Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Dimensão histórico-cultural. Peter Häberle. Tribunal Constitucional de Portugal.
INTRODUÇÃO
Realizar um paralelo entre ordenamentos jurídicos (direito comparado), ordinariamente, é uma tarefa difícil. Isso se deve muito pelo fato de que as estruturas jurídico-políticas e as raízes históricas dos Estados soberanos nem sempre são similares, o que dificulta a transposição natural do arcabouço teórico do Estado soberano paradigma para o Estado soberano objeto de análise.
Da mesma forma, a análise de um ordenamento jurídico estrangeiro (direito estrangeiro), via de regra, guarda certa dificuldade, pois, não raro, demanda do pesquisador um estudo de institutos jurídicos próprios.
A escolha do direito lusitano como objeto de pesquisa, mais especificamente do acórdão n. 90-105-2, oriundo da 2ª Secção do Tribunal Constitucional de Portugal, relatado pelo Conselheiro Bravo Serra, entretanto, ameniza tais dificuldades, tendo em vista a sua conhecida influência no direito brasileiro e, consequentemente, semelhança de institutos jurídicos. Nesse sentido, Pontes de Miranda afirma que “o direito no Brasil não pode ser estudado desde as sementes; nasceu de galho de planta que o colonizador português trouxe e enxertou no novo continente”[2]. No mesmo sentido, Francisco Amaral arremata que o direito brasileiro, herdeiro dos ideários ocidentais, permaneceu fiel à tradição romano-canônica-lusitana, dignificando-a e rejuvenescendo-a[3].
Insta observar, ademais, que, além da inspiração em Ingo Wolfgang Sarlet[4], há outra razão que motivou o presente trabalho: o acórdão em questão inclina-se consideravelmente para a dimensão histórico-cultural de Peter Häberle e a sua análise permite enxergar como, na prática, um Tribunal Constitucional enfrentou os conceitos de uma das dimensões teóricas da dignidade da pessoa humana.
Feitas tais considerações, passa-se à análise da perspectiva histórico-cultural preconizada por Peter Häberle e, em seguida, à análise do acórdão n. 90-105-2 oriundo da 2ª Secção do Tribunal Constitucional de Portugal.
1 DIMENSÃO HISTÓRICO-CULTURAL (PETER HÄBERLE)
Peter Häberle, em sua obra Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaf (A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal)[5], evidencia o seu entendimento sobre a dignidade da pessoa humana, pautada na dimensão histórico-cultural, cuja abordagem será feita daqui em diante.
Häberle destaca, primeiramente, que a incorporação da dignidade humana aos textos jurídicos somente ocorreu após ter sido culturalmente trazida à tona através dos pensadores clássicos, a exemplo de Kant. Nesse sentido, a dignidade humana encontra-se localizada no patamar dos fenômenos a serem utilizados de maneira interdisciplinar e científico-cultural[6].
Prossegue asseverando que, em relação ao pensamento pré-constitucional da dignidade humana, houve uma preparação cultural aos textos jurídicos sobre o tema, sendo cada manifestação científica, sobretudo filosófica ou sociológica, potencialmente recepcionada no plano jurídico como fator produtivo para um texto garantidor da dignidade humana “no sentido da Constituição”[7].
É possível verificar, nesse contexto, aquilo que Häberle denominou de “periodizações históricas” sobre a dignidade humana. Nessa perspectiva, a dignidade (“dignitas”) na Antiguidade era vista como “caracterização de uma posição social dentro da sociedade e distinção de cada dignidade humana diante de criaturas não humanas”, ao passo que no Estoicismo representava “compartilhamento pelos homens do atributo da razão”[8]. O conceito ainda evolui historicamente, passando pelo Cristianismo da Antiguidade e da Idade Média (imagem e semelhança dos homens para com Deus), por Pico della Mirandola, na Renascença (dignidade compreendida a partir da essencial possibilidade escolha do homem), pelo Iluminismo (concepção de liberdade, associada à ideia estoica de dignidade como compartilhamento da razão), Pufendorf (igualdade de todos os homens), até se chegar a Kant, o qual identificou a dignidade como sendo “um valor interno absoluto”, isto é, aquela pessoa “aparelhada com identidade moral e auto-responsabilidade, dotada de razão prática e capacidade de autodeterminação racional”[9]. Enfim, cada interpretação jurídico-constitucional não deve se afastar de tais conceitos, pois ela visualiza a dignidade humana “no âmbito da continuidade da tradição filosófica”[10].
