RESUMO: O tema relacionado à execução provisória da pena privativa de liberdade está diretamente ligado à interpretação e à extensão da aplicação do princípio da presunção da inocência. No ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal havia firmado entendimento de que a execução provisória ofende tal princípio, não sendo cabível a sua aplicação. Todavia, em 2016, em um novo julgamento, a Corte Constitucional reconheceu a ocorrência de mutação constitucional, passando a admitir a execução provisória a partir da confirmação da sentença penal pela segunda instância. Tendo em vista a importância dessa temática, o presente trabalho tem por objetivo mostrar os principais argumentos que compõem os julgados de 2009 e 2016, a fim de que se possa entender os aspectos que envolvem tal mudança de entendimento jurisprudencial.
PALAVRAS-CHAVE: Execução penal. Execução provisória da pena privativa de liberdade. Princípio da presunção da inocência. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: The issue related to the provisional execution of the custodial sentence is directly related to the interpretation of the extension of the application of the principle of presumption of innocence. In 2009, the Federal Supreme Court had held that provisional execution offends this principle, and its application is not applicable. However, in 2016, in a new trial, the Constitutional Court recognized the occurrence of a constitutional mutation, allowing for provisional execution from the confirmation of the criminal sentence by the second instance. Considering the importance of this theme, this paper aims to show the main arguments that compose the judgments of 2009 and 2016, in order to understand the aspects that involve such a change of jurisprudential understanding.
KEY WORDS: Penal execution. Provisional execution of the custodial sentence. Principle of presumption of innocence. Jurisprudence of the Federal Supreme Court.
SUMÁRIO: Introdução. 1 A execução penal no Direito Brasileiro. 1.1 Conceito e natureza jurídica. 1.2 Princípios aplicáveis à Execução Penal. 2 Princípio da Presunção da Inocência. 2.1 Breve conceito. 2.2 Princípio da Presunção da inocência e o Habeas Corpus 84.078/MG. 2.3 Considerações a respeito do Princípio da Presunção da Inocência a partir do Habeas Corpus 126.292/SP. 3 Execução provisória da pena privativa de liberdade após a confirmação da sentença penal condenatória pela segunda instância. 3.1 Diferença entre prisão cautelar e prisão pena. 3.2 Execução provisória da pena sob o paradigma do habeas corpus 84.078/MG. 3.3 Habeas Corpus 126.292/SP e o entendimento atual do STF. 3.4 Novos julgamentos e a reafirmação do posicionamento do STF. 3.5 Críticas ao novo posicionamento. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A discussão a respeito da possibilidade da execução provisória da pena privativa de liberdade logo em seguida à confirmação da sentença condenatória pela segunda instância tem tido grande relevância devido aos vários aspectos a ela relacionados, tais como a abrangência do princípio da presunção de inocência e o seu devido respeito, a efetividade das decisões judiciais, a seletividade da justiça penal no Brasil, dentre outros.
A recente decisão do pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) concedendo interpretação favorável à execução provisória dividiu opiniões entre os operadores do direito, favorecendo a discussão acadêmica a respeito dessa temática.
Embora muitas opiniões favoráveis e contrárias ao mais recente posicionamento sejam externadas a todo momento, percebe-se que muitas vezes estão dissociadas dos fundamentos apresentados pela Corte Constitucional.
Com isso, o objetivo da presente pesquisa acadêmica é, de maneira sucinta e direta, abordar os principais aspectos tanto da posição atual do STF, quanto da posição superada, que, ressalta-se, ainda é vista por parte da comunidade jurídica como a mais adequada.
A importância deste trabalho está em buscar demonstrar os argumentos que embasaram o Habeas Corpus 84.078/MG, de 2009, que entendeu não ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade e o Habeas Corpus 126.292/SP, de 2016, que superou tal entendimento.
Na elaboração do presente artigo, utilizar-se-á de dados bibliográficos produzidos por diversos autores, bem como decisões judiciais emitidas pelo STF.
Para tanto, optou-se por dividir este trabalho em três partes, as quais visam facilitar o estudo desta complexa temática.
No primeiro capítulo, serão abordados aspectos gerais a respeito da execução penal no direito brasileiro, com o objetivo de situar o leitor acerca da conceituação, natureza jurídica e principais princípios a ela aplicáveis.
A partir disso, apresentar-se-á a temática envolvendo o princípio da presunção da inocência, demonstrando-se o conceito geral a ele aplicado e, após isso, dois importantes acórdãos proferidos pelo STF que interpretaram o referido princípio de maneira muito diversa, um publicado no ano de 2009 e o outro no ano de 2016.
Finalmente, será possível discutir especificamente sobre execução provisória da pena privativa de liberdade. Para tanto, abordar-se-á a respeito da diferença entre a prisão-pena e a prisão cautelar, bem como, serão analisados os fundamentos utilizados tanto no Habeas Corpus 84.078/MG, de 2009, como os utilizados no Habeas Corpus 126.292/SP, de 2016.
1 A EXECUÇÃO PENAL NO DIREITO BRASILEIRO
1.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
A execução penal trata-se de procedimento que se destina à aplicação da pena ou da medida de segurança fixada em sentença. (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Após o trânsito em julgado da sentença penal, esta passa a ser título executivo judicial, cujo processamento ostenta regras especiais, sendo iniciado de ofício pelo juiz, na maior parte dos casos, e não comportando cumprimento espontâneo pela parte condenada, mas sim sob a tutela do Estado, o qual nessa fase faz valer sua pretensão punitiva, desdobrada aqui em pretensão executória (NUCCI, 2010).
