Palavras-chave: Tráfico internacional de pessoas. Convenção de Palermo. Protocolo de Palermo.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que o combate ao crime organizado transnacional e a proteção às vítimas do tráfico internacional de pessoas constituem temáticas extremamente relevantes no contexto internacional. Para melhor compreendê-los, faz-se necessário analisar as suas bases históricas a partir da Convenção e do Protocolo de Palermo.
Ciente disso, o presente trabalho volta-se para a análise histórico-reflexiva da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (“Convenção de Palermo”) e do seu Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (“Protocolo de Palermo”).
DESENVOLVIMENTO
Como é de conhecimento mundial, o colapso da ordem vigente na Guerra Fria impulsionou a difusão de um novo ambiente internacional, trazendo, em seu bojo, determinados problemas que outrora estavam encobertos e silenciados, notabilizando-se a criminalidade organizada transnacional, enquanto uma das novas estruturas paraestatais de poder, ameaçando a paz e a prosperidade, em decorrência do seu propósito explicito de cometimento de delitos, como o narcotráfico, a lavagem de capitais, o contrabando de migrantes e o tráfico de seres humanos[2].
Nesse contexto, a globalização emergia como um dos principais fatores que propiciava a ação dessas redes criminosas bem estruturadas e organizadas, voltadas para a prática de diversas atividades antijurídicas, que são beneficiadas pela facilidade de trânsito de pessoas entre os continentes, mundialização das transações comerciais, econômicas e financeiras, além do desenvolvimento das comunicações e transportes, daí porque se dissemina a expressão “globalização do crime”[3].
Com o advento da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, firmado em 2000, surge uma resposta internacional a este problema contemporâneo, sendo notável a recomendação de atuação firme e integrada entre os Estados nacionais, incentivando-os a atuarem tanto bilateralmente quanto multilateralmente, conforme se percebe da previsão constante do artigo 30, item 4, a seguir transcrito[4]-[5]:
Os Estados Partes poderão celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais relativos a assistência técnica e logística, tendo em conta os acordos financeiros necessários para assegurar a eficácia dos meios de cooperação internacional previstos na presente Convenção, e para prevenir, detectar e combater a criminalidade organizada transnacional.
Observa-se, nos dizeres de Damásio de Jesus, que a Convenção prioriza o controle do crime, perspectiva essa que visualiza o tráfico como um problema de efetividade da aplicação da lei em desfavor do crime organizado local ou internacional, levando à recomendação de implantação de medidas punitivas mais rigorosas[6].
Assim, “suas provisões, voltadas à aplicação da lei, auxiliarão os governos dos países a se organizar e trocar informações sobre o crime organizado, aumentando sua capacidade para localizar, deter e julgar os traficantes”[7].
No particular, revela-se oportuna a observação de que as organizações criminosas costumam-se a se estruturar em três etapas: captação da vítima nos países de origem; transporte, traslado e recepção no país de destino; e exploração no país de destino, processo detalhadamente demonstrado por Thalita Carneiro Ary na sua dissertação[8]:
Primeiro, ocorre a captação da vítima nos países de origem, valendo-se de diversos artifícios, como anúncios em jornais, internet e revistas locais, oferecendo empregos no exterior ou possibilidade de casamento, ou ainda explícitas ofertas para o exercício da prostituição. Também pode acontecer por uma aproximação pessoal com a vítima, quando o traficante ganha sua confiança e, posteriormente, oferece a possibilidade de ascender, nos aspectos profissionais e pessoais, em algum país desenvolvido.
[...]
A segunda etapa é a do transporte, traslado e recepção no país de destino, sendo que os métodos de exploração não estão excluídos dessa fase. Adotam formas de transporte diversas, mostrando, assim, a natureza dinâmica e a logística apurada esses grupos criminosos, haja vista que se adequam aos controles migratórios, às leis penais dos países de origem, trânsito e destino, às formas de corromper funcionários estatais, assim como ao cenário da adequação da demanda por seu trabalho forçado, nas mais diversas destinações.
[...]
A última fase consiste na chegada no país de destino, onde a vítima será vilmente explorada, seja na atividade proposta no contato inicial, seja no desmembramento de outra forma exploratória. Ao ser subjugada e obrigada a prestar serviços contrários ao seu desígnio, normalmente essa pessoa é mantida em cárcere privado. Seu passaporte e documentos de viagem geralmente são confiscados, passa por constantes ameaças de deportação ou de represálias contra pessoas da família, sofre violência física, entre outras formas de imposição e manutenção do contexto de exploração laboral ou de outra natureza.
Diante dessa sofisticação das organizações criminosas multifacetárias, foram necessárias complementações específicas à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, o que motivou a criação de três protocolos, tratando, separadamente, sobre o tráfico de pessoas, o contrabando de pessoas e o contrabando de armas de fogo, suas peças, componentes e munições.
Ao presente trabalho, interessa apenas o protocolo sobre o tráfico de pessoas, ou, de maneira completa, o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças”.
Pois bem, o Protocolo de Palermo, como passou a ser denominado, emergiu para fortificar o combate contra o tráfico de seres humanos, tratados como mercadoria, em escala global, dentro do objetivo de um crime de caráter transnacional, que se apresenta como uma atividade rentável para grupos criminosos, os quais agem através de diversas ramificações e procedimentos[9].
