RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal a análise da possibilidade e da extensão de restrições à intimidade genética dos trabalhadores na relação de emprego. Para satisfação deste desiderato, foram examinados os aspectos fundamentais da bioética e do biodireito. Na sequência, buscou-se explicitar o conteúdo do direito à intimidade genética, analisando-se, ao final, critérios para eventual ocorrência de restrições a este direito no contexto do contrato de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria dos Direitos Fundamentais; Direito diretivo do empregador; Bioética; Biodireito; Intimidade Genética.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O direito à intimidade genética. 2.1 Bioética e biodireito: aspectos fundamentais. 2.2 A intimidade genética. 2.2.1 O direito à intimidade. 2.2.2 O direito à intimidade genética. 3 A intimidade genética na relação de emprego. 4 Conclusões. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Desde a descoberta, nos anos de 1950, da estrutura do DNA, as potencialidades de utilização das informações contidas no genoma desenvolveram-se com velocidade espantosa. Os avanços da biotecnologia deram a conhecer ao homem, nos últimos sessenta anos, muito mais sobre sua estrutura orgânica e seus elementos identificadores mais essenciais do que todo o restante da história humana. Ao novo universo de dados aliaram-se a criação de técnicas científicas e a inauguração de dezenas de áreas de pesquisa. Pode-se, mesmo, falar numa verdadeira revolução biotecnológica.
Atualmente, é possível, através do mapeamento genético de um sujeito, investigar, com quase total acerto, sua filiação, descobrir propensões a enfermidades, examinar a existência de incompatibilidades com medicamentos — e até fixar sua adequada dose a cada indivíduo — e desenvolver tratamentos terapêuticos, com as mais variadas finalidades, mediante a medicina genética preditiva. Os resultados das novas técnicas alcançam repercussões em inúmeros setores da vida humana. Precisamente por isso, geram inevitáveis efeitos em diversos ramos do Direito. Hoje, as questões propostas aos juristas pela genética vão desde o Direito de Propriedade Intelectual até a Responsabilidade Civil, do Direito Penal ao Direito do Trabalho.
O presente estudo, diante dessas constatações, destina-se a analisar as implicações do uso da biotecnologia no contexto de um dos mais relevantes fatores para a existência digna do ser humano: o trabalho. Examinar-se-á, assim, o tema da intimidade genética do trabalhador na relação de emprego, especialmente no que se refere às possibilidades e às eventuais condições de restrição deste direito.
2 O DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA
A mais relevante implicação das inovações tecnológicas no âmbito da genética diz respeito aos problemas relacionados à utilização — explícita ou dissimulada — do material coletado para realização de análises visando à obtenção do mapeamento do perfil[1] genético dos trabalhadores. Expedientes dessa natureza, conquanto ainda não sejam financeiramente viáveis em larga escala no Brasil, certamente se tornarão frequentes em relativamente pouco tempo, dado o avanço da tecnologia. Os aparelhos imprescindíveis para tanto tornam-se, a cada dia, mais móveis e baratos[2]. A devassa de dados genéticos deixou de ser simples tema de ficção científica.
A análise acerca da possibilidade de realização desses exames e das temáticas relativas ao acesso aos resultados exige, previamente, a abordagem sobre os elementos estruturais da bioética e do biodireito, assim como a investigação em torno do direito à intimidade genética. Serão estes, então, o objeto dos próximos tópicos.
2.1 BIOÉTICA E BIODIREITO: ASPECTOS FUNDAMENTAIS
A bioética é definida, na Encyclopedia of Bioethics, como “o estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princípios morais”[3]. Atribui-se a criação do termo ao médico americano VAN RENSSELAER POTTER, em opúsculo publicado em 1970. A pretensão de POTTER era “construir un proyecto global, que aunara el conocimiento biológico y el conocimiento de los sistemas de valores humanos, el encuentro o reencuentro entre los hechos y los valores”[4].
No final da década de 1970, BEAUCHAMP e CHILDRESS delineiam, na obra Principles of Biomedical Ethics, alguns princípios considerados inerentes à bioética. Neste ramo do conhecimento, foram, posteriormente, elaboradas abordagens diversas da teoria principialista proposta pelos mencionados autores[5]. Não obstante, em razão de sua importância para a consolidação da disciplina e de sua utilização no desenvolvimento de inúmeras pesquisas, impende analisar, ainda que brevemente, os postulados indicados, a saber: beneficência, não malevolência, autonomia e justiça.
O princípio da beneficência veicula a obrigação de assegurar o bem-estar do paciente, elevando benefícios e reduzindo riscos[6]. A seu turno, o princípio da não malevolência veda a provocação de dano a outrem[7]. O princípio da autonomia “estabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do paciente e legitima a obrigatoriedade do consenso livre informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto”[8]. O princípio da justiça traduz a idéia de vedação à discriminação, ressalvada a existência de fator justificador[9]. A estes postulados é possível, ainda, acrescentar, como elementar à bioética, o princípio da dignidade humana, o qual, em razão de seu papel central no Direito, será posteriormente analisado.