A doutrina diverge quanto à natureza jurídica da execução penal. De um lado, defende-se ter natureza administrativa, visto que o juiz pratica atos eminentemente administrativos, tais como a expedição da guia de execução penal e a emissão de ordens à direção do estabelecimento prisional. De outro lado, defende-se que possui natureza jurisdicional, pois há prolação de atos jurisdicionais de cunho decisório, como nas decisões sobre a progressão de regimes, livramento condicional, extinção da pena, dentre outras (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Por tais razões, Távora e Alencar (2017) defendem que a execução penal possui natureza jurídica híbrida, sendo preponderantemente jurisdicional e secundariamente administrativa.
Outro importante doutrinador que se posiciona do mesmo modo é Guilherme de Souza Nucci (2010), o qual menciona que a natureza jurídica da execução penal é primordialmente jurisdicional, possuindo a finalidade de efetivar a pretensão punitiva estatal, envolvendo conjuntamente atividade administrativa.
Cabe também dizer que a respeitada jurista Ada Pellegrini Grinover (1987) já afirmou que
a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estatais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais.
Assim, pode-se afirmar que, embora não exista unanimidade, muitos doutrinadores entendem que a execução penal possui natureza jurídica híbrida, sendo o processo executivo criminal preponderantemente jurisdicional e secundariamente administrativo (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
1.2 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À EXECUÇÃO PENAL
Aplicam-se à execução penal os princípios do devido processo legal, do juízo competente, da legalidade, do contraditório e da ampla defesa, além de princípios específicos que merecem destaque, tais como o princípio da individualização das penas e o princípio da intranscendência das penas (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Do princípio da individualização da pena se extrai a ideia de que a sanção penal deve ser individualizada quanto ao seu cumprimento, considerando-se o seu caráter retributivo e objetivo ressocializador (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Conforme Távora e Alencar (2017) ensinam, este princípio deve ser concretizado em três etapas. A primeira etapa é a atividade legislativa, que estabelece abstratamente os limites das penas cominadas aos crimes. Num segundo momento, a individualização ocorre através da aplicação da pena na sentença. Finalmente, a atividade realizada na execução penal concluirá a individualização.
Já o princípio da intranscendência da pena ou personalização da pena confere a ideia de que a pena não pode ir além da pessoa do condenado, sendo que frente à existência de obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens pode ser executada contra os sucessores observado o limite do patrimônio a ser transferido a estes, consoante previsão expressa no art. 5, XLV, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Nucci (2010) refere também a aplicação do princípio da humanidade, previsto constitucionalmente no art. 5, XLVII, da CF/1988, que refere que não haverá pena de morte, salvo caso de guerra declarada, nem penas de caráter perpétuo, de trabalho forçado, de banimento ou cruéis.
Além disso, a CF/1988 também estabelece como regras da execução penal que a pena deverá ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, assegurando-se, igualmente, o respeito à integridade física e moral dos presos, bem como garantido que as presidiárias possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (NUCCI, 2010).
Finalmente, deve-se acrescentar que a Lei de Execução Penal, em seu art. 40 afirma que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei” (NUCCI, 2010).
2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
2.1 BREVE CONCEITO
O princípio da presunção da inocência, também chamado de presunção de não culpabilidade e estado de inocência encontra-se inserido expressamente no texto constitucional (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Trata-se de um consagrado princípio, sendo considerado um dos mais importantes alicerces do Estado Democrático de Direito, que visa a tutela da liberdade individual e decorre do texto do art. 5, LVII, CF/1988, o qual prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal acusatória (AVENA, 2012).
Por ser um direito fundamental, deve ser compreendido tanto em sua dimensão subjetiva, quanto em sua dimensão objetiva. Enquanto direito subjetivo, garante que o acusado ostente posição de vantagem em relação ao Estado, impedindo ou limitando a sua atuação. Já do ponto de vista objetivo, estabelece os critérios que deverão orientar a atuação estatal, tanto na construção normativa, como nos procedimentos destinados à efetivação do direito fundamental (MORAES, 2010).
No que se refere à aplicação prática do princípio da presunção da inocência, cabe dizer que, até o ano de 2009, a corrente majoritária do STF entendia que o princípio não tinha aplicação absoluta, e, tendo os recursos especial e extraordinário apenas efeito devolutivo, era permitida a execução provisória da pena.
Em fevereiro de 2009, o STF reavaliou a interpretação conferida ao princípio, mudando seu posicionamento. Tal entendimento prevaleceu até que, em 2016, novamente essa temática foi colocada em pauta.
Oportunamente, o presente trabalho acadêmico apresentará tanto a interpretação atual do STF sobre o princípio da presunção da inocência, como também a posição que o tribunal adotava anteriormente.
2.2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA E O HABEAS CORPUS 84.078/MG
O Habeas Corpus (HC) 84.078/MG foi o caso utilizado como paradigma pelo STF ao reanalisar o até então posicionamento majoritário, para o qual a execução provisória da pena não ofendia o princípio da presunção da inocência, pois os recursos extraordinário e especial não possuíam efeito suspensivo.
Naquela ocasião, a corte constitucional entendeu que a presunção da inocência não só era princípio explícito de direito, como também estava expressamente prevista no texto constitucional (BRASIL, 2018b).
