RESUMO: O presente artigo analisou o sistema das capacidades adotado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD estudando a dificuldade enfrentada nos processos de interdição para representação desses vulneráveis e os limites atribuídos ao seu curador na assistência por ele exercida, bem como a ausência de uniformização judicial quanto ao posicionamento a ser adotado. Assim, buscou-se observar os efeitos e dúvidas acarretadas por essa problemática na (in)validade dos atos jurídicos praticados por esse grupo. Ademais, foi utilizado o método dedutivo-analítico para elaboração deste.
Palavras-chaves: Pessoa com Deficiência. Capacidade Civil. Validade dos atos jurídicos.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Interdição e Curatela: Adequação à Tutela Efetiva das Pessoas com Deficiência. 3. Tomada de Decisão Apoiada: Não Aplicação às Pessoas com Deficiência sem Capacidade de Discernimento para os Atos da Vida Civil. 4. (In)Validade dos Atos Jurídicos Realizados por Pessoas com Deficiência sem Capacidade de Discernimento para os Atos da Vida. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Com a promulgação do CPC/2015 o procedimento de interdição e concessão de curatela no ordenamento jurídico brasileiro se alterou em uma tentativa
de acompanhar as modificações trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) quanto à sistemática das capacidades no CCB/02, principalmente no tocante às pessoas com deficiência a fim de garantir uma maior proteção a essa classe.
Todas as pessoas com deficiência passaram a ocupar um mesmo status – o de plenamente capazes para os atos da vida civil, independentemente da sua condição de deficiência. Entretanto, ainda, tornou-se possível enquadrar as pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento como relativamente capazes – não pela sua condição de deficiente, mas por não possuírem condição de exprimir a sua vontade.
Contudo, conceder as pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento o status de relativamente incapazes traz inúmeras consequências e prejuízos a elas, pois ainda as deixam vulneráveis em diversos aspectos cotidianos da vida civil.
Nessa toada, aborda-se, também, o instituto da Tomada de Decisão Apoiada (TODA) e seus aspectos de aplicações as pessoas com deficiência em cada uma de suas peculiaridades.
Assim, devido a isso discute-se acerca da in(validade) dos atos praticados pelas pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento e seus efeitos práticos no plano jurídico de validade; bem como as decorrências dessa situação e o posicionamento dos Tribunais Superiores.
2 INTERDIÇÃO E CURATELA: ADEQUAÇÃO À TUTELA EFETIVA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 correntes e divergências foram adotadas quanto a ainda possibilidade do processo de interdição das pessoas com deficiência, posto o art. 1.072, II, do CPC haver revogado os antigos dispositivos do CCB/2002 que faziam menção à interdição. Em contrapartida, o código processual manteve regramento acerca do procedimento dentre seus artigos 747 a 763. Por isso, paira-se o questionamento se extinta a interdição.
Sabe-se que a Lei 13.146/2015 ao revogar expressamente a interdição da pessoa com deficiência, previu a substituição desse instituto pela curatela - disposta no art. 84, §1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) - a qual conforme a lei apenas poderá ser estabelecida parcialmente com alcance patrimonial e/ou negocial (art. 85, EPD), devendo o juiz no momento de decretação da sentença de curatela determinar os limites do seu alcance. Estar-se-á, assim, diante um conflito de normas, em que por o EPD tratar de uma curatela específica para as pessoas com deficiência deverá ser o aplicado, recorrendo-se apenas ao código processual subsidiariamente.[1]
Acontece que, essa questão se estende além da simples abrangência da representação concedida pelo magistrado no momento de concessão da curatela, mas da capacidade jurídica concedida à pessoa com deficiência que estará desprotegida em algumas condições por possuir status de relativamente incapaz. O que se diga de passagem é totalmente incoerente ao ordenamento.