É no campo da bioética que são travadas, contemporaneamente, algumas das mais relevantes e inquietantes discussões científicas, com evidentes repercussões nos diversos setores relacionados à vida do homem e sua interação com a natureza[10]. Precisamente por isto, afirmou-se, nas últimas décadas, o interesse das nações em regular juridicamente as questões atinentes à bioética: surgia, então, o que se passou a denominar de biodireito.
Pode-se definir o biodireito como a
disciplina, ainda nascente, que visa a determinar os limites de licitude do progresso científico, notadamente da biomedicina, não do ponto de vista das “exigências máximas” da fundação e da aplicação dos valores morais na práxis biomédica — isto é, a busca do que se “deve” fazer para atuar o “bem” — mas do ponto de vista da exigência ética “mínima” de estabelecer normas para a convivência social[11].
No plano internacional, os mais relevantes diplomas normativos relacionados ao biodireito são a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997), a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina (1997), a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (2003), a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (2005) e a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana (2005).
A principal preocupação destes documentos consiste na garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. A adequada compreensão do significado desse princípio para o direito somente é possível mediante a incursão nas reflexões éticas formuladas por IMMANUEL KANT.
Um dos aspectos fundamentais da obra do filósofo é, sem dúvida, a investigação moral por ele empreendida. Com efeito, KANT preocupa-se em justificar a atuação moral do ser humano por meio de um postulado apriorístico, inerente à própria racionalidade humana e de necessária observância como regra de conduta. A tal preceito, KANT denomina de imperativo categórico[12].
Tal imperativo pode ser explicitado através da seguinte sentença: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”[13].
Consoante se infere da máxima acima declinada, o filósofo não dirige sua atenção a enunciar comportamentos concretos que atenderiam à conduta ética, mas objetiva estabelecer uma regra abstrata determinante da atuação moral do homem. Assim, conforme lecionam EDUARDO BITTAR e GUILHERME ALMEIDA, no pensamento kantiano, o
agir moral é o agir de acordo com o dever; o agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza. Daí decorre que o sumo bem só pode ser algo que independa completamente de qualquer desejo exterior a si, de modo que consistirá no máximo cumprimento do dever pelo dever, do qual decorre a suma beatitude e a suma felicidade, como simples mérito de estar conforme ao dever e pelo dever.[14]
Nos “Fundamentos da Metafísica dos Costumes”, encontra-se a explicitação do imperativo categórico sob uma perspectiva do reconhecimento do valor humano. Tem-se, então, a enunciação do preceito que KANT denomina de imperativo prático, através da seguinte máxima: “age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio”[15].
O homem, assevera KANT, deve ser sempre um fim em si mesmo, não sendo franqueado, a quem quer que seja, reduzir uma pessoa à mera condição de meio para consecução de outras finalidades. O ser humano, ressalte-se, não possui preço, não pode ser substituído por qualquer equivalente, mas, ao revés, é inestimável, detentor, portanto, de dignidade.
A noção de dignidade humana, amplamente difundida na modernidade a partir das reflexões de KANT, encontra-se consagrada em diversas Constituições contemporâneas[16], figurando como verdadeiro lastro dos respectivos ordenamentos jurídicos.
Na atual Constituição brasileira, o princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no art. 1º, inciso III[17], como fundamento da República Federativa do Brasil, assim como no art. 170, caput, estando, aqui, alçado ao status de finalidade da Ordem Econômica.
Trata-se de princípio de elevada carga de indeterminação semântica. Ao discorrer acerca do seu conteúdo, ROBERT ALEXY reconhece que, podendo seu conceito ser expresso através de um plexo de condições concretas que devem estar presentes - ou que necessariamente devem ser repudiadas - a fim de que se assegure existência digna, pessoas diferentes indicariam conjuntos diversos de tais condições[18]. Não obstante, prossegue o autor, esses diferentes feixes de condições apontadas não serão absolutamente distintos, guardando, entre si, um grau mínimo de afinidade ou consenso. Não é difícil perceber, por exemplo, que, qualquer que seja a concepção adotada, condutas vexatórias, humilhantes serão tidas como violadoras da dignidade humana. Para além disso, diversos princípios materiais exsurgem como consectário da garantia do aludido princípio, tais como “aqueles que têm como objetivo a proteção dos aspectos mais íntimos dos seres humanos e aqueles que conferem ao indivíduo um direito prima facie à sua auto-representação em face dos outros indivíduos”[19].
De outra parte, lastreado em diversos posicionamentos doutrinários e na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, ALEXY sustenta que a liberdade consiste em elemento essencial à noção de dignidade humana[20]. Liberdade, aqui, assume a idéia de ausência de coerção sobre o ser humano em suas decisões. Não é possível, nesse sentido, sequer cogitar-se de dignidade humana, se não houver a garantia de livre desenvolvimento do indivíduo e autodeterminação. Salienta ALEXY, todavia, que a Corte Suprema Alemã não esposa uma compreensão individualista dessa liberdade, mas, antes, afirma “não ser uma liberdade ilimitada, mas uma liberdade de um ‘indivíduo referido e vinculado a uma comunidade’” [21].