Em seu voto, o Ministro Celso de Mello afirmou que
(...) ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como se culpado fosse, antes que sobrevenha, contra ele, condenação penal transitada em julgado, tal como tem advertido o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (...). Trata-se de efeito que deriva, de modo bastante expressivo, da presunção constitucional de inocência, a que esta Suprema Corte tem dispensado tratamento consequente (sic) e plenamente compatível com o sistema jurídico existente em nosso País, como se evidenciou no julgamento plenário da ADPF 144/DF (...). (BRASIL, 2018b)
Tal afirmação expressa de maneira singela o pensamento dominante no STF naquele período, onde a interpretação conferida fixava-se na literalidade do texto constitucional.
Outro importante fundamento apresentado no julgamento diz respeito ao fato de o art. 164 da Lei de Execução Penal, que prevê que a certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado vale como título executivo judicial, ter superado o disposto no art. 637 do CPP, o qual, por sua vez, prevê que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo e, após a apresentação das contrarrazões pelo recorrido, os autos originais devem ser baixados à primeira instância para início da execução da pena (BRASIL, 2018b).
Além desses argumentos, também foi ressaltado que ambas as Turmas do STF vinham aplicando o art. 147 da Lei de Execução Penal de maneira uniforme, seguindo a literalidade do dispositivo, cuja redação dispõe que a execução da sentença que condenou à pena restritiva de direitos será promovida após o trânsito em julgado. Logo, por uma questão de coerência e isonomia, se a pena restritiva de direitos não poderia ser iniciada antes do trânsito em julgado, também a pena privativa de liberdade não poderia, pois é mais grave que aquela (BRASIL, 2018b).
2.2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA A PARTIR DO HABEAS CORPUS 126.292/SP
Com o julgamento do HC 126.292/SP, o STF reviu sua interpretação a respeito do princípio da presunção da inocência, voltando a aplicar o entendimento até então superado.
Dentre os fundamentos utilizados, ressaltou-se a busca do equilíbrio entre o princípio da presunção da inocência e o princípio da efetividade da função jurisdicional penal, a qual deve atender não apenas aos valores dos acusados, mas também à sociedade (BRASIL, 2018a).
O Ministro Teori Zavaski, relator do julgado, assinalou em seu voto que
(...) “com a condenação do réu, fica superada a alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva”, de modo que “os recursos especial e extraordinário, que não têm efeito suspensivo, não impedem o cumprimento de mandado de prisão” E, ao reconhecer que as restrições ao direito de apelar em liberdade determinadas pelo art. 594 do CPP (posteriormente revogado pela Lei 11.719/2008) haviam sido recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, o Plenário desta Corte, nos autos do HC 72.366/SP (Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 26/1/1999), mais uma vez invocou expressamente o princípio da presunção de inocência para concluir pela absoluta compatibilidade do dispositivo legal com a Carta Constitucional de 1988, destacando, em especial, que a superveniência da sentença penal condenatória recorrível imprimia acentuado “juízo de consistência da acusação”, o que autorizaria, a partir daí, a prisão como consequência natural da condenação.(BRASIL, 2018a).
Também assinalou o ministro que antes da sentença ser prolatada, deve-se manter reservas de dúvidas sobre o comportamento imputado ao acusado, sobretudo quanto ao ônus da prova da incriminação, sendo que a eventual condenação representa juízo de culpabilidade decorrente da logicidade conferida pelos elementos probatórios carreados aos autos. A partir de tal juízo, ao juiz de primeiro grau resta superada a presunção de inocência, ainda que tal constatação não tenha cunho definitivo (BRASIL, 2018a).
Já no juízo de apelação
fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado. É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição, destinado ao reexame de decisão judicial em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha ela sido apreciada ou não pelo juízo a quo. Ao réu fica assegurado o direito de acesso, em liberdade, a esse juízo de segundo grau, respeitadas as prisões cautelares porventura decretadas os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se prestam ao debate da matéria fático-probatória. Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa (BRASIL, 2018a).
Outro fato que foi levado em conta é a constatação de que o recurso especial e o recurso extraordinário não configuram desdobramento do duplo grau de jurisdição e não possuem ampla devolutividade, uma vez que não servem para discussão sobre a matéria fática. Assim, poderia se dizer que, a partir do julgamento pela segunda instância, ocorreria espécie de preclusão sobre a matéria relacionada aos fatos da causa (BRASIL, 2018a).
É com base nesses argumentos que
tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faz sentido, portanto, negar efeito suspensivo aos recursos extraordinários, como o fazem o art. 637 do Código de Processo Penal e o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/1990 (BRASIL, 2018a).
Além disso,
(...) não se pode desconhecer que a jurisprudência que assegura, em grau absoluto, o princípio da presunção da inocência – a ponto de negar executividade a qualquer condenação enquanto não esgotado definitivamente o julgamento de todos os recursos, ordinários e extraordinários – tem permitido e incentivado, em boa medida, a indevida e sucessiva interposição de recursos das mais variadas espécies, com indisfarçados propósitos protelatórios visando, não raro, à configuração da prescrição da pretensão punitiva ou executória (BRASIL, 2018a).
É de se notar que o último marco interruptivo da prescrição antes do cumprimento da pena é a publicação da sentença ou acórdão recorríveis, ou seja, os recursos que podem ser interpostos a partir desse momento, além de não discutirem a matéria fática e probatória, também não interrompem a prescrição. Constata-se que não só não constituem instrumento para a garantia da presunção da inocência, como passam a representar mecanismo que inibe a efetividade da jurisdição penal (BRASIL, 2018a).
