestão da falsa informação, o que denominou de procedimento de sugestão de falsificação ou sugestão, isto é, uma releitura do clássico paradigma da interferência, no qual uma informação interfere ou atrapalha a codificação e posterior recuperação de outra. Cuida-se de inserção de uma informação não verdadeira em meio a uma experiência realmente vivenciada ou não, produzindo o chamado efeito “falsa informação”, no qual o sujeito acredita verdadeiramente ter passado pela experiência falsa. A autora constatou e identificou a problemática como ela é entendida hoje.
O trabalho de Loftus procurou demonstrar que é possível implantar uma memória falsa de um evento que nunca ocorreu, bem como podem haver modificações significativas em fatos realmente vivenciados.
Como visto acima, a prova, principalmente a testemunhal, pode sofrer intensas influências em razão de falhas de memória a que estão sujeitas as pessoas que irão prestar depoimento no curso da persecução penal, ou seja, desde o inquérito policial, até a ação penal.
É relevante frisar que nem sempre só falhas de memórias podem desfigurar o princípio da verdade real buscado pelo Processo Penal. Dependendo do local onde se deram os fatos, a testemunha pode se equivocar com aquilo que viu, de maneira que sem a intenção de faltar com a verdade, acaba trazendo informações incorretas para o processo.
Imagina-se por exemplo, uma testemunha que presenciou a ocorrência de um crime em uma boate, durante a madrugada, depois de ingerir bebidas alcóolicas, ainda com luzes fracas ou piscando. Tal testemunha, com toda certeza, não tem condições de reconstruir o fato como ele realmente aconteceu dadas as referidas circunstâncias.
De outro lado, muito mais apta estará uma testemunha a dizer a verdade real, se presenciou a execução do crime durante o dia com plena claridade solar.
Relativamente a falsa memória, a verdade no Processo Penal pode ser totalmente deturbada. Para frisar-se, nem tanto que a falsa memória ocorre de maneira involuntária, ou seja, a testemunha não tem vontade de mentir.
Alguns exemplos ocorridos no território nacional e em outros países podem ser citados da seguinte forma:
Exemplo de um caso narrado por Daniel Schacter em seu livro. Vejamos:
Peter Reilly chegou em casa e encontrou o corpo da mãe. Imediatamente, chamou a polícia, que o identificou como um dos suspeitos e submeteu-o a um detector de mentira, no qual ele não passou. Embora no início negasse a autoria do crime, Reilly acabou convencido de que era o culpado e assinou uma confissão por escrito. Dois anos mais tarde, foi inocentado graças a novas provas, que mostravam que ele não poderia ter assassinado a mãe. (SCHACTER, 2003, p. 151).
André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso, preso por um período de seis meses e 26 dias entre outubro de 2013 e maio deste ano. Acusado de sete estupros, o dentista de 27 anos foi capturado por agentes da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e ficou detido em dois presídios da Região Metropolitana até ser absolvido. A Corregedoria Interna da Polícia Civil (Coinpol) instaurou sindicância para apurar a conduta dos policiais responsáveis pela investigação. Segundo ele, a polícia já investigava a sua participação em estupros na Baixada Fluminense quando a prisão ocorreu. As investidas policiais em relação à conduta de André começaram depois que uma das vítimas do abuso sexual teria anotado a placa do carro dele e entregado à polícia, informando ser do veículo em que estava o estuprador. No entanto, por mais suspeitas e pistas que possam ter aparecido, a negligência em achar provas cabais foi, segundo ele, o motivo de sua permanência na cadeia.
“Apesar da minha vontade de colaborar, em nenhum momento houve a intenção de fazer um exame de DNA para comprovar se eu era mesmo o culpado. Só se preocuparam em fazer exame de corpo de delito nas vítimas”, explicou.
O acusado só conseguiu ser considerado inocente, segundo ele, depois que seu advogado de defesa conseguiu autorização para fazer um exame de DNA nos resíduos biológicos presentes nas vítimas e nas cenas dos crimes, enquanto ele estava preso. O resultado do teste provou que ele não era o responsável pelos crimes. "O exame foi feito em março, cinco meses após a prisão".
Na decisão que absolveu o dentista, no dia 14 de maio, o juiz da 2ª Vara Criminal de Belford Roxo questionou diversos elementos na investigação e lamentou a forma como a mesma foi conduzida.
É importante salientar que tanto aquela testemunha que teve sua visão ofuscada por conta da iluminação, quanto aquela que não falou a verdade em vista de uma falsa memória, não poderão ser condenadas pelo crime de falso testemunho, uma vez que não agiram dolosamente, mesmo porque ambas acreditam sinceramente que estão dizendo a verdade.
O ato de reconhecimento está previsto em nosso ordenamento jurídico no artigo 226 e incisos do Código de Processo Penal, e merece ser abordado graças à posição que alcançou de ser um dos meios de provas mais utilizados na fase pré-processual ou processual. Ser reconhecido como suposto autor do delito investigado, seja pela vítima ou por uma testemunha ocular, não raras as vezes, é suficiente para formar, no imaginário do magistrado, a certeza no que diz respeito à autoria delitiva.