Da lição do jurista alemão é possível extrair que o conteúdo do princípio da dignidade humana expressa, ao menos, três aspectos básicos: a) a vedação a condutas humilhantes ou degradantes; b) a garantia de autonomia do ser humano em suas escolhas, liberdade esta que se há de coadunar com a idéia de convivência em sociedade; c) diversos princípios materiais decorrem do princípio da dignidade humana, como condição para sua realização, dentre os quais é possível assinalar aqueles atinentes à própria personalidade dos sujeitos.
Posicionamento muito próximo é encontrado na doutrina pátria, presente na obra de INGO WOLFGANG SARLET, para o qual
(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.[22]
Podem-se divisar, no conceito de SARLET, os componentes básicos, acima assinalados, que concorrem na conformação do conteúdo jurídico da dignidade humana.
Um dos principais aspectos da personalidade relacionados à dignidade humana é, seguramente, a intimidade. O tópico seguinte destina-se exatamente a abordar o direito à intimidade e, particularmente, a vertente da intimidade genética.
2.2 A INTIMIDADE GENÉTICA
O específico exame do direito à intimidade genética exige, como etapa logicamente preliminar, a fixação do conceito e do conteúdo do direito à intimidade. Este, então, será o alvo de análise a seguir, partindo-se, logo após, para o enfrentamento daquele.
2.2.1 O direito à intimidade
Em contraposição ao espaço de exposição social ou vida pública do sujeito, está seu âmbito de resguardo ou de vida privada. É corrente na doutrina o recurso à figura do círculo concêntrico para indicar a existência de áreas diversas dentro vida privada, progressivamente mais restritas de acordo com grau de sigilo. A delimitação desses círculos, entretanto, não é consensual na doutrina.
PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, em conhecido trabalho, sustenta que o âmbito da vida particular pode ser dividido em três esferas: a maior delas, a “esfera privada stricto sensu”, corresponderia aos “comportamentos e acontecimentos que o indivíduo não quer que se tornem do domínio público”; a intermediária, a “esfera da intimidade”, diria respeito a “conversações ou acontecimentos íntimos, dele estando excluídos não só o quivis ex populo, como muitos membros que chegam a integrar a esfera pessoal do titular”; a mais restrita das esferas seria a do segredo, a qual corresponderia a “aquela parcela da vida particular que é conservada em segredo pelo indivíduo, do qual compartilham uns poucos amigos, muito chegados”[23].
Diversamente, MANOEL JORGE E SILVA NETO visualiza a intimidade como círculo concêntrico mais restrito, situado no interior do círculo da vida privada. Assevera o autor que
a primeira corresponde ao conjunto de informações, hábitos vícios, segredos, até mesmo desconhecidos do tecido familiar, ao passo que a última está assentada na proteção do que acontece no seio das relações familiares; proteção destinada a que se preserve no anonimato o quanto ali ocorre, exceto na hipótese de ofensa a interesse público[24].
Há, ainda, quem entenda não integrar a intimidade a “dialéctica público-privado”[25], constituindo-se em verdadeiro elemento fundante, pressuposto à constituição da vida pública e da vida privada.
A seu turno, PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA FILHO sustentam que “a vida privada é entendida como a vida particular da pessoa natural (right of privacy), compreendendo-se como uma de suas manifestações o direito à intimidade”[26].
ROXANA CARDOSO BRASILEIRO BORGES, por sua vez, obtempera que a “cisão do conceito de vida privada em direito à privacidade e direito à intimidade não é, propriamente, uma distinção conceitual, mas uma questão de abrangência”[27].
Neste trabalho, em sentido próximo à compreensão apresentada por MANOEL JORGE E SILVA NETO, visualiza-se o âmbito da vida privada do indivíduo representado por um círculo, no interior do qual, mais restrito, está o círculo da intimidade. A vida privada abrange, genericamente, fatos ou informações que o indivíduo não deseja submeter à exposição pública, correspondendo a um espaço de relações sociais mais reservado. A intimidade, a seu tempo, corresponde àqueles fatos, características ou informações objeto de maior sigilo por parte do sujeito, normalmente referentes aos aspectos mais elementares do seu “ser existencial”[28] e, precisamente por isto, sendo compartilhados somente com as pessoas mais próximas de seu ambiente de convivência.
No ordenamento constitucional brasileiro, a proteção à intimidade está prevista no art. 5º, inciso X[29].
Cumpre, agora, avançar para o exame da intimidade genética. É o que se fará a seguir.
2.2.2 O direito à intimidade genética
Pode-se definir o direito à intimidade genética, como o faz CARLOS RUÍZ MIGUEL, como o “derecho a determinar las condiciones de acceso a la información genética”[30], compreendendo um elemento objetivo e um subjetivo.