Sendo o processo o único meio para a efetivação do jus puniendi estatal, percebe-se a necessidade de atribuir apenas o efeito devolutivo ao recurso extraordinário e especial, tal qual é a previsão legal, a fim de que se possa harmonizar o princípio da presunção da inocência com o princípio da efetividade da função jurisdicional do Estado (BRASIL, 2018a).
O Ministro Edson Fachin, em seu voto, trouxe, igualmente, relevantes argumentos, afirmando que
interpreto a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“ sem o apego à literalidade com a qual se afeiçoam os que defendem ser impossível iniciar-se a execução penal antes que os Tribunais Superiores deem a última palavra sobre a culpabilidade do réu considero que não se pode dar a essa regra constitucional caráter absoluto, desconsiderando-se sua necessária conexão a outros princípios e regras constitucionais que, levados em consideração com igual ênfase, não permitem a conclusão segundo a qual apenas após esgotadas as instâncias extraordinárias é que se pode iniciar a execução da pena privativa de liberdade (BRASIL, 2018a).
Refere o Ministro que “nenhuma norma, especialmente as de caráter principiológico, pode ser interpretada descontextualizada das demais normas constitucionais” (BRASIL, 2018a).
Observa-se que a solução do caso concreto cabe ao juízo monocrático e a um órgão colegiado, possuindo o acesso aos tribunais superiores caráter excepcional. O fato de a CF/1988 definir que o STF terá apenas onze ministros também contribui para esse entendimento, podendo-se visualizar que o texto constitucional não quis criar uma terceira e quarta chances para revisão das decisões judiciais (BRASIL, 2018a).
É possível notar que
se pudéssemos dar à regra do art. 5º, LVII, da CF caráter absoluto, teríamos de admitir, no limite, que a execução da pena privativa de liberdade só poderia operar-se quando o réu se conformasse com sua sorte e deixasse de opor novos embargos declaratórios. Isso significaria dizer que a execução da pena privativa de liberdade estaria condicionada à concordância do apenado (BRASIL, 2018a).
Ademais, afirmar que a presunção da inocência prevalece absoluta mesmo após o juízo monocrático confirmado por um tribunal importa afirmar que a Constituição instituiu uma “uma presunção absoluta de desconfiança às decisões provenientes das instâncias ordinárias” (BRASIL, 2018a).
O Ministro Luís Roberto Barroso apresentou em seu voto algumas consequências produzidas pela impossibilidade da execução provisória, tais como o incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios, os quais movimentam o Poder Judiciário gerando gastos dos recursos e de tempo, sem que haja proveito para a efetivação da justiça ou respeito às garantias processuais penais dos réus (BRASIL, 2018a).
Também afirma o ministro que tal situação reforçou a seletividade do sistema penal, pois
a ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação (BRASIL,2018a).
Além disso, verificou o ministro que esse entendimento
contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar o trânsito em julgado do REsp e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido massivamente à prescrição da pretensão punitiva ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. Em ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção especial e geral. Um sistema de justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados (BRASIL, 2018a).
Por todos esses motivos, o ministro Luís Roberto Barroso conclui que a leitura conservadora e extremada do princípio da presunção da inocência não mais se justifica no cenário atual, sendo caso de mutação constitucional a fim de que se confira “interpretação mais condizente com as exigências da ordem constitucional no sentido de garantir a efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar” (BRASIL, 2018a).
Há que se dizer também que, conforme explica o Ministro Gilmar Mendes em seu voto, neste mesmo julgado, a garantia da presunção da inocência impede o tratamento do réu como culpado até que se opere o trânsito em julgado da sentença, mas não impede que a lei regulamente os procedimentos a serem aplicados e também não impõe ao réu tratamento uniforme durante todo o processo. Logo, na medida em que processo avança e a culpa vai sendo demostrada, é possível impor ao réu tratamento diferenciado e que não viola o princípio (BRASIL, 2018a).
Após a apresentação dos principais fundamentos adotados pelo STF no HC 126.292/SP, torna-se mais simples a análise da possibilidade da execução provisória da pena privativa de liberdade logo em seguida à confirmação da sentença condenatória pela segunda instância.
3 EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE APÓS A CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA PELA SEGUNDA INSTÂNCIA
A temática acerca da possibilidade da execução provisória da pena privativa de liberdade vem sendo muito debatida, uma vez que envolve questões sensíveis como a interpretação dada ao princípio da presunção da inocência e a efetividade da justiça penal.
Após a análise voltada ao princípio da presunção da inocência, passa-se a análise focada na possibilidade da execução provisória.
3.1 DIFERENÇA ENTRE PRISÃO CAUTELAR E PRISÃO-PENA
Antes que se possa discorrer a respeito das posições jurisprudenciais a respeito da execução provisória, necessário que se faça uma diferenciação entre prisão cautelar e prisão-pena.
A prisão cautelar ou processual é aquela que decorre da decisão judicial fundamentada, a exemplo da prisão preventiva e da prisão temporária ou ainda a que se origina em permissivo constitucional, como a prisão em flagrante (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
O Código de Processo Penal (CPP), nos artigos 312 e 313, contempla as hipóteses que a prisão preventiva pode ser decretada:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
IV - (revogado).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (BRASIL,2018e).