De acordo com o Estatuto, a pessoa com deficiência deverá “quando necessário ser submetida a curatela”. Contudo, “a interdição deve ser encarada como medida excepcionalíssima, na medida em que visa modificar o status personae de alguém”.[2] Por isso, o juiz possui a discricionariedade de avaliar no decorrer da instrução (por meio da inspeção judicial e prova pericial - que são provas obrigatórias[3]) os limites da decisão de interdição, não ficando assim, limitado aos requisitos da petição inicial,[4] tão logo, a decisão será concedida de modo a visar o melhor interesse do interditado inexistindo sentença extra ou citra petita por determinar termos fora da inicial.
Faz-se importante destacar que a natureza dessa sentença é declaratória e constitutiva e produz efeitos ex-nunc, em regra. Portanto, não existirão prejuízos aos atos praticados antes da sua declaração.[5]
Em contrário sensu, o próprio Estatuto no §1º do art. 85 exclui dos limites da curatela as vontades de cunho íntimo e subjetivos. Então, o que fazer com aqueles que possuem déficit cognitivo, os quais não os permitem grau de consciência suficiente nem para tomar tais tipos de decisões?
Para resolver essa controvérsia foi elaborado o Enunciado 637 na VIII Jornada de Direito Civil admitindo a possibilidade da expansão da outorga dos poderes do curador para os atos de natureza existencial, desde que especificados na sentença.[6] Logo, haverá uma interdição total. Tal raciocínio justifica-se, pois, por ser a proteção à pessoa com deficiência exigência constitucional, na existência de conflito de duas normas sobre como deva prosseguir o ordenamento jurídico acerca desse assunto, a aplicação da norma mais benéfica deve prevalecer, conforme disposição do art. 4ª, nº 4, do CDPD.[7] Isto posto, o CPC perfaz-se como a norma mais favorável as pessoas com deficiências com a manutenção da interdição e a extensão dos poderes da curatela – quando necessário.
É fato que o processo de interdição continuou previsto no CPC/2015 e com isso surgiu o questionamento pela doutrina sobre qual seria o meio mais viável para o reconhecimento da incapacidade desses vulneráveis quando da interdição anterior ao Estatuto - se com a revogação se tornariam automaticamente capazes ou necessitaria de uma ação para o levantamento da interdição.
Duas foram as correntes levantadas: a primeira defendida por José Fernando Simão é que com a revogação eles se tornam automaticamente capazes,[8] pois se trata de uma questão de estado, qual seja, a capacidade do deficiente faz parte do seu estado natural. “As leis de estado têm eficácia imediata e atingem todos que se encontram naquela situação.”[9], bem como não há lei que justifique a incapacidade da pessoa com deficiência. Já na segunda vertente, Pablo Stolze Gagliano e Flávio Tartuce defendem que é preciso o ajuizamento da ação de levantamento de interdição, pois não poderia a pessoa que era antes do EPD interditada se tornar automaticamente capaz. Dessa forma, não interposta a ação seria mantida a interdição em todos os termos antes válidos - limitados ao Estatuto - e a capacidade plena somente seria adquirida por meio do levantamento da interdição. [10]
Apesar da divergência, hoje prevalece na doutrina o entendimento acerca da necessidade da ação de levantamento da interdição, tendo ele maior adesão, inclusive na prática jurídica e que para fazê-la seria necessário seguir os ditames do art. 756 do CPC/2015.
Deve-se enxergar que “a curatela é o instrumento pelo qual a pessoa que não possui discernimento possa exercer sua capacidade civil em sua plenitude por faltar-lhe a capacidade intelectual de fato.”[11] Esse exercício ocorre por meio da assistência de um curador que será nomeado pelo juiz através de um processo de interdição.
Ademais, com a entrada em vigor do EPD muito da dinâmica de proteção em relação aos institutos representativos no ordenamento se modificaram. Deixou de haver a interdição total, mas apenas o seu procedimento processual para a concessão da curatela com limites pré-estabelecidos pelo magistrado; criou-se a tomada de decisão apoiada, que nada mais é do que um procedimento com escolhas de apoiadores a ser realizado pelo próprio apoiado. Contudo, essas alterações legislativas a fim de conceder igual capacidade às pessoas com deficiência acabaram ocorrendo em desarmonia com o art. 12 da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), pois desamparou as que não possuem discernimento para os atos da vida civil.