O elemento objetivo corresponde ao próprio genoma humano e, “por derivación, cualquier tejido o parte del cuerpo humano en el que se encuentre esa información genética”[31]. A seu turno, o aspecto subjetivo refere-se à vontade de “determinar quien y en qué condiciones puede acceder a la información sobre su genoma”[32], estando relacionado, portanto, com a noção de autodeterminação informática.
É inquestionável que, na atualidade, o perfil genético é um verdadeiro “meio de identificação da pessoa física”[33]. Ademais, por seu caráter intergeracional, constitui, também, um meio de identificação de informações genéticas dos familiares da pessoa cujo mapeamento genético foi realizado. Conhecer o perfil genético de uma pessoa é, sem exagero, conhecer ao menos parte da “história genética” de seus ascendentes, descendentes, irmãos e outros familiares. Reside aqui, inclusive, um dos pontos mais sensíveis a respeito da disponibilidade do acesso às informações genéticas de um sujeito: ela jamais se referirá verdadeiramente a apenas esse indivíduo.
E este é somente um dos aspectos complexos em torno da intimidade genética. Além das variadas possibilidades de discriminação, praticáveis no âmbito de diversos ramos do Direito[34], há, também, a delicada questão da não obrigatoriedade de conhecimento dessas informações por parte do próprio indivíduo, titular que é do direito de autodeterminação informática. Com efeito, em muitos casos, “só o fato de saber que é predisposta a determinadas doenças pode ser suficiente para causar danos emocionais irreparáveis à pessoa testada”[35]. Naturalmente, o avanço da medicina permite, em múltiplas situações, que o conhecimento preditivo seja utilizado para fundamentar o tratamento precoce do sujeito, beneficiando sua saúde. Há, todavia, os trágicos casos de descoberta de mutação que, embora ainda assintomática, não possui tratamento na literatura médica[36]. Nestas hipóteses, o sujeito sabe não apenas que é portador de enfermidade incurável que potencialmente se desenvolverá, como também que seus descendentes terão probabilidade de o ser.
Verifica-se, portanto, que o acesso às informações genéticas de um indivíduo é um meio para conhecimento dos aspectos mais elementares de sua estrutura orgânica, gerando repercussões em inúmeros setores da vida do sujeito. Dentre eles, o profissional. Cumpre, agora, então, analisar a proteção da intimidade genética na relação de emprego e a possibilidade de ocorrência de restrições[37] a este direito.
3 A INTIMIDADE GENÉTICA NA RELAÇÃO DE EMPREGO
No ordenamento brasileiro, encontra o empregador amparo normativo para realização de exames nos trabalhadores vinculados à empresa no art. 168[38] da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como na Norma Regulamentadora n.º 07[39], do Ministério do Trabalho e Emprego, com redação estabelecida pela Portaria SSST n.º 24, de 29 de dezembro de 1994. Os dispositivos reguladores do tema suscitam diversos aspectos questionáveis: as espécies de exames — regulares e complementares — realizados a partir da coleta do material necessário; a obrigatoriedade de comunicação, ao empregador e ao obreiro, dos resultados dos exames; a conservação dos resultados na posse de pessoa diversa do empregado examinado e a extensão de eventual acesso de terceiros a esses resultados preservados.
A intimidade genética é um direito fundamental. Como tal, não se reveste de caráter absoluto, podendo sofrer restrições nas hipóteses de colisão com outros direitos, a exemplo do direito diretivo[40] titularizado pelo empregador. A decisão dos casos nos quais se verifique o conflito dependerá de suas circunstâncias fáticas e da consideração dos demais princípios envolvidos, observando-se o procedimento da ponderação.
Não obstante as soluções sejam casuísticas, afirma-se aqui, com lastro na doutrina de WILSON STEINMETZ, a existência de uma precedência prima facie em favor do direito à intimidade genética do trabalhador, por se tratar de direito de natureza pessoal exercido no contexto de uma relação em que uma das partes detém, por questões sócio-econômicas, a possibilidade fática de fazer prevalecer sua vontade[41].
Neste diapasão, o acesso às informações genéticas pelo empregador somente será possível diante de circunstâncias excepcionais justificadoras da restrição, isto é, diante de fatores idôneos a superar a precedência prima facie, desde que, evidentemente, a possibilidade de acesso a tais informações haja sido previamente contratada[42]. Não havendo estipulação anterior entre as partes ou, ainda que esta exista, não estando presente causa suficiente para justificar o acesso, este deve ser reputado ilícito.
Pode-se objetar contra esta tese o argumento de que se estaria diante de renúncia a direito fundamental através do contrato, não admitida pelo Direito do Trabalho[43]. A contestação, todavia, não prospera por três motivos. Primeiro, o empregado não realizará a disposição do direito em si. Haverá em tais casos, certamente, a devassa de sua intimidade genética, mas ela deverá ser severamente limitada, como adiante se examinará. Segundo, mesmo nas hipóteses nas quais seja justificável a contratação do acesso às informações genéticas, se for constatado abuso ou fraude nesta estipulação, a cláusula é considerada nula, conforme determina a legislação laboral[44], podendo a conduta embasada na pactuação abusiva atrair a incidência da responsabilidade civil[45], cuja natureza será objetiva[46], isto é, dispensará a produção de prova quanto à existência de culpa patronal. O terceiro motivo é que se deve ter consideração que as profissões nas quais é possível afigurar-se justificável esta contratação são bastante específicas. E, a priori, somente nelas podem ser considerados lícitos os exames genéticos, seja na admissão, seja no curso do contrato.