Após sustentar a necessidade de se observar as padronizações históricas da dignidade humana, Häberle aduz que, em que pese o Tribunal Constitucional Federal Alemão tenha reconhecida tradição jurisprudencial, não se observa uma formulação suficientemente material e “manejável” sobre o que deva ser a dignidade humana[11]. É preciso, então, ter como ponto de partida o seguinte panorama: de um lado, encontra-se a tese de que a totalidade das garantias jurídicas referentes à pessoa; de outro, os deveres a ela associados, os quais, juntos, devem viabilizar aos homens se tornarem, serem e permanecerem pessoas[12]. Enxergam-se, à vista disso, duas questões, isto é, de que forma se constrói a identidade humana em dada sociedade e até que ponto se pode partir de um conceito de identidade interculturalmente válido, tido por “universal”[13].
Para respondê-las, Häberle reputa essencial encontrar um equilíbrio entre as necessidades do indivíduo e as pretensões dos outros, considerando-se que os conceitos psicológicos de identidade visualizam o problema principal da identidade humana na mediação entre tal conflito[14]. Diante disso, esses conflitos devem ser “superados sob o pano de fundo das capacidades adquiridas para o exercício de papeis sociais, de tal sorte a reproduzir uma continuidade aceitável na biografia do indivíduo”[15].
Com efeito, Häberle compreende que a discussão no sentido de identificar determinados componentes fundamentais como “constantes” da identidade humana em todas as culturas pode ser resumida reconhecendo que tal identidade é tratada de maneira específica em cada cultura, sobretudo em virtude de que o homem se socializa justamente em uma ordem comunitária com uma cultura específica[16].
Diante de tudo isso, Häberle extrai algumas observações.
Primeiramente, o processo de formação da identidade é encontrado no âmbito de uma liberdade enquadrada em determinada “moldura”, a qual representa, parcialmente, a “superestrutura” jurídica da sociedade, e por meio da qual o princípio da dignidade humana transmite ao indivíduo certas “concepções normativas a respeito da pessoa”, as quais, a seu turno, são impregnadas pela cultura de onde surgiram[17].
Além disso, de acordo com Häberle, deve-se elidir interpretação diversa da seguinte: a dignidade humana não se sujeita apenas a ter o seu conteúdo analisado de modo culturalmente específico[18]. À vista disso, por meio das concepções interculturalmente válidas de identidade, constata-se que certos componentes fundamentais da personalidade humana devem observados em todas as culturas, representando, igualmente, o conteúdo de um conceito de dignidade humana insuscetível de uma redução culturalmente específica[19].
Importa ressaltar, ademais, que a referida “moldura”, que se destina ao desenvolvimento do homem como pessoa, não é estática. É por isso que o jurista alemão destaca que[20]:
Possibilidades asseguradas, portanto, socialmente aceitas, de desenvolvimento e comunicação – v.g., na forma de papeis profissionais definidos – constituem uma parte da (não apenas jurídica) moldura orientadora; a especificidade cultural das noções de dignidade humana transforma-se, com isso, em algo culturalmente específico no seu tempo, ao passo que a moldura orientadora, em função do crescente número de possibilidades de orientação, torna-se cada vez mais flexível e diferenciada. Um retorno a noções rígidas será difícil, quiçá impossível.
Sob essa perspectiva, a dignidade humana apresenta-se como a crescida e crescente biografia da relação Estado-cidadão (com a superação da separação entre Estado e sociedade, da relação Estado/sociedade-cidadão), sendo tal conceito compreendido em função da abertura daquela “moldura orientadora” da dignidade humana, num sentido amplo, que abarca as condições de possibilidade sociais e jurídicas[21].
Häberle aponta, ainda, outro corretivo de uma concepção de dignidade humana pura, específica de cada cultura, com base na visão de Niklas Luhmann, que, visualizando a abertura das fronteiras estatais e, com isso, culturais, na “sociedade mundial”, afasta aquela ideia restrita[22].
