Resumo: Quando o comentário jurídico torna-se uma peça esotérica, o entendimento das normas vira uma introspecção e a megaestrutura do Judiciário rouba dele o poder do convencimento, é chegado o momento de reconhecer que a justiça agora só nos abre a porta que dá acesso pela escada dos fundos.
Introdução
1. O filósofo alemão Wilhelm Weischedel só é conhecido no Brasil pela sua única obra traduzida, à qual deu o curioso nome de “A Escada dos Fundos da Filosofia”. Justificou o título no fato de não se prender aos grandes feitos filosóficos, expressos em escolas célebres ou em sistemas de grande complexidade, mas sim ao vínculo determinante do entendimento da Filosofia que se situa no âmbito da vida cotidiana, nos acontecimentos históricos que provocaram os pensadores mais fecundos desde os antigos gregos e nas tentativas que eles fizeram de superar os limites da razão, como ela se apresentava no seu tempo de vida
Propôs então que se ingressasse nos domínios filosóficos não pelo pórtico frontal, tão saudado nos estudos eruditos de sistematização acadêmica, mas pela escada dos fundos, onde os desvãos escondem as hesitações do pensamento filosófico, seus passos inseguros, e – menos do que revelar seu brilho – mostram que a cuidadosa subida em busca da verdade se faz num ambiente pouco iluminado, em que as sombras do não-saber, tão vizinhas, têm de ser deixadas para trás.
Por exemplo, ao examinar o trabalho do filósofo existencialista Karl Jaspers, também alemão, o autor da obra titulou o capítulo como “O Malogro Fecundo”, com muita propriedade, pois – para a filosofia da existência – a vida encerra apenas a tentativa de produzir “o pensamento por meio do qual o homem quer se tornar ele mesmo”. Isto quer dizer que “filosofando procuramos manter a direção, sem conhecer o destino”.
2. Quem dera tivéssemos a alternativa sincera de pensar assim a respeito do Direito, de admitir suas incertezas relacionadas com um destino inseguro, mas cercado das garantias de exatidão do método, para que ele não se tornasse objeto da alienação dos efeitos pretendidos, isto é, um Direito sempre infirmado, sempre errático, de tal modo que o trabalho de edificá-lo pudesse ser visto, de outro ângulo, como a própria obra da sua destruição.
Mas, pudera, toda a análise que se procura fazer é de uma dispersão sem fim. Desde que Orlando Gomes publicou “A Crise do Direito”, em 1955, até hoje uma análise que não foi superada, todos os sinais de ruptura e de desencanto com a sistematização jurídica não cessaram de crescer.
Mais ainda: passaram a compor um quadro crônico, pois os motivos da crise não foram enfrentados com método e – sem método – tudo o que se consegue conceber é uma interminável crônica de casos judiciais aberrantes, de retrocessos e de promessas vazias de um compromisso mais estável com a legalidade, que então se torna fugidia.
Os comentários técnicos, que poderiam esclarecer um pouco acerca dessa fluidez perturbadora, são seduzidos pela ‘insustentável leveza’ da crítica e, a seu modo, apenas dão continuidade a uma busca insólita por uma tênue justiça que não é reconhecida em lugar nenhum, nem identificada, nem se apresenta para reconhecimento geral e que, finalmente, por isso tudo, não pode ser encontrada.
Em geral, os comentários se agrupam nos seguintes tipos:
(1) Considerações sobre alterações legislativas e novos julgamentos que alteram a interpretação anteriormente assente;
(2) Análises de fundo doutrinário sobre filiação ideológica, dogmática ou política das próprias críticas contidas nos julgados ao ordenamento normativo;
(3) Crônicas sobre fatos curiosos, excêntricos, dissonantes e regimes especiais reconhecidos a situações esdrúxulas ou muito peculiares, que sempre chamam a atenção e permitem digressões que permitem o riso, a pilhéria ou o eufemismo a respeito da submissão legal a que estão sujeito os desavisados;
(4) Esforço sistematizador do que se apresenta como discrepante, o que se mostra invariáveis vezes como o Mito de Sísifo, pois reunir pedras rolantes sobre uma montanha significa apenas que elas rolarão de novo. Isto quer dizer que o processo de integração da discrepância sempre será tão inútil como proveitoso seria recusá-la;
(5) Por fim, a pregação a respeito de intermináveis novidades, como a aplicação da Teoria dos Jogos, do universo matemático, aos julgamentos judiciais, ou interpretações elucubrativas que nada têm a ver com os estudos clássicos, como o de Carlos Maximiliano (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”) e que também não inovam, a não ser no sentido do esoterismo. Junto com essa pregação também comparecem os modismos como a “Teoria da Árvore Envenenada” ou a “Teoria da Janela Quebrada”, sem falar nas infinitas variações sobre a “Teoria do Domínio do Fato”, de forma a desvinculá-la até mesmo da sua aplicação no histórico Julgamento de Nuremberg. Assim, os estudos dogmáticos de Hans Welzel, que hoje têm em Claus Roxin seu principal divulgador, a respeito do ‘conhecimento funcional do fato’ e da responsabilidade penal de quem tem o ‘comando funcional da vontade’ e da determinação do delito, passaram a ser objeto de comentários os mais dispersos, de modo que essa teoria séria passou a figurar apenas como um estandarte para uso ocasional e controvertido, como a “árvore envenenada” ou a “janela quebrada”, antes mencionadas, que são ‘teorias’ apenas no nome.