Pode-se, por exemplo, imaginar os exames em pilotos de avião, maquinistas de ferrovias ou motoristas de transportes públicos para identificar a predisposição a ataques cardíacos[47] ou epilépticos[48], ou mesmo a verificação da propensão a alergias ou outros riscos em dado ambiente de trabalho[49], assim como de incompatibilidades, particularmente de profissionais da área de saúde, a certas vacinas ou submissão a determinadas substâncias químicas ou, ainda, a regulação da dose de determinados medicamentos[50], cuja utilização seja necessária, exemplificativamente, em dadas áreas do País. Em todas as hipóteses, evidentemente, é indispensável a análise das peculiaridades de cada caso.
Ademais, mesmo nas situações nas quais se afigure possível a realização de exames genéticos, pode-se dar a conhecer ao empregador somente as informações estritamente relevantes ao desempenho do cargo. Neste sentido, o Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução 1931/2009, do Conselho Federal de Medicina, dispõe, em seu art. 76[51], que é proibido ao médico revelar ao empregador os dados sigilosos obtidos através da realização de exames e, em seu Capítulo I, inciso XXV[52], impõe como princípio fundamental do exercício da medicina o zelo para que a utilização das potencialidades de novas tecnologias não redunde em práticas de discriminação genética ou violadoras da identidade dos pacientes.
Deve-se, ainda, em respeito à autodeterminação informativa, somente conferir ao obreiro acesso aos resultados dos exames genéticos se este o requerer, razão pela qual o art. 168, §5º, da Consolidação das Leis do trabalho não é aplicável à espécie.
É imperioso, por fim, interpretar-se o art. 7.4.5.1[53] da Norma Regulamentadora n.º 07, do Ministério do Trabalho e Emprego, excluindo de sua abrangência os exames genéticos. De fato, revela-se destituída de qualquer sentido, no contexto da relação de emprego, a manutenção dos dados genéticos do empregado na posse do médico coordenador do PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional) após a extinção do vínculo de trabalho. Deve, em verdade, o empregador, com a superveniência desta, facultar ao trabalhador o recebimento dos arquivos originais continentes de seu perfil genético. Diante de eventual negativa deste, impõe-se seja informado o fim da relação empregatícia ao médico coordenador, o qual deve providenciar a destruição dos documentos e mídias relativos ao exame genético realizado pelo obreiro.
Estas as balizas essenciais para lidar com o delicado tema da proteção à intimidade genética no âmbito da relação de emprego. A solução adequada a cada caso, impende repisar, dependerá inarredavelmente de suas particularidades.
4 CONCLUSÕES
A partir das considerações declinadas, é possível traçar as seguintes conclusões:
A bioética é definida como o estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princípios morais. O biodireito, a seu turno, pode ser compreendido como a disciplina que regula limites da licitude da utilização dos conhecimentos decorrentes do progresso da biotecnologia.
A vida privada abrange, genericamente, fatos ou informações que o indivíduo não deseja submeter à exposição pública, correspondendo a um espaço de relações sociais mais reservado. A intimidade, a seu tempo, corresponde àqueles fatos, características ou informações objeto de maior sigilo por parte do sujeito, normalmente referentes aos aspectos mais elementares do seu “ser existencial” e, precisamente por isto, sendo compartilhados somente com as pessoas mais próximas de seu ambiente de convivência.
O direito à intimidade genética pode ser definido como o direito a determinar as condições de acesso à informação genética, compreendendo um elemento objetivo, correspondente ao genoma humano e aos tecidos a partir dos quais este pode ser obtido, e um subjetivo, referente à vontade de determinar quem e em que condições pode ter acesso a seus dados genéticos.
A intimidade genética do trabalhador não é um direito absoluto. Não obstante, existe uma precedência prima facie em seu favor nos casos de colisão com o direito diretivo do empregador. Havendo fatores de justificação, é possível o acesso por este a dados genéticos daquele, desde que haja previsão contratual válida de realização de exame genético.
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[1] Neste trabalho, adotar-se-á a expressão “perfil genético” no lugar de “patrimônio genético”, normalmente utilizada. Isto porque, embora sabidamente os direitos da personalidade possam admitir repercussões pecuniárias, eles próprios são insuscetíveis de apreciação econômica. Neste sentido, ponderam PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA FILHO que uma das características dos direitos da personalidade é a “ausência de um conteúdo patrimonial direto, aferível objetivamente, ainda que sua lesão gere efeitos econômicos” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol I: parte geral. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 146).