3 TOMADA DE DECISÃO APOIADA: NÃO APLICAÇÃO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA SEM CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO PARA OS ATOS DA VIDA CIVIL
A Tomada de Decisão Apoiada (TODA) está disposta no art. 1783-A do CCB/02 e foi introduzida pelo art. 116 do EPD, sendo um modelo alternativo à curatela. Ele foi pensado de forma a se buscar privilegiar o espaço da pessoa com deficiência, sua autonomia e confiança para os atos da vida civil, de forma que ela possa livremente escolher sozinha seus apoiadores para lhe auxiliar em seus interesses.
Nesse sistema de assistência deverá por iniciativa da pessoa com deficiência serem nomeadas duas pessoas “com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade."[12] Atenta-se que ele se aplica a todo e qualquer indivíduo que se enquadre na classificação de pessoa com deficiência, inclusive daquele possuidor de deficiência mental. [13]
Nele o indivíduo mantém a sua capacidade de manifestação, tendo os apoiadores somente o poder de ratificar o seu ato. Portanto, a realização de tomada de decisão apoiada não influencia na perda da capacidade do sujeito, permanecendo plenamente capaz para validar os seus atos jurídicos.[14]
Contudo, o enunciado 640 da VIII Jornada de Direito Civil ressalvou que “a tomada de decisão apoiada não é cabível, se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela.” Assim sendo, para os indivíduos que não possuem autodeterminação ou falta de habilidade para emissão de vontade, ou seja, aquelas pessoas que não possuem discernimento ou compreensão suficientes por alguma deficiência mental. A TODA é apenas aplicável para pessoas com condição de vulnerabilidade, porém com pleno desenvolvimento social, pois se trata de um mecanismo realizado por um negócio jurídico que necessita de compreensão. [15]
Observando toda essa problemática, faz-se necessário observar legislações vizinhas e semelhantes que possam oferecer uma solução a essa situação. Pois bem, Portugal promulgou no dia 14 de agosto 2018, a Lei nº 49/2018, que estabelece o instituto do “maior acompanhado” e elimina do Código Civil a interdição e a inabilitação.[16] O regramento dessa legislação possui objetivos e disposições semelhante a TODA sendo mais cuidadosa e avançada no tocante à igualdade material das pessoas com deficiência.
A legislação portuguesa diferencia-se da brasileira em diversos pontos e aspectos práticos, pois ela busca efetivar a garantia de igualdade de tratamento oferecida no art. 12, ponto 4 da CDPD. Assim, realizando um comparativo dos dois dispositivos normativos observa-se que em Portugal exige-se apenas um apoiador – podendo-se, excepcionalmente, haver mais; não apenas o acompanhado poderá fazer o requerimento de representação, mas também outros legitimados - sendo o MP (dispensada autorização) e o juiz quem designará o apoiador; o acompanhante possui poderes gerais de representação (assegurados em lei).[17] Logo, “em ambos os ordenamentos há a preocupação de dar às pessoas com deficiência uma ampla possibilidade de exercício dos direitos, embora com um suporte, limitado e flexível.” [18] Portanto, apesar de certos da tentativa de eliminar a interdição são inábeis de afastar integralmente meios de representação e assistência.
Quanto à questão do pedido de apoio na TODA, por mais que a lei disponha de que apenas caiba ao acompanhado essa solicitação, o entendimento doutrinário é divergente, posto que se defende também ser possível uma legitimidade alargada com a inclusão daqueles do rol da curatela.[19] Contudo, em sentido contrário foi elaborado o Enunciado 639, na VIII Jornada de Direito Civil no sentido de que “a opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade exclusiva da pessoa com deficiência”.