A Lei 7.960/1989 contempla as hipóteses em que é possível a decretação da prisão temporária. A título de exemplo, pode-se citar a imprescindibilidade para as investigações e o fato de o investigado não possuir residência fixa (BRASIL, 2018f).
Já a prisão pena ou prisão penal propriamente dita é a sanção específica que decorre da violação ou ameaça de um bem jurídico tutelado pela lei penal (TÁVORA e ALENCAR, 2017).
Feita tal diferenciação, pode-se passar a análise da possibilidade da execução provisória da sentença penal a partir do julgamento pela segunda instância.
A fim de que se possa visualizar a questão com maior clareza, opta-se pela análise em separado dos posicionamentos mais debatidos na atualidade, ambos expressos em decisões do STF.
3.2 EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA SOB O PARADIGMA DO HABEAS CORPUS 84.078/MG
Antes do julgamento do HC 84.078/MG, de relatoria do Ministro Eros Graus, prevalecia no âmbito do STF o entendimento de que era possível a execução provisória da pena logo após a decisão de segunda instância, não constituindo tal situação em ofensa ao princípio da presunção da inocência (BRASIL, 2018a).
Nota-se que a tese majoritariamente aceita e visualizada em diversos acórdãos da Corte Constitucional se apoiava na ideia de que tanto o recurso especial quanto o recurso extraordinário não possuem efeito suspensivo, logo, não se prestam a suspender o principal efeito da condenação penal, como se pode visualizar nas seguintes ementas:
EMENTA: CONSTITUCIONAL.PENAL.PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA: FUNDAMENTAÇÃO. SENTENÇA E ACÓRDÃO: FUNDAMENTAÇÃO. MANDADO DE PRISÃO: RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A CONDENAÇÃO: REEXAME DE PROVA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA: ART. 22, a, DO CÓDIGO PENAL: LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL.(...) III – Os recursos extraordinário e especial, que não têm efeito suspensivo, não impedem o cumprimento do mandado de prisão. (...) (BRASIL, 2018c).
“HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. NÃOCONFIGURAÇÃO DE REFORMATIO IN PEJUS. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo. (…) 3. Habeas corpus denegado. (BRASIL, 2018g).
“(…) - A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL NÃO IMPEDE - PRECISAMENTE POR SE TRATAR DE MODALIDADE DE IMPUGNAÇÃO RECURSAL DESVESTIDA DE EFEITO SUSPENSIVO - A IMEDIATA EXECUÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA, INVIABILIZANDO, POR ISSO MESMO, A CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA MEDIANTE FIANÇA”.) (BRASIL, 2018h)
Todavia, em fevereiro de 2009, o STF esboçou novo entendimento a respeito da execução provisória, passando a conceder ao princípio da presunção da inocência nova dimensão.
Em seu voto, o Ministro Eros Grau, relator do acórdão do HC 84.078/ MG (BRASIL, 2018b), fundamentou sua posição afirmando que não, sendo o caso de prisão preventiva, o encarceramento do réu após o julgamento pela segunda instância é antecipação da execução da pena.
No mesmo julgado, o Ministro também afirma que
quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial imponham ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Não me parece possível, salvo se for negado préstimo à Constituição, qualquer conclusão adversa ao que dispõe o inciso LVII do seu artigo 5o. Apenas um desafeto da Constituição -- lembro-me aqui de uma expressão de GERALDO ATALIBA, exemplo de dignidade, jurista maior, maior, muito maior do que pequenos arremedos de jurista poderíam supor --- apenas um desafeto da Constituição admitiria que ela permite seja alguém considerado culpado anteriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (BRASIL, 2018b).
Cabe lembrar que, conforme exposto no item 2.2 deste trabalho acadêmico, alguns dos principais argumentos trazidos pelo Ministro Eros Graus tratam-se da superação do texto do art. 637 do CPP pelo art. 164 da Lei de Execução Penal, o qual exige para o início da execução da pena a apresentação da certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado. Além disso, também foi citada a impossibilidade de execução provisória das penas restritivas de direito, que vem prevista no art. 147 da Lei de Execução Penal e tem sido aplicada de maneira uniforme pelos tribunais superiores.
Outra contribuição apresentada pelo relator é de que não se pode enxergar a ampla defesa de modo restrito, pois ela deve englobar todas as fases processuais, inclusive os recursos de natureza extraordinária. Logo, a execução provisória configuraria também restrição ao direito de defesa e caracterizaria desequilíbrio entre a pretensão do Estado na aplicação da pena e o direito do acusado (BRASIL, 2018b).
O Ministro Celso de Mello, em seu voto, afirmou que
o fato de alguém - independentemente de sua situação pessoal, social, política, econômica ou funcional - ostentar a condição jurídica de pessoa submetida a atos de persecução penal, mesmo perante órgãos da Polícia Judiciária, não lhe suprime nem lhe afeta a posição de sujeito de direitos e de titular de garantias indisponíveis, cuja intangibilidade há de ser preservada pelos magistrados e tribunais, especialmente por este Supremo Tribunal Federal. É por isso, Senhor Presidente, que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como se culpado fosse, antes que sobrevenha, contra ele, condenação penal transitada em julgado, (...) (BRASIL, 2018b).
Também entendeu o Ministro que a presunção de inocência não se esvazia no decorrer do processo, sendo que, mesmo que confirmada a condenação pela segunda instância, subsiste em favor do réu, até que se opere o trânsito em julgado, a presunção de inocência (BRASIL, 2018b).