[2] Após a conclusão, no âmbito do Projeto Genoma Humano, do mapeamento do genoma, no início da década passada, as pesquisas evoluíram no sentido de viabilizar a ampliação do acesso à realização do exame. Constata-se que a “fila interminável de máquinas do tamanho das de lavar foi substituída por equipamentos de nova geração como a Personal Genome Machine, da Ion Torrent, que mais parece um scanner ou uma impressora”. As pesquisas realizadas pelo biotecnólogo norte-americano Jonathan Rothberg, inventor das máquinas mais modernas, apontam no sentido da difusão da tecnologia de modo que “a plataforma poderá expandir o uso do sequenciamento do DNA para universidades menores, hospitais e consultórios médicos, ajudando a fazer que a análise genética se torne comum” (CABRAL, Rafael. Projeto Genoma para todos. Estadão.com.br, São Paulo: 17 de abril de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/link/projeto-genoma-para-todos/>. Acesso em 02/02/2014).
[3] Apud BELLINO, Francesco. Fundamentos da Bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Tradução de Nelson Souza Canabarro.São Paulo: EDUSC, 1997, p. 21. A respeito desse conceito, obtempera LUIS GONZALEZ MORAN: “Como se puede colegir, la definición de bioética es verdaderamente compleja: porque se mueve en una zona de cruces e interrelaciones plurales, donde debe conjugarse la necessidad de la investigación y progresso tecnocientífico, muy en concreto de la biotecnología, con la protección y respeto de la vida humana, no solo presente sino también futura, con la atención a la asistencia sanitaria y con la habitabilidad de la tierra y con las consecuencias de tipo económico, político y social que esto genera”. (De la Bioética al Bioderecho: Libertad, Vida y Muerte. Madrid: Editorial Dykinson, 2006, p. 49).
[4] MORAN, Luis Gonzalez. op. cit., p. 24.
[5] Para aprofundamento nas abordagens filosóficas que têm orientado a bioética, vide BELLINO, Francesco. op. cit.
[6] MORAN, Luis Gonzalez. op. cit., p. 47.
[7] OLIVEIRA JÚNIOR, Valdir Ferreira de. Bioconstitucionalismo: Considerações teóricas dobre os fundamentos constitucionais da bioética. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, n.º 12. Salvador: UFBA, 2005, p. 341.
[8] BELLINO, Francesco. op. cit., p. 198.
[9] OLIVEIRA JÚNIOR, Valdir Ferreira de. op. cit., p. 341.
[10] Além do tema da intimidade genética, abordado neste trabalho, é possível citar, dentre os inúmeros exemplos, a discussão acerca da possibilidade de incidência das regras sobre propriedade intelectual em relação aos conhecimentos e resultados obtidos mediante as pesquisas genéticas, assim como a viabilidade do patenteamento de genes (MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do biodireito. RTDC. v. 3, jul./set. 2000, p. 75). Há, também, a questão da chamada “biopirataria”, a qual, relata-se, teria sido “praticada por cientistas inescrupolosos do Primeiro Mundo em relação a certos grupos indígenas da América do Sul. Para ter acesso a troncos genéticos mais puros, foi retirado sangue desses indígenas para estudos, fazendo promessas enganosas e sem nenhum consentimento informado sobre o uso posterior dos dados coletados” (BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Genoma Humano e bioética in Bioética: Alguns desafios. BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; PESSINI, Léo (Orgs.). São Paulo: Loyola, 2001, p. 254).
[11] MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do biodireito. RTDC. v. 3, jul./set. 2000, p. 64. Ao cotejar a novel disciplina com a bioética, LUIS GONZALEZ MORAN aduz que ao “hablar del objeto de estudio del bioderecho, hemos de señalar que éste y la bioética no se diferencian por el objeto de su estudio, ni por la realidad sobre la que se proyectan, sino que sus diferencias vienen generadas por su distinto estatuto epistemoógico, las perspectivas asumidas y sus procedimientos de eficacia. Ambas son ciencias normativas, pero difieren sus métodos de producción y de aplicación y exigibilidad de sus normas: a diferencia de las normas morales y éticas, las normas jurídicas son exigibles coactivamente y cuentam com uma dotación de sanciones de diversa naturaleza” (De la Bioética al Bioderecho: Libertad, Vida y Muerte. Madrid: Editorial Dykinson, 2006, p. 113). A seu turno, MARÍA CASADO pondera que a “Bioética se ocupa de analizar las implicaciones éticas, jurídicas y sociales de los descubrimientos científicos y las aplicaciones biotecnológicas para proponer pautas justas a su tratamiento y, por ello, requiere del Derecho a la hora de aplicar y dar efectividad a sus propuestas. Desde el nacimiento de la nueva disciplina, ambos caminan unidos por temas tan cruciales como el consentimiento informado y los derechos de los pacientes, los conflictos en torno al origen y el final de la vida, o la búsqueda de acuerdos en contextos plurales. La implicación entre el Derecho y la Bioética es de carácter intrínseco y, así como la contribución de aquél es fundamental para ésta, las aportaciones del análisis bioético deben ser consideradas de uma extrema utilidad para el derecho público a la hora de elucidar los problemas suscitados por la biotecnología ya que una y otra disciplinas comparten una misma finalidad: el respeto y la promoción de los derechos humanos reconocidos” (grifos no original) (CASADO, M.. A vueltas sobre las relaciones entre la bioética y el derecho. Revista Bioética, Brasília, v.19, n.1, may. 2011. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/605/621. Acesso em: 02/02/2014, pp. 15/16).