Ainda não se sabe se o novel instituto português terá efetividade, porém é possível perceber que ele supre deficiências existentes na legislação protetiva brasileira de representação e assistência, principalmente no tocante às pessoas sem discernimento cognitivo ao possibilitar que sejam gerais os poderes de representação concedidos pelo magistrado, bem como um rol mais alargado de legitimados para o requerimento do instituto.
Entretanto, mesmo que essa curatela trate de pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento, não poderá ser concedida de forma total, pois infringiria o art. 6º do EPD – o qual os torna capazes para os atos da vida civil, restringindo apenas os de natureza patrimonial e negocial, uma vez que isso os qualificaria como absolutamente incapazes - condição essa restrita aos menores de 16 anos.
4 (IN)VALIDADE DOS ATOS JURÍDICOS REALIZADOS POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA SEM CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO PARA OS ATOS DA VIDA
Os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos constituem parte nuclear da norma, ou seja, sua disposição normativa influi diretamente na eficácia jurídica.[20] Porém, é mister atentar que a vontade do agente é um dos constitutivos do suporte fático dos atos jurídicos, logo, será elemento de existência desse ato e fundamental para a sua validade. [21]
São considerados elementos do suporte fático dos atos jurídicos: o ato humano volitivo, a consciência quanto à exteriorização da vontade e o resultado produzido por esse ato, seja ele lícito ou não.[22]
Por ser a vontade essencial a constituição do fato jurídico ela deverá ser exteriorizada, pois sozinha é insuficiente para fazê-lo existir, sendo constituída pelo novo regramento em duas etapas: tomada de decisão – consciência da decisão do ato, qual seja, vontade consciente – e exteriorização da vontade. E, a sua inexistência deverá ocasionar a nulidade do ato jurídico.[23]
Entretanto, a alteração na sistemática das capacidades realizada pelo EPD, a qual impossibilitou a concessão as pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento o status de absolutamente incapazes acarretou uma influência direta na dinâmica da (in)validade dos atos jurídicos praticados por eles, vez que passaram a estar expostos a possíveis nulidades. Assim, não mais poderão ser considerados nulos, como antes dispunham alguns dispositivos do CCB/02, pois passam a inexistir os fundamentos que anulavam os atos praticados pelas pessoas com deficiência consideradas incapazes.
A princípio, é mister destacar que diferente do que traz o Estatuto igualando as pessoas com deficiência, pessoas sem discernimento não devem ser confundidas com “pessoas que por causa transitória ou permanente não puderem expressar a sua vontade”. Essas últimas se tratam daqueles indivíduos que possuem discernimento, mas que por algum motivo excepcional estão impossibilitados de expressar a sua vontade, como por exemplo alguém que esteja em coma. Nesse caso devem indiscutivelmente ser considerados absolutamente incapazes.[24]
Já quando se fala das pessoas sem discernimento faz-se referência as pessoas com déficit cognitivo que as impossibilitam de realizar sozinhas os atos da vida civil, sejam de natureza patrimonial, negocial, íntimo ou subjetivos.[25] Por isso, também enquadrá-las na mesma classe das demais pessoas com deficiência ou na hipótese do inciso I, do art. 1767, CCB/02 é totalmente inadequado, pois merecem uma atenção especial, uma vez que exigem cuidados diferenciados.
O Código Civil em seu art. 104, I traz como requisito de validade do negócio jurídico a capacidade plena da parte celebrante, sendo a capacidade elemento complementar do suporte fático do ato, pois mesmo aqueles praticados em contrariedade à lei podem ser alterados de acordo com a capacidade civil.
No intuito de proteção aos que se enquadravam como absolutamente incapazes e a fim de reduzir sua vulnerabilidade, o texto normativo civilista trouxe vastas hipóteses de proteções restritas apenas para esses. Contudo, devido a um deslize legislativo na interpretação e transposição dos dizeres da Convenção para a elaboração do EPD as pessoas sem discernimento cognitivo – que antes eram consideradas absolutamente incapazes - restaram sem amparo legal.