Há que se acrescentar que, nas palavras do Ministro Carlos Ayres Brito, que
em momento algum vamos encontrar na Constituição, qualquer dos recursos excepcionais - e estou falando do recurso especial e do extraordinário - como causa automática de privação da liberdade de locomoção. Pelo contrário, com essa força da automaticidade, somente o flagrante delito (BRASIL, 2018b).
Esses foram alguns dos principais argumentos utilizados pelos ministros do STF a embasar a mudança do entendimento que até então prevalecia. Ressalta-se que a votação não foi unânime.
Tal entendimento foi majoritário nas decisões jurisdicionais brasileiras até que, em 2016, o STF novamente analisou este tema, cujo julgado será melhor analisado a seguir.
3.3 HABEAS CORPUS 126.292/SP E O ENTENDIMENTO ATUAL DO STF
Em 2016, o STF superou o entendimento até então dominante, voltando a considerar possível a execução provisória da pena logo após a confirmação da sentença pela segunda instância.
Conforme mencionado anteriormente, a mudança de paradigma envolveu discussão a respeito da aplicação do princípio da presunção da inocência, cujos fundamentos podem ser verificados no do item 2.3 dessa pesquisa acadêmica.
A ementa do acórdão do julgamento do HC 126.292/SP assim diz:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE.
1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado. (BRASIL, 2018a) (grifo).
Quanto aos fundamentos que se referem de maneira mais específica à execução provisória, cabe mencionar que o Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, afirmou que “ o pressuposto para a decretação da prisão no direito brasileiro não é o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas a ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente” (BRASIL, 2018a).
Logo, para o ministro, analisando os preceitos constitucionais à luz do princípio da unidade da constituição, o princípio da presunção da inocência não impede a prisão anteriormente ao trânsito em julgado, pois o pressuposto para a prisão não é o esgotamento da via recursal, mas sim a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (BRASIL, 2018a).
Também afirma o ministro que
o princípio da presunção de inocência e a inexistência de trânsito em julgado não obstam a prisão. Muito pelo contrário, no sistema processual penal brasileiro, a prisão pode ser justificada mesmo na fase pré-processual, contra meros investigados, ou na fase processual, ainda quando pesar contra o acusado somente indícios de autoria, sem qualquer declaração de culpa. E isso não esvazia a presunção de não culpabilidade: há diversos outros efeitos da condenação criminal que só podem ser produzidos com o trânsito em julgado, como os efeitos extrapenais (indenização do dano causado pelo crime, perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, etc.) e os efeitos penais secundários (reincidência, aumento do prazo da prescrição na hipótese de prática de novo crime, etc.). Assim sendo, e por decorrência lógica, do mesmo inciso LXI do artigo 5º deve-se extrair a possibilidade de prisão resultante de acórdão condenatório prolatado pelo Tribunal competente (BRASIL, 2018a).
Contribui a esse entendimento o fato de o artigo 312 do CPP prever três situações em que a decretação da prisão preventiva se justifica, quando já houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria (BRASIL, 2018a).
A primeira situação é a conveniência da instrução criminal, que visa garantir a colheita das provas. A segunda situação é a garantia da aplicação da lei penal, onde se busca evitar que o acusado se furte ao processo e ao seu resultado. Finalmente, a garantia da ordem pública e da ordem econômica (BRASIL, 2018a).
O STF, em relação à garantia da ordem pública, vem entendendo que esta não se presta apenas ao resguardo da integridade física do acusado e como meio de impedir a reiteração criminosa, mas também serve para assegurar a credibilidade das instituições públicas. Assim, quando ocorre a condenação do réu pela segunda instância, algumas certezas jurídicas são verificadas, tais como a materialidade do crime, autoria e impossibilidade de rediscutir fatos e provas. Tendo tal situação em vista, verifica-se que o retardamento da prisão do réu representaria contradição com a preservação da ordem pública, minimizando a eficácia do direito penal que se exige para a tutela do direito à vida, à segurança, à integridade das pessoas (BRASIL, 2018a).
É possível dizer que a “execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação pode contribuir para um maior equilíbrio e funcionalidade do sistema de justiça criminal” (BRASIL, 2018a).
A partir dessa nova posição,
reduz-se o estímulo à infindável interposição de recursos inadmissíveis. Impedir que condenações proferidas em grau de apelação produzam qualquer consequência, conferindo aos recursos aos tribunais superiores efeito suspensivo que eles não têm por força de lei, fomenta a utilização abusiva e protelatória da quase ilimitada gama de recursos existente em nosso sistema penal. (BRASIL, 2018a).
Há que se dizer também que a mudança na orientação jurisprudencial contribui para a quebra do atual paradigma da impunidade existente no direito penal brasileiro, pois, evitando que a punição possa ser retardada por vários anos, privilegia-se o sentimento de eficácia da lei penal (BRASIL, 2018a).
3.4 NOVOS JULGADOS E A REAFIRMAÇÃO DO POSICIONAMENTO DO STF
Após o julgamento do HC 126.292/SP, o Pleno do STF voltou a discutir a temática da execução provisória da pena privativa de liberdade em duas ações diretas de constitucionalidade.