Nele, é possível encontrar a definição de tráfico de seres humanos, consoante se observa do seu artigo 3º, item “a”, a seguir transcrito[10]:
A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
Justamente com base nessa definição é que Damásio de Jesus leciona que o Protocolo contém a primeira noção de tráfico internacionalmente aceita, completamente diversa da prevista na Convenção de 1949, que restringia o conceito à prostituição e considerava toda forma de prostituição, voluntária ou forçada, como tráfico[11].
Não se deve pensar, todavia, que o Protocolo desconsiderou a existência da prostituição voluntária e forçada. Do contrário, ele reconhece, apenas não confere, de maneira intencional, uma definição à “exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual”, por ausência de definição consensual sobre o tema à época[12].
O Protocolo obtém relevo, como assevera Thalita Carneiro Ary, por haver estabelecido pressupostos essenciais para a caracterização do tráfico de pessoas, tais como ameaça, coerção, fraude, abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade, assim como oferta de vantagens para a obtenção do consentimento da vítima[13]. Assim, “a licitude ou ilicitude da atividade que a referida vítima se propôs a realizar não se apresenta como relevante para a configuração do crime de tráfico de pessoas”, sendo suficiente a violação de sua liberdade pelo traficante, mediante alguma das modalidades previstas[14].
Nota-se, igualmente, um tratamento diferenciado ao consentimento da vítima de tráfico de pessoas adultas, em caso de utilização de algum meio que vicie a sua vontade pelo traficante, tendo como parâmetro alguma modalidade exploratória acima referida[15], nos seguintes termos[16]:
O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a).
Impende frisar, contudo, que “tratando-se de crianças e adolescentes, isto é, com idade inferior a 18 anos, o consentimento da vítima a ser traficada também é irrelevante para a configuração do crime de tráfico”, ainda que não sejam empregados os meios maculadores do consentimento pelo traficante[17].
Questão que pode causar dúvida diz respeito à diferenciação entre tráfico de pessoas e imigração ilegal. Todavia, considerando que o próprio Protocolo de Palermo e o Protocolo relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea[18], também adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, se incumbiram de definir os crimes de tráfico de pessoas e de imigração ilegal, resolvê-la não é uma tarefa difícil.
Destarte, para o reconhecimento do crime de imigração ilegal não se presume que o imigrante seja explorado posteriormente, caracterizando-se, apenas, como a facilitação de entrada, em país estrangeiro, de forma ilegal; por sua vez, a pessoa traficada poderá ser objeto de prostituição de outras formas de exploração (sexual, trabalhos ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares, a servidão ou remoção de órgãos)[19].
É de se notar, ademais, que o Protocolo de Palermo, por visar à prevenção e o combate ao tráfico de pessoas, protegendo as suas vítimas e promovendo a cooperação entre os Estados para esse desiderato, recomenda que Estados, Organizações Não-Governamentais e a sociedade civil ajam, cooperativa e conjuntamente, contra o tráfico de pessoas[20].
Com a necessidade de se elaborar uma Convenção sobre criminalidade organizada transnacional, bem como um protocolo relativo à questão do tráfico de pessoas dentro dos parâmetros atuais, sobrevieram a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e o seu Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, alcunhados de Convenção e Protocolo de Palermo.
Tais documentos internacionais, à vista do exposto, representaram a consolidação de avanços históricos no combate ao crime organizado transnacional e na proteção das vítimas do tráfico internacional de pessoas, evidenciando, assim, a necessidade de novos estudos reflexivos sobre as temáticas.
ARY, Thalita Carneiro. O tráfico de pessoas em três dimensões: Evolução, globalização e a rota Brasil-Europa. Dissertação (Dissertação em Relações Internacionais) – UnB, 2009.
BRASIL. Decreto n. 5.015 de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
______. Decreto n. 5.016 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo – Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
______. Decreto n. 5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo – Tráfico de Pessoas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
JESUS, Damásio de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil: aspectos regionais e nacionais. São Paulo: Saraiva, 2003.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] ARY, Thalita Carneiro. O tráfico de pessoas em três dimensões: Evolução, globalização e a rota Brasil-Europa. Dissertação (Dissertação em Relações Internacionais) – UnB, 2009, p. 52.
[3] Idem. Ibidem, pp. 52-53.
[4] Idem. Ibidem, pp. 54-55.
[5] BRASIL. Decreto n. 5.015 de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[6] JESUS, Damásio de. Tráfico internacional de mulheres e crianças – Brasil: aspectos regionais e nacionais. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 40.
[7] Idem. Ibidem, p. 40.
[8] Op. cit., pp. 55-56.
[9] Idem. Ibidem, p. 57.
[10] BRASIL. Decreto n. 5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo – Tráfico de Pessoas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[11] Op. cit., p. 41.
[12] Idem. Ibidem, p. 41.
[13] Idem. Ibidem, p. 59.
[14] Idem. Ibidem, p. 59.
[15] Idem. Ibidem, p. 59.
[16] Op. cit.
[17] Op. cit., p. 59.
[18] A propósito, conferir o artigo 3, item a, in verbis: “a expressão "tráfico de migrantes" significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente”. BRASIL. Decreto n. 5.016 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo – Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[19] Idem. Ibidem, p. 60.
[20] Idem. Ibidem, pp. 61-62.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. Tráfico internacional de pessoas à luz da Convenção e do Protocolo de Palermo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53102/trafico-internacional-de-pessoas-a-luz-da-convencao-e-do-protocolo-de-palermo. Acesso em: 23 dez 2024.
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