Conclusão do tópico: vivemos sob o comando do comentário dispersivo. O texto jurídico sofre um irrefreável apelo alienante. Tornou-se difícil defrontar com alguma formulação cognoscitiva. Quando foram expulsos os holandeses do Brasil no Século XVII e a Holanda passou a pressionar Portugal pelo pagamento de uma indenização, que afinal obteve, como narra o historiador Evaldo Cabral de Mello no livro “O Negócio do Brasil”, o Padre Vieira escreveu que não havia cidadão lusitano alfabetizado que não redigisse seu ‘parecer’ a respeito de como interpretar o caso à luz das Ordenações e dos tratados... E é assim que estamos: as exegeses intermináveis nos sufocam. A lei foi afastada para a soleira da porta. Seus textos, como pés nus, estão no rés do chão.
3. Não é de causar espécie, portanto, que o entendimento das normas jurídicas torne-se uma introspecção. Cada um pensa o que quer. Essa liberdade de entendimento poderia parecer um resgate da independência de convicção pela qual lutaram mártires e que custou o silêncio de Galileu ou a vida de Giordano Bruno, extinta na fogueira, entre milhares.
Mas não é assim. Há uma objetividade na verdade, ou seja, a verdade deve ser objetivada, caso contrário não se afirma. “Meu entendimento é este”; “assim percebo (sinto, considero, valorizo, etc) o sentido interior do preceito”; “vejo que a letra da lei visa mais do que está escrito”; “considero que se impõe a força normatizadora da Constituição sobre a vigência ou sobre a deficiência da lei”; “não se aplica in casu o preceito porque ele se enquadra como excepcional”; “deve vigorar o princípio da colegialidade sobre a convicção pessoal”; “trata-se de afastar para este caso o precedente que o tribunal estabeleceu”... Todas essas formas de tergiversação não produzem o convencimento. São técnicas e preciosismos dos coveiros do Direito.
Todo caso judicial deve ser julgado em sua peculiaridade, isto é, consideradas as suas condições específicas, mas o julgamento nem assim pode abandonar o padrão usado para apreciar todas as causas. Não há ‘peculiaridade de julgamento’ – mas, ao contrário, um padrão reconhecível – na apreciação de um caso por mais peculiar que ela seja em seu objeto. Há situações análogas, já reconhecidas nos julgamentos em bloco nos tribunais, quando eles aplicam efeitos extensivos por analogia juris ou analogia legis, como há outras situações peculiares, cuja apreciação deve ser específica. Todavia, nem a apreciação específica pode fugir a padrões de análise, mesmo diante do fato circunstancial, pois ao contrário seria instaurado o ‘domínio do sortilégio’, e a ‘roda da fortuna’ giraria aleatoriamente, de acordo com expressões como as transcritas, que fizessem suas introspecções interpretativas.
Conclusão do tópico: O que poderia parecer um cuidado no exame dos casos submetidos a julgamento, na verdade é um preciosismo errante que tem feito dos tribunais nosso Oráculo de Delfos moderno. Seus pronunciamentos até se revelam certos em muitos litígios, mas isso não depende da acuidade de exame, mas do mais puro e aleatório acaso. As partes sabem disso. Os advogados sabem disso. Os juízes sabem disso. O que ninguém parece saber é porque esse resultado foi adotado como definitivo do nosso destino neste pedaço da Terra que habitamos.
4. A megaestrutura do Judiciário rouba dele o poder de convencimento. Recentemente, o STJ aprovou a proposta que fará ao Congresso da criação de mais um TRF, com sede na capital de Minas Gerais. Assim fica abandonada a ideia de deslocar parte da Justiça Federal mais para o interior do país, tendo em vista a grande área territorial jurisdicionada pelo TRF da 1ª Região (Brasília).
Contudo, a megaestrutura do Judiciário já é inadministrável, quanto mais se ainda for ampliada. Seu corpo funcional tem interesses próprios. Há milhares de funções administrativas que nada têm a ver com a atividade fim. Para cuidar dos palácios envidraçados na capital da República, recentemente veio a público que o STJ contrata jauzeiros através de empresas terceirizadas, isto é, aqueles operários que sobem em estruturas metálicas conhecidas pela marca de uma das mais conhecidas delas, Jahu. O também recente pregão eletrônico do STF para a contratação de um fornecedor para banquetes, com inclusão de lagostas, champanhes especiais e outros itens de luxo, causou grande estrépito e uma lista de protesto na Internet com centenas de milhares de assinaturas. A Folha de S. Paulo documentou que há pouco o TJ do Pará aposentou um funcionário do serviço de transportes daquele tribunal (atividade-meio, portanto) com proventos superiores a 56 mil reais. Poderia ser dito que as distorções existem também nos Tribunais de Contas por todo o país, pelas casas legislativas e pelos órgãos do Ministério Público, e isso é verdade. Como é verdade que o Senado, incumbido de processar os muitos pedidos de impeachment contra ministros togados, que se nega a processar (como também se negou a instaurar a CPI da Lava-Toga), é a segunda casa legislativa mais cara do mundo (com seus assessores legislativos figurando como os novos príncipes da República e ganhando mais do que ministros do STF), só perdendo para o Senado americano, que tem muitos encargos de fiscalização internacional no acompanhamento da política externa e guerras. Todavia, quando o Judiciário comparece como protagonista eminente nessa lista antirrepublicana, é então que desperta o sentimento do incomensurável e do irremediável no senso de percepção pública.