Em outubro de 2016, na Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade 43, por maioria de votos, o STF decidiu pela constitucionalidade do art. 283 do CPP (BRASIL, 2018e), que diz em sua redação que
ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
Na ocasião, a Corte Constitucional manteve o entendimento de que a execução provisória pode ser iniciada a partir da confirmação da condenação pela segunda instância, sem ofensa ao princípio da presunção da inocência e reforçando que os recursos extraordinário e especial não possuem efeito suspensivo automático (BRASIL, 2018i).
Ressalta-se que, na mesma oportunidade, foi julgada conjuntamente a Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade 44, cuja decisão é idêntica à anteriormente referida (BRASIL, 2018j).
Até o ano de 2018, inúmeras vezes o STF, por meio de julgamentos de suas turmas, enfrentou recursos nos quais se discutiu a temática da execução provisória, sendo que a posição majoritária do órgão permanece a mesma.
3.5 CRÍTICAS AO NOVO POSICIONAMENTO DO STF
O atual posicionamento majoritário do STF vem recebendo inúmeras críticas por parte de advogados e juristas.
Luiz Flávio Gomes e Renne Ariel Dotti (2018) afirmam que
a Corte Maior rendeu-se a duas coordenadas:
(1ª) Ao mito de que a demora nos julgamentos nos tribunais superiores deve ser debitada à defesa dos condenados pelo abuso de recursos;
(2ª) Aos fortes e contínuos ventos soprados pela mídia sensacionalista de modo a enfunar as velas da embarcação rumo ao porto seguro da impunidade.
Para os juristas, o precedente afronta tanto o princípio da presunção de inocência enquanto cláusula pétrea insuscetível de deliberação por proposta de emenda, como também afronta princípios como o da independência e harmonia entre os poderes do Estado, o art. 283 do CPP, entre outros (GOMES e DOTTI, 2018).
Outro importante jurista que critica duramente o posicionamento do STF é Lênio Luiz Streck (2018). O jurista defende que um olhar cuidadoso e despido de fanatismos revela que os defensores da constitucionalidade do art. 283 do CPP jamais defenderam a proibição de prisões, mas sim que estas sejam condicionadas aos requisitos da prisão preventiva, ressalvando que, mesmo no julgamento de 2009, tal era o entendimento prevalente.
Streck (2018) também afirma que
todos verão que o sistema jurídico sofrerá um retrocesso e o sistema prisional entrará em colapso, além de sufragar prisões de pessoas sem antecedentes e/ou que foram condenados por prova ilícita ou probabilismos e teses exóticas que começam a vicejar nesse neopunitivismo turbo-3.0.
A solução apresentada por Streck (2018) passa pela efetividade da garantia do acesso à justiça. Defende o jurista que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem apenas uma dezena de ministros para julgar os processos criminais de mais de 200 milhões de brasileiros e nega quase a totalidade dos recursos. Streck resume dizendo que “em vez de melhorar o acesso, impede-se o recurso”.
A conclusão a que o jurista chega é de que
só não vê quem não quer. Imaginem alguém (i) cuja denúncia é recebida por in dubio pro societate (denúncia, por exemplo, oferecida pelo promotor de Goiás que acompanha mandado de prisão vestido de militar, com roupa camuflada e tudo), (ii) é sentenciado por um juiz que diz que devemos ter medo do Judiciário, cuja decisão ignora a tese de que houve prova ilícita e que, (iii) em segundo grau, cai em um órgão fracionário daqueles que os advogados apelidam de Câmara de Gás. Vingando a tese da prisão direta (como consta da Súmula 122), vai direto para a prisão. Escapando do filtro do 1% de que falaram os ministros Barroso e Schietti, constata-se, três anos depois, que a prova era ilícita. A vida do réu já estará desgraçada pelo sistema em ECI[1]. E assim por diante. Um juiz faz inimizades na comarca. Armam contra ele. Julgamento do TJ; condenado. Vai cumprir pena direto. Mesmo que consiga provar, depois, a armação.
Por isso, ofereço a luneta democrática. A luneta garantidora. Deem uma mirada. (STRECK, 2018).
Ingo Wolfgang Sarlet (2018) assevera que a mudança de qualidade jurídica entre uma prisão preventiva e uma execução provisória da pena enfrenta a regra da presunção de inocência, pois a prisão processual é sempre temporária, mas a execução provisória, ainda que seja precária, indica um juízo de culpa já formado, mas que poderá ser desconstituído.
Sarlet (2018) também destaca que
admitindo-se, ad argumentandum, que viável um juízo de ponderação, será mesmo proporcional (ou razoável, para quem preferir seguir essa linha) apostar na execução provisória?
Não seria mais correto reconhecer, como possível alternativa, que uma vez confirmada decisão condenatória a pena restritiva da liberdade em regime fechado (no caso dos demais regimes e na ausência de estabelecimento apropriado há de se admitir a prisão domiciliar e outras medidas cautelares), reforçada a legitimidade da decretação e mais ainda a manutenção da prisão preventiva quando a condenação for em sede de Duplo Grau?
Seguindo essa linha de raciocínio, Sarlet (2018) pondera que o sistema brasileiro já possui os instrumentos que, se bem aplicados, podem ser eficazes e adequados para o combate da impunidade seletiva sem que se recorra à execução provisória.
Dito isso, com facilidade se constata que a tese a respeito da execução provisória e da aplicação do princípio da presunção da inocência defendida majoritariamente pelo STF apresenta inconsistências e vem sendo muito criticada pela doutrina.
CONCLUSÃO
Conforme foi anteriormente mencionado, o presente trabalho acadêmico buscou demonstrar as questões que envolvem o tema da execução provisória da pena privativa de liberdade e da aplicação do princípio da presunção da inocência.