[12] ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2007, p. 289.
[13] KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1994, p. 42.
[14] ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. op. cit., p. 289.
[15] KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro, 1997, p. 79.
[16] Exemplificativamente, a atual Constituição portuguesa dispõe, em seu art. 1º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Da mesma maneira, a Constituição espanhola consagra, em seu art. 10, 1, a dignidade humana, nos seguintes termos: “La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social”. Destaque-se, ainda, a proteção à dignidade humana na Lei Fundamental da Alemanha (Grundgesetz). Sobre o tema, aduz KONRAD HESSE que o “novo ordenamento jurídico baseia-se, já desde o artigo 1º GG, no princípio supremo, absoluto e intangível da inviolabilidade da dignidade humana (art. 1.1 GG) e no reconhecimento dos direitos invioláveis e inalienáveis do homem (art. 1.2 GG).” (HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 29).
[17] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III – a dignidade da pessoa humana;
[18] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 355.
[19] Ibid., p. 359.
[20] Ibid., p. 356.
[21] Ibid., p. 357.
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 63.
[23] COSTA JÚNIOR, Paulo José. O Direito de Estar Só: tutela penal da intimidade. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, pp.36/37. Adotando também esta classificação: LEWICKI, Bruno. A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 35.
[24] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direitos Fundamentais e o Contrato de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 83. Em sentido próximo, referindo-se especificamente à relação de emprego, aduz ARION SAYÃO ROMITA que a esfera da intimidade, mais restrita, refere-se aos “aspectos mais recônditos da vida do trabalhador, aqueles que deseja guardar só pra si, isolando-os da intromissão do empregador”, enquanto, na esfera da vida privada, “se encaixam os aspectos que dizem respeito à privacidade do trabalhador”, compreendendo-se privacidade como "a faculdade assegurada ao empregado de excluir o acesso a informações, capazes de afetar sua sensibilidade” (Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: LTr, 2007, p. 279).
[25] ZERGA, Luz Pacheco. La Dignidad Humana en el Derecho del Trabajo. Cizur Menor (Navarra): Thomson/Civitas, 2007, p. 216.
[26] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol I: parte geral. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 171.
[27] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. Saraiva: São Paulo, 2005, p. 166.
[28] Com efeito, a “intimidad es una de las notas que caracteriza a la persona y la constituye en un quién. Es el factor de difereciación con los demás seres vivos y con otros individuos de la misma especie” (grifo no original) (ZERGA, Luz Pacheco. op. cit., p. 214).
[29] Art. 5º - (...)X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
[30] MIGUEL, Carlos Ruíz. Los datos sobre características genéticas: libertad, intimidad y no discriminación in Genética y Derecho, Cuadernos de Derecho Judicial. Carlos María Romeo Casabona (dir.). Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2001, p. 31.
[31] MIGUEL, Carlos Ruiz. Op. cit., p. 32. Vale rememorar que o genoma é “o conjunto de instruções necessárias para formar um ser humano. Essas informações estão no DNA, uma longa molécula em formato de dupla hélice que carrega os genes compostos por quatro elementos básicos: adenina (A), timina (T), citosina (C) e guanina (G)” (BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Genoma Humano e bioética in Bioética: Alguns desafios. BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; PESSINI, Léo (Orgs.). São Paulo: Loyola, 2001, p. 248). Tal a importância atualmente conferida ao estudo do genoma humano que alguns autores já sustentam a autonomia de um “direito genético” (GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. Bioderecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998, p. 26).
[32] MIGUEL, Carlos Ruiz. op. cit., p. 33.
[33] OTERO, Paulo. Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano: um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999, p. 85. Cogita-se, inclusive, a viabilidade de criação da “carteira genética”, de modo que a “carteira de identidade poderá incluir um código de barra que expresse o genoma do portador” (BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Op. cit., p. 255).
[34] Para um panorama de potenciais casos de discriminação, vide GUTIÉRREZ, Graciela N. Messina de Estrella. op. cit., pp. 27/29).
[35] LEWICKI, Bruno. A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.123.
[36] PETTERLE, Selma Rodrigues. O Direito Fundamental à Identidade Genética na Constituição Brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 126.
[37] A razão para o emprego da expressão “restrições” no lugar de “limites” encontra-se na circunstância de que o uso daquela pressupõe a adoção da denominada teoria externa dos direitos fundamentais, que, embora reconheça que em geral os direitos apresentam-se restringidos, assevera que eles “são também concebíveis sem restrições” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 277). Diversamente, a teoria interna visualiza o direito configurado em determinada extensão, não sendo, logicamente, adequada a referência a restrições, mas a limites do direito.