Como um dos exemplos mais nítidos dessa situação, tem-se o decurso da prescrição e decadência contra todas as pessoas com deficiência (mesmo aquelas que não possuem capacidade cognitiva). Acontece que de acordo com o enunciado normativo da incapacidade absoluta não deve haver contra elas ocorrência de nenhum desses institutos. Contudo, o EPD os retirou do rol de absolutamente incapazes, o que os impossibilitam de usufruir do privilégio legal.
Contudo, mesmo com essa alteração jurídica a doutrina e a algumas decisões tem se encaminhado para a defesa da impossibilidade do decurso do prazo prescricional e decadencial contra as pessoas com deficiência sem capacidade de discernimento, uma vez que conceitualmente apenas poderiam se enquadrar como absolutamente incapazes. Veja-se:
[...] 1. Embora a redação do art. 3º do Código Civil tenha sido alterada pela Lei 13.146/2015 ("Estatuto da Pessoa com Deficiência"), para definir como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos, e o inciso I do art. 198 do Código Civil disponha que a prescrição não corre contra os incapazes de que trata o art. 3º, a vulnerabilidade do indivíduo portador de deficiência psíquica ou intelectual não pode jamais ser desconsiderada pelo ordenamento jurídico, ou seja, o Direito não pode fechar os olhos à falta de determinação de alguns indivíduos e tratá-los como se tivessem plena capacidade de interagir em sociedade em condições de igualdade. Assim, uma interpretação constitucional do texto do Estatuto deve colocar a salvo de qualquer prejudicialidade o portador de deficiência psíquica ou intelectual que, de fato, não disponha de discernimento, sob pena de ferir de morte o pressuposto de igualdade nele previsto, dando o mesmo tratamento para os desiguais.
2. Sob pena de inconstitucionalidade, o "Estatuto da Pessoa com Deficiência" deve ser lido sistemicamente enquanto norma protetiva. As pessoas com deficiência que tem discernimento para a prática de atos da vida civil não devem mais ser tratados como incapazes, estando, inclusive, aptos para ingressar no mercado de trabalho, casar etc. Os portadores de enfermidade ou doença mental que não têm o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil persistem sendo considerados incapazes, sobretudo no que concerne à manutenção e indisponibilidade (imprescritibilidade) dos seus direitos.
3. In casu, tendo restado comprovado que a parte autora não possui discernimento para a prática dos atos da vida civil, deve ser rigorosamente protegida pelo ordenamento jurídico, não podendo ser prejudicada pela fluência de prazo prescricional ou decadencial. [...] [26] (grifos nossos)
Em contrapartida, o Min. Luís Felipe Salomão proferiu decisão no Resp. 1.595.136 em sentido inverso, no qual entendeu que uma vez nomeado curador contra a pessoa com deficiência sem capacidade de discernimento passará contra a ela a transcorrer os prazos de prescrição e decadência a partir do momento da nomeação. Afirma, ainda, que “o exercício da pretensão fica postergado para o momento do suprimento da incapacidade”[27].
O entendimento do Ministro merece algumas críticas e ressalvas. Sabe-se que é uma das atribuições do curador cuidar e prezar pelos interesses do curatelado, mas isso não acontece cem por cento das vezes. Muitos são os casos de intervenção judicial e ministerial para a mudança do curador, não é à toa que a legislação prevê prestação de contas e comunicação ao magistrado acerca da curadoria. As situações de negligências são as mais diversas e atribuir as consequências das atitudes do curador a esse vulnerável é, no mínimo, imprudente. Além de que após decorridos os prazos dos institutos e da perda do direito pela falta do seu exercício haverá em qualquer das hipóteses o trânsito em julgado da coisa material – o que fará coisa julgada e, assim, a perda definitiva do direito pela parte prejudicada.
Ainda, é importante questionar-se quanto à sua manifestação de vontade como celebrante anuente nos negócios jurídicos básicos e essenciais à vida civil. Desse modo, como farão para contratar serviços?