É, portanto, o reconhecimento, o meio de prova que tem por finalidade reconhecer, pessoa ou coisa, valendo-se, para tal, de um processo psicológico de recuperação de elementos percebidos no passado.
Antes, porém, de se abordar a questão da entrevista cognitiva propriamente dita, é preciso entender o motivo pelo qual o método tradicional de interrogatório não pode mais ser utilizado no processo penal.
O método tradicional de inquirição caracteriza-se pelo emprego de perguntas fechadas ao entrevistado. Em apertada síntese, as perguntas fechadas são aquelas que são possíveis de serem respondidas de maneira objetiva e com apenas uma ou poucas palavras. Em contraposição, as perguntas abertas são aquelas que requerem uma declaração maior.
Assim, perguntar à vítima ou a testemunha o que aconteceu no dia do crime constitui verdadeiro exemplo de pergunta aberta, ao passo que perguntar se o ladrão utilizava um revólver ou uma pistola é um claro exemplo de pergunta fechada.
O grande problema ao redor das perguntas fechadas é que, uma vez realizadas, deixam em evidência para o entrevistado que o entrevistador já parte de um pressuposto tendencioso, sugerindo ao primeiro a resposta que deve ser dada. Eis o motivo pelo qual o método tradicional de inquirição deve ser abandonado.
Após todo o exposto até aqui, sabe-se que, na grande maioria das vezes, um estímulo externo, como, por exemplo, a indução por um outro agente ou uma ampla cobertura midiática sobre determinado fato, é o fator determinante para a formação de uma falsa memória. Neste diapasão, estudar o modo como deve ser realizada a oitiva da suposta vítima ou testemunha é medida fundamental na estratégia de contenção de danos ocasionados por essas influências externas.
A psicologia do testemunho vem, ao longo dos anos, estudando as chamadas técnicas de redução de danos, todavia o assunto ainda é muito novo para os operadores do direito processual penal pátrio, razão pela qual se faz necessário trazer para dentro da academia jurídica, discussões acerca desses métodos.
Uma das alternativas que serão sugeridas nesse capítulo é a aplicação da entrevista cognitiva como método de inquirição.
Inicialmente desenvolvida na década de 1980, por Edward Geiselman e Ronald Fischer, o método da entrevista cognitiva surgiu como uma alternativa aos interrogatórios tradicionais, visando melhorar a qualidade e a precisão dos depoimentos colhidos. Podendo ser utilizado por qualquer entrevistador, a entrevista cognitiva permite potencializar a qualidade dos depoimentos prestados por vítimas e testemunhas de crimes, permitindo que haja um maior grau de confiabilidade na prova colhida.
O grande diferencial da técnica de entrevista cogntiva é o fato de que o entrevistador, ao perguntar, mantém-se neutro, não projetando suas convicções ao formular perguntas fechadas, como, via de regra, ocorre no método tradicional de inquirição. Não há sugestões, muito pelo contrário, busca-se reduzir o grau de induzimento nas respostas do entrevistado.
Ao longo do presente trabalho, buscou-se compreender o que é, como se forma e quais são os problemas que envolvem a memória no âmbito do direito processual penal, com especial ênfase ao fenômeno da falsificação de memórias e sua implicação na prova testemunhal.
Neste diapasão, percebeu-se que o testemunho é um dos meios de prova capazes de trazer ao processo informações importantes do fato pretérito que se pretende reconstruir, por meio de um processo de captação, armazenamento e resgate de dados percebidos do mundo exterior.
Ocorre, porém, que a memória humana é suscetível a inúmeras falhas, permitindo a ocorrência de vários e não raros equívocos no momento do testemunho.
A necessidade de abordar de maneira crítica a fragilidade da prova testemunhal surge da constatação de que os tribunais brasileiros cada vez mais condenam homens e mulheres exclusivamente com base no testemunho, sem que se faça uma análise mais detida do que foi dito pelos depoentes.
Ressalta-se, por oportuno, que não se busca aqui concluir pelo afastamento da palavra de uma testemunha ocular ou da própria vítima do fato que se busca reconstruir, muito pelo contrário! O que se busca é dar maior credibilidade ao depoimento, por meio da implementação de métodos que possam assegurar maior robustez ao testemunho, sempre partindo do pressuposto de que a presunção em nosso ordenamento é de inocência, e não de culpabilidade.
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http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/10/aprendi-ter-fe-diz-inocentado-apos-7-meses-preso-por-estupros-no-rio.html
Bacharelanda do curso de Direito da Universidade Brasil (campus Fernandopólis SP)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DAYANE CRISTINA FáVARO, . Os reflexos das falsas memórias na prova testemunhal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2019, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52908/os-reflexos-das-falsas-memorias-na-prova-testemunhal. Acesso em: 23 dez 2024.
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