Por tais razões, Häberle assevera que os conceitos de dignidade humana não são mais hoje desenvolvidos exclusivamente no interior de uma sociedade, de uma cultura, mas também se orientam e se desenvolvem por meio de intercâmbios com outras culturas, sobretudo sob o manto dos pactos de Direitos Humanos[23].
Duas últimas questões da teoria haberliana são dignas de destaque.
A primeira delas relaciona-se com o fato de que, a partir do momento que uma Constituição se compromete com a dignidade humana, estabelecem-se, como consequência, os contornos da sua compreensão do Estado e do Direito, bem como uma premissa antropológico-cultural[24]. Tem-se, portanto, que “respeito e proteção da dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do Estado constitucional constitui a premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares”[25].
A segunda delas diz respeito à dupla direção protetiva da dignidade humana, ou seja, trata-se de um direito público subjetivo, direito fundamental do indivíduo contra o Estado (e contra a sociedade) e, simultaneamente, de um encargo constitucional endereçado ao Estado – dever que o ente público tem de proteger o indivíduo em sua dignidade em face da sociedade ou de seus grupos[26].
Em apertada síntese, esses são os ensinamentos de Peter Häberle acerca da dignidade da pessoa humana, que, como se verá a seguir, foram adotados, em alguma medida, pelo Tribunal Constitucional de Portugal.
2 DIREITO ESTRANGEIRO: ACÓRDÃO N. 90-105-2, TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE PORTUGAL[27]
Os fatos disseram respeito a um divórcio litigioso proposto por Dr. A. contra sua mulher, Dra. B., no Tribunal de Família de Lisboa, com fundamento no artigo 1781º, “a”, c/c art. 1782º, n. 1, ambos do Código Civil Português, que possuíam as seguintes redações:
Artigo 1781.º
(Ruptura da vida em comum)
São ainda fundamentos do divórcio litigioso:
a) A separação de facto por seis anos consecutivos;
b) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a quatro anos;
c) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de seis anos e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum.
Redacção dada pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro (sem grifos no original)
Artigo 1782.º
(Separação de facto)
1. Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.
2. Na acção de divórcio com fundamento em separação de facto, o juiz deve declaraquar a culpa dos cônjuges, quando a haja, nos termos do artigo 1787.º
Redacção dada pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro (sem grifos no original)
Em sua contestação, a parte ré sustentou que o artigo 1785º, n. 2, do Código Civil Português – que disciplina que o divórcio fundamentado no artigo 1781º, “a”, só pode ser requerido pelo cônjuge que invoca a ausência ou alteração das faculdades mentais do outro –, em atenção ao princípio constitucional da dignidade humana, previsto no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa, deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que o divórcio não pode ser decretado sem o consentimento do cônjuge inocente.
Em que pesem as alegações da ré, a ação foi julgada procedente em primeira instância, decretando-se o divórcio, entendimento que prevaleceu pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Irresignada, a parte ré interpôs recurso ao Tribunal Constitucional de Portugal, sustentando, em síntese, que: a) a dignidade da pessoa humana encontra-se protegida pelo artigo 1º da Constituição da República Portuguesa, sendo que o seu conteúdo corresponde ao que tem no espaço cultural humanista a que Portugal pertence; b) a decretação do divórcio, com fundamento no artigo 1781º, “a”, do Código Civil de Portugal constituiu violação à dignidade humana da recorrente, haja vista que o recorrido foi quem criou a situação da separação de fato sem qualquer motivo para tanto e, portanto, a recorrente é inocente; c) o fundamento legal utilizado para a decretação do divórcio viola a Constituição da República Portuguesa, sendo, pois, inconstitucional, por atentar contra a dignidade da pessoa humana; d) a decisão recorrida aplicou uma norma que se tornou inconstitucional.
O autor da ação, ora recorrido, aduziu, por sua vez, que: a) o recurso não deveria ser admitido, por ausência de cumprimento da exigência de esgotamento de todos os recursos que no caso caibam; b) não houve qualquer ofensa à dignidade da pessoa humana; c) a dignidade da pessoa humana é um conceito vago; d) a ausência de violação de qualquer dos direitos fundamentais apontados pela recorrente.