Numa primeira hipótese, colocam-se as pessoas com deficiência sem discernimento que já estejam devidamente interditadas e curateladas, essas serão consideradas relativamente incapazes, contudo de acordo com o conceito normativo elas deverão expressar a sua vontade de contratar e ser assistidas, como exemplo traz-se a contratação de um plano de saúde em que seja titular. Porém, na realidade, depara-se com situações em que se tornam impossíveis a sua concretização, pois ou ela será induzida a adimpli-lo pelo seu curador - mas sem a menor consciência (logo, haverá vício de consentimento que o tornará nulo) ou sempre será colocada como dependente – justamente pela impossibilidade da situação (fato que seria facilitado se possuísse a condição de absolutamente incapaz).
Já no segundo contexto, essas pessoas com deficiência sem discernimento ainda não foram submetidas ao processo de interdição e, por isso, seriam perante o ordenamento jurídico plenamente capazes (arts. 3º, 4º do CCB/02 e art. 84 do EPD). Então, uma pessoa com deficiência que não seja visivelmente sem discernimento, mas que de fato não o possua a ponto de tomar decisões na vida civil - caso celebre um contrato, terá ele absolutos deveres apenas por ela não ser interditada? Sabe-se que não. Igualmente deverá estar submetido aos vícios de nulidade contratuais.
Repara-se o prejuízo e desgaste desnecessário – inclusive processual - que se tem nesse sentido, posto que no início da relação contratual não deixou de se tratar de um contrato válido celebrado com pessoa que seria para os termos legais capaz.
Observadas as situações é importante que não se criem paradigmas pré-estabelecidos para nenhuma classe de vulneráveis com presunção antecipada da sua capacidade jurídica. A generalização acabou acarretando prejuízo, por mais que não fosse a intenção do Estatuto, pois a conclusão lógica que se chega é que “se a deficiência não é mais causa de incapacidade civil, a invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio jurídico por incapacidade derivada de deficiência não existe mais”. [28]
Nesse contexto, foi criado o Projeto de Lei nº 757/2015 que prevê a alteração do art. 3º do CCB/02 com a ampliação do rol de absolutamente incapazes para a inclusão das pessoas que não possuírem o discernimento necessário. Isto – faz-se essencial para a proteção dessas e funcionamento do ordenamento jurídico, posto que as garantias protetivas asseguradas aos que se encontram nesse status são para eles direitos fundamentais inerentes a sua condição – seja temporária ou não.
Acontece que o EPD teve a preocupação de extinguir rótulos e termos que fizessem alusão a preconceitos na busca de colocar as pessoas com deficiência em condição de igualdade. Porém, para aquelas com diferentes graus de deficiência um pequeno status protetivo pode fazer toda diferença numa imensidão de preconceitos e dificuldades diárias. Sabe-se que não foi a intenção do legislador desampará-las, muito pelo contrário ao editar a lei procurou conceder o máximo de direitos, contudo esqueceu de ressalvá-las a medida das suas capacidades cognitivas de desempenho para exercê-los sozinho.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É evidente que a mudança no sistema das capacidades colocou as pessoas sem capacidade de discernimento como presumidamente capazes de modo que, mesmo após uma possível ação de interdição com nomeação de curador, o máximo de proteção legislativa que se poderá alcançar para os seus atos da vida civil é através da condição de relativamente incapaz.
A impossibilidade da interdição total faz com o que o curador nomeado não detenha poderes amplos ou caso o tenha seja por determinação do magistrado contra os dizeres legais. E, isso está por acarretar uma confusão jurisprudencial, pois não se alcança um consenso sobre a postura que deve ser adotada. Fica nítido que a maior prejudicado nessa situação toda é a pessoa com deficiência sem discernimento uma vez que teve seus direitos reduzidos pelo EPD e necessita que o legislador corrija esse equívoco, pois seria a forma mais ágil de solucionar todos esses conflitos que estão ocorrendo. Já que ficou claro que a TODA não é um instituto apto para ampará-la.