Para tanto, no primeiro capítulo, foram apresentados aspectos gerais a respeito da execução penal no Direito Brasileiro, como a conceituação, natureza jurídica e princípios aplicáveis.
No segundo capítulo, deu-se ênfase ao estudo do princípio da presunção da inocência, demonstrando-se o seu conceito e as interpretações realizadas no âmbito do HC 84.078/MG e do HC 126.292/SP.
Finalmente, analisou-se a temática envolvendo o estudo da execução provisória da pena privativa de liberdade após a sentença confirmatória da condenação pela segunda instância. Para tanto, fez-se a diferenciação entre prisão-pena e prisão cautelar e também a análise dos argumentos utilizados no HC 84.078/MG e no HC 126.292/SP. Além disso, foram examinados novos julgados que confirmaram o entendimento atual do STF e críticas a esse mesmo posicionamento.
Assim, pode-se afirmar que a jurisprudência anterior ao HC 126.292/SP defendia a impossibilidade da execução provisória da pena a partir da condenação pela segunda instância, pois, conforme demonstrado, dava interpretação literal ao princípio constitucional da presunção da inocência, entendendo que a execução antes do trânsito em julgado ofendia a garantia constitucional.
Com o julgamento do HC 126.292/SP foi superado esse entendimento, por maioria de votos, passando-se a entender que a execução provisória não ofendia a garantia da presunção da inocência, mas que, passado o julgamento por um tribunal de segunda instância, dentre outros argumentos, findava-se a possibilidade de discussão a respeito da matéria fática, logo, a presunção de inocência poderia ser relativizada. Outro argumento mencionado é de que os recursos especiais e extraordinários não possuem efeito suspensivo.
Dessa forma, concluída a pesquisa acadêmica, foi possível conhecer não só a fundamentação que embasou o HC 84.078/MG, entendimento hoje superado, mas que ainda possui muitos defensores, e também foi possível entender os argumentos utilizados no julgamento do HC 126.292/SP, que alterou o posicionamento do STF e passou a permitir a execução provisória e vem enfrentando muitas críticas.
Confrontando-se de maneira crítica ambos os posicionamentos já adotados pelo STF, é possível perceber que, não obstante sejam importantes os argumentos que levaram a Corte Constitucional a se manifestar pela possibilidade da execução provisória, tal entendimento parece afrontar a garantia constitucional da presunção da inocência.
Percebe-se que os altos índices de criminalidade, violência, corrupção na esfera pública, injustiças de toda a ordem, bem como a desconfiada da eficácia do Poder Judiciário em relação à efetividade da justiça têm servido de fundamento para que qualquer posição que aparente, ainda que superficialmente, conduzir à justiça, seja tomada.
Todavia, o estudo das decisões apresentadas nesse trabalho acadêmico permite concluir que o fortalecimento da garantia do acesso ao judiciário e a utilização da prisão preventiva em vez da execução provisória, atenderiam de maneira mais eficaz tanto aos anseios da sociedade quanto às normais constitucionais.
REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto Claudio Pâncaro. Processo Penal Esquematizado. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal de Federal. Habeas Corpus 126.292. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246. Acesso em: 31 out. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 84.078. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608531>. Acesso em: 31 out. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 74.983. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75650 >. Acesso em: 30 out. 2018.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 01 nov. 2018.
______. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 01 nov. 2018.
______. Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7960.htm>. Acesso em: 01 nov. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 91.675. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=499432>. Acesso em: 01 nov. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 70.662. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=72593>. Acesso em: 01 nov. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Constitucionalidade 43. Disponível em: >http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14452269 > Acesso em: 16 nov. 2018.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Constitucionalidade 44. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=144525411> Acesso em: 16 nov. 2018.
GOMES, Luiz Flávio; DOTTI, Renne Ariel. Execução provisória da pena logo após a decisão de 2º grau: irretroatividade da mudança jurisprudencial do STF desfavorável ao réu. Disponível em:> https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI243522,61044-Execucao+provisoria+da+pena+logo+apos+a+decisao+de+2+grau< Acesso em: 16 nov. 2018.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Natureza Jurídica da Execução Penal, in GRINOVER, Ada Pellegrini (coord). Execução Penal: mesas de processo penal, doutrina, jurisprudência e súmulas. São Paulo: Max Limonad, 1987.
MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução penal. 6 ed. São Paulo: RT, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. Uma questão de regra ou de princípio – execução provisória da pena. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-ago-25/direitos-fundamentais-questao-regra-ou-principio-execucao-provisoria-pena >. Acesso em: 16 de nov. 2018.
STRECK, Lenio Luiz. A presunção da inocência e meu telescópio: 10 pontos para (não) jejuar. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-02/streck-presuncao-inocencia-10-pontos-nao-jejuar > Acesso em: 16 nov. 2018.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 12 ed. Salvador: Juspodvm, 2017.
Advogada. Graduação em Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Santo Ângelo/RS e Especialização em Direito Penal e Processual Penal junto à Escola Superior Verbo Jurídico, em Porto Alegre/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COZZATTI, Renata Bajerski Gielow. A execução provisória da pena privativa de liberdade e o princípio da presunção da inocência: o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jul 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53120/a-execucao-provisoria-da-pena-privativa-de-liberdade-e-o-principio-da-presuncao-da-inocencia-o-atual-posicionamento-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.