Para dirimir a controvérsia, o Tribunal Constitucional afastou, prontamente, a preliminar suscitada quanto à inadmissibilidade do recurso interposto. E assim o fez evidenciando que, não obstante fosse possível manejar o recurso para o tribunal pleno – ao qual o Código de Processo Civil atribuiu o status de recurso ordinário –, trata-se de recurso que transcende o cenário usual dos meios de impugnação das decisões judiciais, razão pela qual se obedece a uma singular forma de admissão e tramitação, conforme previsão nos artigos 765º e 766º do diploma normativo em questão, que possuíam a seguinte redação:
Artigo 765.º
(Interposição e efeito do recurso)
1. O recurso para o tribunal pleno não tem efeito suspensivo.
2. No requerimento de interposição indicar-se-á com a necessária individualização tanto o acórdão anterior que esteja em oposição com o acórdão recorrido, como o lugar em que tenha sido publicado ou esteja registado, sob pena de não ser admitido o recurso. O relator pode determinar que o recorrente seja notificado para apresentar certidão do acórdão anterior para seguimento do recurso.
3. Dentro de cinco dias, a contar da notificação do despacho que admita o recurso, o recorrente apresentará uma alegação tendente a demonstrar que entre os dois acórdãos existe a oposição exigida pelos artigos 763.º ou 764.º Se a não apresentar, o recurso é logo julgado deserto; se a apresentar, pode a parte contrária responder findo o prazo facultado ao recorrente.
4. Durante os prazos indicados no número anterior a secretaria facilitará o processo às partes, sem prejuízo do seu regular andamento, e passará certidão do acórdão recorrido e do requerimento de interposição do recurso, certificando narrativamente a data da apresentação deste e a da notificação ou publicação do acórdão.
5. As alegações são seguidamente autuadas com a certidão e o processo assim formado é presente à distribuição ou, se o recurso tiver sido interposto na Relação, é enviado ao Supremo, para ser distribuído.
Artigo 766.º
(Vista e julgamento da questão preliminar)
1. O processo vai com vista, por quarenta e oito horas, a cada um dos juízes da secção seguintes ao relator. Este tem vista a final por cinco dias e, na primeira sessão posterior, a secção resolverá, em conferência, se existe a oposição que serve de fundamento ao recurso.
2. Tendo o recorrido alegado que o acórdão anterior não transitou, a secção verificará qual é a situação na data em que vai decidir sobre a oposição, e abster-se-á de conhecer desta, ficando sem efeito o recurso, quando reconheça que o acórdão não passou em julgado. Até à sessão a que se refere o n.º 1, pode o recorrente alegar o que entender quanto ao trânsito em julgado do referido acórdão.
3. O acórdão que reconheça a existência da oposição não impede que o tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrário.
Justamente por isso, o órgão julgador entendeu que não seria razoável que eventual cabimento de um recurso como este represente um entrave à admissibilidade de recurso contra decisões nas quais caibam, igualmente, apreciação pelo Tribunal Constitucional.
Ainda sem adentrar ao mérito do recurso, o Tribunal entendeu por bem frisar que o caso em análise leva à Corte a discussão envolvendo não apenas a inconstitucionalidade, mas, efetivamente, o suporte normativo da norma aplicada, haja vista que a recorrente questionou a aplicação, realizada no âmbito da ação de divórcio litigioso, do artigo 1785º, n. 2, primeira parte, do Código Civil Português, que faculta, mesmo ao cônjuge culpado da separação, a possibilidade de requerer o divórcio, sem o consentimento do outro cônjuge, nos casos em que se estiver diante da hipótese normativa constante dos artigos 1781º, “a” e 1782º, n. 2, ambos do mesmo diploma legal.
Superadas as questões que antecediam ao exame do mérito recursal, o Tribunal passou a decidir sobre a alegada inconstitucionalidade do artigo 1785º, n. 2, primeira parte do Código Civil Português.
