RESUMO[1]: O presente trabalho tem por objetivo analisar a figura do transportador de drogas, alcunhado de “mula”, a partir de aspectos controvertidos existentes na doutrina e na jurisprudência brasileira.
Palavras-chave: Transportador de drogas. Mula. Aspectos controvertidos. Análise jurisprudencial.
INTRODUÇÃO
Como bem observa Renato Brasileiro de Lima, controversa é a possibilidade de incidência da causa especial de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006, às “mulas do tráfico”, pessoas geralmente humildes recrutadas por organizações criminosas para fazer o transporte da droga e que, para isso, acabam por ingerir cápsulas de droga[2].
Tal controvérsia, a bem da verdade, não se situa apenas no plano teórico, isto é, na literatura jurídica brasileira; ao revés, a discussão ultrapassa os embates doutrinários e passa a ser rotina das persecuções criminais.
Ciente desse pernicioso contexto, o presente trabalho visa a contextualizar e refletir criticamente sobre os aspectos controvertidos envolvendo o transportador de drogas.
DESENVOLVIMENTO
Para melhor compreender os aspectos controvertidos envolvendo o transportador de drogas, faz-se necessário revisitar, inicialmente, a compreensão doutrinária a respeito da matéria. Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima assevera que[3]:
Por mais que tais pessoas tenham consciência de que concorrem para a prática de um esquema de tráfico de drogas desenvolvido por determinada organização criminosa, dela não se costumam ter maiores detalhes, geralmente recebendo informações apenas em relação ao responsável pela receptação da droga no local do destino. Logo, se restar evidenciado que concorreram par ao transporte de pequena quantidade de droga pela primeira vez, não se pode dizer que tais indivíduos se dedicam a atividades criminosas, nem tampouco que efetivamente integram uma organização criminosa, porquanto ausentes os requisitos da estabilidade e da permanência. Assim, é perfeitamente possível a aplicação da minorante do art. 33, §4º, da Lei de Drogas, à denominada “mula ocasional”.
Por outro lado, ainda segundo a visão do ex-Defensor Público da União, caso haja comprovação de que a “mula” transportava grande quantidade de droga, através de remuneração, com despesas custeadas previamente, englobando uma “estrutura logística voltada à remessa de vultuosas quantidades de droga para o exterior a partir do Brasil, com o fornecimento de passaportes, hospedagem, dinheiro e outros bens ao transportador da mercadoria”, não seria possível aplicar o benefício do artigo 33, §4º, da Lei de Drogas, por restar caracterizado que o agente seria integrante de organização criminosa[4].
Com as devidas e necessárias vênias ao posicionamento de que todas as “mulas” têm consciência de que estão concorrendo para um esquema, estruturado por determinada organização criminosa, de tráfico de drogas, a generalização do argumento pode levar ao Estado-Juiz a adotar interpretações equivocadas.
É que, ao partir dessa premissa, ignora-se a possibilidade (não remota) de que o recrutamento dessas “mulas” se efetive de maneira ardil, fraudulenta, viciada. Portanto, restando comprovada a existência de algum meio maculador da vontade do transportador de drogas, não parece razoável concluir pela integração – mesmo que reflexa – de organização criminosa, que, como inclusive destacou Renato Brasileiro, dela não se costuma ter maiores detalhes.
Essa guinada de entendimento permite que se confira relevância às provas existentes nos autos do processo criminal concreto, afastando-se o Estado-Juiz da premissa de que, em toda e qualquer ocasião, a “mula” integra uma organização criminosa e, via de consequência, o entendimento que vem prevalecendo no sentido de que “se trata de pessoa dedicada à atividade criminosa e integrante de organização criminosa”[5].
Demais disso, Renato Brasileiro defende que se o indivíduo for flagrado com extensa quantidade e variedade de drogas haverá forte indicativo de que se trata de agente dedicado a atividades criminosas, por não ser normal que um traficante pequeno e ocasional dê início às atividades de traficância com tamanha quantidade e diversidade de drogas, e que, portanto, se beneficie da causa de diminuição de pena[6].
Parcela considerável da jurisprudência seguia essa linha de raciocínio, entendendo ser inaplicável a redução de pena nos casos em que o acusado fosse flagrado, por exemplo, com 1.915g de cocaína (STJ, 6ª Turma, HC 194.454/SP, Rel. Min. Og Fernandes, data de julgamento: 22/03/2011, DJ-e 11/04/2011), 1kg de crack e 5,6g de maconha (STJ, 6ª Turma, HC 174.547/SP, Rel. Min. Og Fernandes, data de julgamento: 17/02/2011, DJ-e 07/12/2011) e 2.070g de cocaína (STJ, 5ª Turma, HC 148.148/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, data de julgamento: 26/11/2009, DJ-e 15/12/2009)[7].
Ao que parece, todavia, o entendimento jurisprudencial vem se modificando, passando a não mais pressupor que o transportador de droga (“mula”) se dedica a atividades criminosas, além de relativizar a quantidade de drogas como critério para afastar o reconhecimento da causa especial de diminuição de pena.
Nesse sentido, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n. 131795/SP, relatado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki, no julgamento ocorrido em 03/05/2016, afastou a pressuposição de que a “mula” integra a organização criminosa, conforme transcrição do trecho do acórdão em referência, in verbis[8]:
A atuação da agente no transporte de droga, em atividade denominada “mula”, por si só, não constitui pressuposto de sua dedicação à prática delitiva ou de seu envolvimento com organização criminosa. Impõe-se, para assim concluir, o exame das circunstâncias da conduta, em observância ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF).