As entidades corporativas vinculadas ao Judiciário, dos servidores, dos juízes, dos antigos vogais da Justiça do Trabalho, dos pensionistas, assim como os inumeráveis conselhos, com as suas estruturas custosas e inúteis, que dificultam a atividade-fim jurisdicional, sempre coadjuvados pelas corporações do Ministério Público, só criam entraves, dificuldades invencíveis, isto quando não editam ou prescrevem normas tão numerosas que são impossíveis de serem cumpridas. A consolidação das regras normativas de caráter correicional e administrativo do TRF da 4ª Região, por exemplo, tem mais artigos do que o Código Civil. Basta consultar o site do referido Tribunal.
O Judiciário no Brasil precisaria encolher para conseguir ser operacional. Tornou-se um Titanic que não pode desviar do iceberg ainda quando o avista. Como produzir uma metodologia de caráter científico que faça essa megaestrutura funcionar e sensibilizar-se com os problemas da população?
Conclusão do tópico: O Judiciário brasileiro ganhou forma só comparável com a burocracia que existiu durante o regime dos czares russos, ou da nomenclatura que a sucedeu no regime soviético. Poderia ser lembrado que na França, onde se situa uma das nossas matrizes civilizatórias, toda a estrutura judiciária pertence e é administrada pelo Ministério da Justiça: funcionários, recursos, palácios, todas as atividades-meio como restaurantes, cantinas, manutenção, gráficas, transportes. O Poder Judiciário como tal, isto é, aquele que se expressa pela jurisdição, está todo concentrado no que os franceses chamam de autoridade judicial, personificado tão somente pelo quadro dos juízes. Seria utópico pretender o mesmo neste Brasil marcado desde suas origens pelos fidalgos portugueses, pelos donatários de bens públicos, pelos vice-reis plenipotenciários, pelos emboabas... Todavia, novos parâmetros têm de ser estabelecidos, inspirados nas experiências que mais deram certo. Quando Roma foi fundada, seus primeiros reis organizaram uma missão peregrina que foi colher ensinamentos na Grécia e dessa missão resultou a Lei das Doze Tábuas, da qual restam fragmentos, e que foi o primeiro passo para a gigantesca construção jurídica dos romanos. Humildade igual nos recompensará – e nos tirará do Pandemônio.
5. Precisamos urgentemente estabelecer um novo olhar sobre a realidade da cena que cerca o conhecimento e a prática do Direito no Brasil. Há uma suntuosa decadência dos tribunais superiores, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, que já foi o melhor tribunal do país e hoje opera como uma rinha de apostas e, numa competição destrutiva de personalidades narcísicas, desconstrói olimpicamente o pouco que o país edificou durante muitas gerações para ter relações estáveis, democráticas e garantidoras de seu povo. A produção dogmática do STF é especiosa, pedante, carregada de preciosismos que não se integram em nenhuma teoria interpretativa respeitável e, seguidamente, produz um resultado desastroso. O Judiciário passou a ter na última década uma característica opressiva, não porque opere com a repressão, mas por sua inoperância jurisdicional e o manifesto desvio de suas funções administrativas. De tal modo que o povo não se identifica com o STF, tão ao contrário dos americanos com a sua Suprema Corte, e ele também desdenha do povo, quando não proclama – como seguidamente o faz – que a opinião pública é irrelevante e seus ministros não se curvam a ela.
Um novo olhar terá de ser estabelecidos desde as nossas raízes. O pórtico solene dos tribunais de Brasília e das capitais de Estados não é um caminho aberto para subir a escada da frente do Direito, quando mais a da Filosofia e sua tentativa de entendimento da vida. Resta-nos a humilde escada dos fundos, mas é por ela que deixaremos para trás as trevas da impostura, da desassistência e da irrisão. Estamos enlameados pela algaravia supostamente jurídica de um Direito morto que, não obstante, é o que se pratica. Por isso talvez devêssemos ouvir a gravação deixada por Almir Guineto para a canção de Jesse Filho e Almir Serra, “Lama nas Ruas”:
Que importa
Se há tanta lama nas ruas
E o céu é deserto e sem brilho de luar
Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. O paradoxo do nosso tempo: o direito vivido é exatamente aquele que está morto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2019, 07:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53141/o-paradoxo-do-nosso-tempo-o-direito-vivido-e-exatamente-aquele-que-esta-morto. Acesso em: 22 dez 2024.
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