Com efeito, destacou a cúpula máxima do judiciário português que os artigos 1785º, n. 2, 1781º, “a”, e 1782º, n. 1, todos do Código Civil Português, possuíam redação atribuída pela Reforma do Código Civil, de tal sorte que essas modificações representaram um abandono da antiga concepção exclusiva de “divórcio-sanção”, adotada pelo Código Civil na sua versão original. Com isso, evocou-se a concepção de “divórcio-remédio”, ampliando-a para ideia de “divórcio-consumação” ou “divórcio-falência”, segundo a qual o vínculo matrimonial pode ser dissolvido, independentemente de culpa de qualquer dos cônjuges, se já tiver havido dissolução de fato, por inexistir possibilidade de retorno de vida em comum. Em vista disso, o Tribunal Constitucional destacou que o legislador português seguiu a orientação moderna de casamento, rompendo-se com o modelo tradicional e passando-se a compreendê-lo como sendo uma união de duas pessoas que buscam a, através dela, a sua felicidade e realização pessoal.
Sob essa perspectiva, o Tribunal destacou que a modalidade de divórcio amealhada nos autos exige a separação de fato por seis anos consecutivos, sendo que o requerimento de dissolução do vínculo matrimonial pode ser formulado por qualquer dos cônjuges, mesmo por aquele que deu causa à separação e que, por conta disso, é considerado “culpado”. E é justamente frente a essa última possibilidade que cinge a controvérsia levantada pela recorrente, segundo a qual haveria violação ao preceito normativo da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.
As razões da recorrente, todavia, não foram acolhidas pelo Tribunal Constitucional Português.
Sem embargo, o órgão julgador reconheceu que a dignidade da pessoa humana é um valor axial e nuclear da Constituição portuguesa, que inspira e fundamenta todo o ordenamento jurídico português. Nesse ponto, torna-se oportuno conferir a íntegra de um trecho do acórdão, a seguir transcrito[28]:
Não se trata efectivamente — na afirmação que desse valor se faz logo no artigo 1.º da Constituição — de uma mera proclamação retórica, de uma simples «fórmula declamatória», despida de qualquer significado jurídico-normativo; trata-se, sim, de reconhecer esse valor — o valor eminente do homem enquanto «pessoa», como ser autónomo, livre e (socialmente) responsável, na sua «unidade existencial de sentido» — como um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto de «validade» das respectivas normas». E, por isso, se dele não são dedutíveis «directamente», por via de regra, «soluções jurídicas concretas», sempre as soluções que naquelas (nas «normas» jurídicas) venham a ser vasadas hão-de conformar-se com um tal princípio, e hão-de poder ser controladas à luz das respectivas exigências (sobre o que fica dito, v., embora não exactamente no mesmo contexto, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 106 e segs. e, especialmente, pp. 130 e segs.). Quer tudo isto dizer — em suma — que o princípio da «dignidade da pessoa humana» é também seguramente, só por si, padrão ou critério possível para a emissão de um juízo de constitucionalidade sobre normas jurídicas.
Perscrutando verticalmente o tema, o Tribunal assentou que a concepção de dignidade da pessoa humana, particularmente o seu conteúdo concreto, não é um conceito puramente apriorístico e/ou a-histórico, mas algo que, decerto, se constrói ao longo da história e que, por essa razão, assume uma dimensão eminentemente cultural.
Em sequência, o Tribunal, tendo como premissa a concepção de que a dignidade da pessoa humana possui um viés histórico-cultural, advertiu que o legislador é o legitimado democrático para realizar essa concretização, ou seja, em cada momento histórico, cabe-lhe substancializar as reivindicações dos princípios abertos da Constituição, da mesma maneira que ocorreu com a dignidade da pessoa humana, inserindo-as no ordenamento jurídico. É por isso que, no entendimento do Tribunal, o controle judicial de constitucionalidade das soluções jurídico-normativas alcançadas pelo legislador deve ser empreendido com precaução, salvo quando não houver dúvidas de que o legislador, ao invés de concretizar, subverteu a matriz axiológica constitucional, hipótese em que é lícito ao Judiciário inferir pela inconstitucionalidade dessas soluções.
Após, o Tribunal ressaltou que o tema do divórcio é envolvido por diversos posicionamentos, que levam, até mesmo, a visões divergentes quanto à natureza jurídica do casamento, esclarecendo, no entanto, que a dissolução do vínculo conjugal fundamentada em causas objetivas não pode ser vista como uma afronta à dignidade da pessoa humana, especialmente quando se considera o matrimônio a partir de uma dimensão pessoal, e não institucional. Dessa forma, não se mostra admissível que o postulado da dignidade da pessoa humana do outro cônjuge imponha que o “cônjuge culpado” permaneça no vínculo matrimonial que já se desfez no mundo fático.