Recentemente, a Segunda Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n. 136736/SP, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento ocorrido em 28/03/2017, evidenciou que a questão estava pacificada no âmbito daquela Corte, nos termos do trecho do acórdão, in verbis[9]:
A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de a condição de mula, por si só, não revela a participação em organização criminosa. Precedentes.
Ao preencher todos os requisitos legais para o reconhecimento do tráfico privilegiado, o réu faz jus a aplicação da causa de diminuição em seu patamar máximo, de modo que qualquer decote na fração do benefício deve ser devidamente fundamentado. Dessa forma, não havendo fundamentação idônea que justifique a aplicação da causa de diminuição do art. 33, § 4°, da Lei de Drogas em patamar inferior à fração máxima, a redução da pena deverá ser arbitrada na razão de 2/3.
Deve-se ressaltar que, no último aresto indicado, a acusada foi presa em flagrante portando 3,7kg de cocaína e, mesmo assim, como visto, a Cúpula do Poder Judiciário concedeu-lhe o patamar máximo da minorante, o que permitiu, inclusive, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Vê-se, com isso, que não se trata apenas de discussão teórica, mas sim de questões pragmáticas, que podem levar alguém a um regime mais severo ou mais brando, a depender de como se interprete a regra do artigo 33, §4º, da Lei de Drogas.
Posteriormente, a Quinta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus n. 385226/SP, relatado pelo Ministro Ribeiro Dantas, no julgamento ocorrido em 27/04/2017, acolheu o entendimento firmado majoritariamente pela Cúpula do Poder Judiciário brasileiro, no sentido de que a atuação como “mula” não induz, como consequência, à interpretação de que se integre organização criminosa, conforme excerto do acórdão adiante transcrito[10]:
Embora haja diversos julgados de ambas as Turmas deste Tribunal Superior nos quais se afirme não ser possível o reconhecimento do tráfico privilegiado ao agente transportador de drogas na qualidade de "mula", acolho o entendimento uníssono do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, no sentido de que a simples atuação nessa condição não induz, automaticamente, à conclusão de que o sentenciado integre organização criminosa, sendo imprescindível, para tanto, prova inequívoca do seu envolvimento, estável e permanente, com o grupo criminoso, para autorizar a redução da pena em sua totalidade. Precedentes do STF.
Diante do exposto, observa-se que o transportador de drogas, alcunhado de “mula”, não deve mais ser visto, necessariamente, como longa manus das organizações criminosas. O sentido interpretativo deve ser outro: a conclusão pela relação com determinada organização criminosa depende, inevitavelmente, do conjunto probatório coligido nos autos do processo criminal.
A discussão acerca da aplicação ou não da causa especial de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/06, ao transportador de drogas representou uma das maiores controvérsias da lei de drogas nos últimos anos.
Apesar disso, o entendimento jurisprudencial mais recente sobre a situação do transportador de drogas (“mula”) é no sentido de conceder-lhes a causa especial de diminuição de pena do artigo 33, §4º, da Lei de Drogas, não mais se pressupondo a dedicação a atividades criminosas e relativizando-se a quantidade de drogas, antigos óbices para o seu reconhecimento.
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2016.
___, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 385226/SP. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Data de julgamento: 27/04/2017. DJ: 31/05/2017. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=71959930&num_registro=201700056524&data=20170531&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
___, SEGUNDA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 131795/SP. Relator: Ministro Teori Zavascki. Data de julgamento: 03/05/2016. DJ: 17/05/2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=100&dataPublicacaoDj=17/05/2016&incidente=4894665&codCapitulo=5&numMateria=71&codMateria=3>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
___, SEGUNDA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 136736/SP. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Data de julgamento: 28/03/2017. DJ: 08/05/2017. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=95&dataPublicacaoDj=08/05/2017&incidente=5042024&codCapitulo=5&numMateria=62&codMateria=3>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 759.
[3] Idem. Ibidem, p. 759.
[4] Idem. Ibidem, p. 759.
[5] Idem. Ibidem, p. 759.
[6] Idem. Ibidem, p. 758.
[7] No mesmo sentido, são oportunos os precedentes: STJ, 5ª Turma, HC 119.149/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, data de julgamento: 09/12/2008, DJ-e 02/02/2009; STF, 1ª Turma, RHC 94.806/PR, Rel. Min. Carmen Lúcia, data de julgamento: 09/03/2010, DJ-e 67 15/04/2010; STF, 1ª Turma, HC 103.118/SP, Rel. Min. Luiz Fux, data de julgamento: 20/03/2012, DJ-e 73 13/04/2012. Idem. Ibidem, pp. 758-759.
[8] STF, SEGUNDA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 131795/SP. Relator: Ministro Teori Zavascki. Data de julgamento: 03/05/2016. DJ: 17/05/2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=100&dataPublicacaoDj=17/05/2016&incidente=4894665&codCapitulo=5&numMateria=71&codMateria=3>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[9] STF, SEGUNDA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 136736/SP. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Data de julgamento: 28/03/2017. DJ: 08/05/2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=95&dataPublicacaoDj=08/05/2017&incidente=5042024&codCapitulo=5&numMateria=62&codMateria=3>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[10] STJ, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 385226/SP. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Data de julgamento: 27/04/2017. DJ: 31/05/2017. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=71959930&num_registro=201700056524&data=20170531&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. O transportador de drogas ("mula"): aspectos controvertidos e análise jurisprudencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53094/o-transportador-de-drogas-quot-mula-quot-aspectos-controvertidos-e-analise-jurisprudencial. Acesso em: 23 dez 2024.
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