Por fim, considerar válido um ato jurídico praticado por qualquer pessoa com deficiência porque elas são como um todo presumidamente capazes é uma atitude precipitada. Existem peculiaridades em cada doença, principalmente as cognitivas, não perceptíveis aos olhos de um leigo, o que pode lesar essa pessoa em situação de vulnerabilidade. Nem todas as pessoas com deficiência que não possuem capacidade de discernimento para os atos da vida civil são interditadas, fato que nem por isso as tornam capazes para celebrar contratos.
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[1] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino; AZEVEDO, Rafael Vieira de. Da Interdição: arts. 747-758. In: GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; et alii (Org.). Novo Código de Processo Civil comentado – Tomo II (art. 318 ao art. 770). São Paulo: Lualri, 2017, p. 560.
[2] Ibidem, p. 562.
[3] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino; AZEVEDO, Rafael Vieira de. op. cit., p. 565.
[4] Ibidem, p. 562.
[5] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino; AZEVEDO, Rafael Vieira de. op. cit., p. 563.
[6] Enunciado 637 da VIII Jornada de Direito Civil: Art. 1.767: Admite-se a possibilidade de outorga ao curador de poderes de representação para alguns atos da vida civil, inclusive de natureza existencial, a serem especificados na sentença, desde que comprovadamente necessários para proteção do curatelado em sua dignidade.
[7] VIII JORNADA DE DIREITO CIVIL. Enunciado 637. Conselho da Justiça Federal. Centro de Estudos Judiciários. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/viii-enunciados-publicacao-site-com-justificativa.pdf>. Acesso em: 13/09/2018.
[8] SIMÃO, José Fernando. Estão todos os interditados livres da incapacidade ou precisamos de sentença para levantar as interdições? Sim, sem sentença. Jornal Carta Forense. Abril/2017. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/estao-todos-os-interditados-livres-da-incapacidade-ou-precisamos-de-sentenca-para-levantar-as-interdicoes--sim-sem-sentenca/17464>. Acesso em: 20/09/2018.
[14] Idem.
[15] VIII JORNADA DE DIREITO CIVIL. Enunciado 640. Conselho da Justiça Federal. Centro de Estudos Judiciários. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/viii-enunciados-publicacao-site-com-justificativa.pdf>. Acesso em: 13/09/2018.
[17] Idem.
[18] BORGARELLI, Bruno de Ávilla. O "maior acompanhado": uma novidade no Direito português (parte 2). Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-out-08/direito-civil-atual-maior-acompanhado-novidade-direito-portugues-parte>. Acesso em: 26/08/2018.
[19] BORGARELLI, Bruno de Ávilla. O "maior acompanhado": uma novidade no Direito português (parte 2). op. cit.
[20] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 103
[21] AZEVEDO, Rafael Vieira de. op cit. p. 83.
[22] AZEVEDO, Rafael Vieira de. op cit. p. 186.
[23] MIRANDA, Pontes de apud AZEVEDO, Rafael Vieira de. op cit. p. 86.
[24] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 757 de 2015. op. cit.
[25] Idem.
[26] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 4ª Região. APL: 5017423-95.2013.4.04.7108/RS; Relator: Paulo Afonso Brum Vaz; Quinta Turma; Data do Julgamento: 28/03/2017.
[27] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; REsp. 1595136/SP 2014/0346410-9; Relator: Luís Felipe Salomão; Data de Publicação: DJ: 01/12/2017.
[28] GAGLIANO, Pablo Stoze. A invalidade do negócio jurídico em face do novo conceito de capacidade civil. Revista Eletrônica de Direito da UNIFACS. n. 220. 2018. Disponível em:<https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5675/3560>. Acesso em: 25/09/2018. p. 5.
Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE); Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Juliana Pereira. (In)validade dos atos jurídicos praticados pelas pessoas com deficiência na sistemática das capacidades da Lei 13.146/2015 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2019, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52929/in-validade-dos-atos-juridicos-praticados-pelas-pessoas-com-deficiencia-na-sistematica-das-capacidades-da-lei-13-146-2015. Acesso em: 23 dez 2024.
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