Com base nisso, afastando qualquer violação à dignidade da pessoa humana, a 2ª Secção do Tribunal Constitucional Português negou provimento ao recurso.
Em face do exposto, foi possível observar que, num caso envolvendo divórcio litigioso, fundamentado em uma causa que, supostamente, teria violado o princípio da dignidade da pessoa humana, a Corte Máxima de Portugal compreendeu-o a partir da dimensão histórico-cultural, preconizada por Peter Häberle.
A dimensão histórico-cultural da dignidade humana, atribuída a Peter Häberle, tem por efeito a evolução de valores consagrados pela identidade humana no decurso da história e espalhados por diversas culturas.
Tais ensinamentos, consoante visto ao longo deste trabalho, foram acolhidos pelo Tribunal Constitucional de Portugal, no acórdão n. 90-105-2, no qual esteve em discussão uma ação de divórcio litigioso, conclusão que se extrai, especialmente, pelo que se denominou de “periodizações históricas”.
Assim, mesmo sem mencionar expressamente a concepção do jurista alemão sobre a dignidade da pessoa humana, as raízes do acórdão não abrem margem para dúvidas da conexão com a teoria haberliana, especialmente quando o Tribunal Constitucional Português asseverou que a dignidade da pessoa humana é uma noção desenvolvida historicamente, o que lhe confere um aspecto cultural.
AMARAL, Francisco. Brasil, 500 anos: a influência do direito português no direito brasileiro. Revista Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, n. 17, 2000.
HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. Tradução por: Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Béatrice Maurer et al; org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
PONTES, DE MIRANDA; CAVALCANTE, Francisco. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, 1981.
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista brasileira de direito constitucional, v. 9, n. 1, p. 361-388, 2007.
TCP. Processo n. 39/88, Relator: Conselheiro Bravo Serra. Acórdão n. 90-105-2, proferido pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional de Portugal, em 29 de março de 1990. Tribunal Constitucional, 1990. Disponível em: <https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900105.html>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] PONTES, DE MIRANDA; CAVALCANTE, Francisco. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, 1981, p. 27.
[3] AMARAL, Francisco. Brasil, 500 anos: a influência do direito português no direito brasileiro. Revista Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, n. 17, 2000.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista brasileira de direito constitucional, v. 9, n. 1, p. 361-388, 2007.
[5] HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. Tradução por: Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Béatrice Maurer et al; org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[6] Idem. Ibidem, p. 116.
[7] Idem. Ibidem, pp. 116-117.
[8] Idem. Ibidem, p. 117.
[9] Idem. Ibidem, p. 117.
[10] Idem. Ibidem, p. 118.
[11] Idem. Ibidem, p. 123.
[12] Idem. Ibidem, p. 123.
[13] Idem. Ibidem, p. 124.
[14] Idem. Ibidem, p. 124.
[15] Idem. Ibidem, p. 124.
[16] Idem. Ibidem, p. 125.
[17] Idem. Ibidem, pp. 125-126.
[18] Idem. Ibidem, p. 126.
[19] Idem. Ibidem, p. 126.
[20] Idem. Ibidem, p. 126.
[21] Idem. Ibidem, pp. 126-127.
[22] Idem. Ibidem, p. 127.
[23] Idem. Ibidem, p. 127.
[24] Idem. Ibidem, p. 128.
[25] Idem. Ibidem, p. 128.
[26] Idem. Ibidem, p. 137.
[27] TCP. Processo n. 39/88, Relator: Conselheiro Bravo Serra. Acórdão n. 90-105-2, proferido pela 2ª Secção do Tribunal Constitucional de Portugal, em 29 de março de 1990. Tribunal Constitucional, 1990. Disponível em: <https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900105.html>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[28] Idem. Ibidem.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. Tribunal constitucional de Portugal e dignidade da pessoa humana: aplicação concreta da dimensão histórico-cultural de Peter Häberle Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2019, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53020/tribunal-constitucional-de-portugal-e-dignidade-da-pessoa-humana-aplicacao-concreta-da-dimensao-historico-cultural-de-peter-haberle. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
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