[38] Art. 168 - Será obrigatório exame médico, por conta do empregador, nas condições estabelecidas neste artigo e nas instruções complementares a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho:
I - a admissão;
II - na demissão;
III - periodicamente.
§ 1º - O Ministério do Trabalho baixará instruções relativas aos casos em que serão exigíveis exames:
a) por ocasião da demissão;
b) complementares.
§ 2º - Outros exames complementares poderão ser exigidos, a critério médico, para apuração da capacidade ou aptidão física e mental do empregado para a função que deva exercer.
§ 3º - O Ministério do Trabalho estabelecerá, de acordo com o risco da atividade e o tempo de exposição, a periodicidade dos exames médicos.
§ 4º - O empregador manterá, no estabelecimento, o material necessário à prestação de primeiros socorros médicos, de acordo com o risco da atividade.
§ 5º - O resultado dos exames médicos, inclusive o exame complementar, será comunicado ao trabalhador, observados os preceitos da ética médica.
[39] Transcrevem-se, aqui, os excertos pertinentes à matéria em exame reputados mais relevantes:
7.1.1 Esta Norma Regulamentadora - NR estabelece a obrigatoriedade de elaboração e implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional - PCMSO, com o objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores.
(...) 7.1.3 Caberá à empresa contratante de mão-de-obra prestadora de serviços informar a empresa contratada dos riscos existentes e auxiliar na elaboração e implementação do PCMSO nos locais de trabalho onde os serviços estão sendo prestados. (Alterado pela Portaria n.º 8, de 05 de maio de 1996)
(...)7.2.3 O PCMSO deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclínica, além da constatação da existência de casos de doenças profissionais ou danos irreversíveis à saúde dos trabalhadores.
(...) 7.4.1 O PCMSO deve incluir, entre outros, a realização obrigatória dos exames médicos: a) admissional; b) periódico; c) de retorno ao trabalho; d) de mudança de função; e) demissional.
7.4.2 Os exames de que trata o item 7.4.1 compreendem:
a) avaliação clínica, abrangendo anamnese ocupacional e exame físico e mental;
b) exames complementares, realizados de acordo com os termos específicos nesta NR e seus anexos.
(...) 7.4.2.3 Outros exames complementares usados normalmente em patologia clínica para avaliar o funcionamento de órgãos e sistemas orgânicos podem ser realizados, a critério do médico coordenador ou encarregado, ou por notificação do médico agente da inspeção do trabalho, ou ainda decorrente de negociação coletiva de trabalho.
(...) 7.4.5 Os dados obtidos nos exames médicos, incluindo avaliação clínica e exames complementares, as conclusões e as medidas aplicadas deverão ser registrados em prontuário clínico individual, que ficará sob a responsabilidade do médico-coordenador do PCMSO.
7.4.5.1 Os registros a que se refere o item 7.4.5 deverão ser mantidos por período mínimo de 20 (vinte) anos após o desligamento do trabalhador.
7.4.5.2 Havendo substituição do médico a que se refere o item 7.4.5, os arquivos deverão ser transferidos para seu sucessor.
[40] O reconhecimento de que os direitos fundamentais assumem, frequentemente, a natureza de princípios permite a reformulação de variados institutos jurídicos, inclusive no campo do Direito do Trabalho. Um exemplo é a antiga visão a respeito dos denominados “poderes do empregador”. Já se afirmou a necessidade de revisão da construção tradicional a respeito desta categoria jurídica, propondo-se a adoção, numa visão coerente com a teoria dos direitos fundamentais, da figura do “direito diretivo”, sustentando-se que o “direito diretivo em sentido amplo abrange todas as posições jurídicas titularizadas pelo empregador na relação de trabalho, a maioria delas lastreada no contrato de emprego” e que a “natureza principiológica do direito diretivo implica a possibilidade, diante de colisões com outros direitos fundamentais, de estabelecimento de restrições a ele” FERNANDEZ, Leandro. O direito diretivo: A necessária revisão da dogmática acerca dos poderes do empregador à luz da teoria dos direitos fundamentais in Revista de Direito do Trabalho. Ano 38, v. 145, abril-junho 2012, p. 75-111).
[41] Formula WILSON STEINMETZ um conjunto de precedências prima facie para as hipóteses de colisão entre princípios nas relações privadas travadas no contexto de relações de poder. Dentre elas, há que se destacar uma especialmente útil para os fins da presente pesquisa, a saber: “em uma relação contratual de particulares em situação (ou sob condições) de desigualdade fática, há uma precedência prima facie do direito fundamental individual de conteúdo pessoal ante o princípio da autonomia privada” (A vinculação de particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 224). Não é adequado, portanto, desconsiderar a influência de fatores sócio-econômicos nos casos nos quais o conflito entre direitos fundamentais se verifica numa relação privada em que uma das partes é mais fraca do que a outra, a exemplo da relação de emprego.
[42] Em sentido diverso, entendendo que a realização dos exames não supera a primeira etapa da análise da proporcionalidade, BRUNO LEWICKI afirma: “Quanto aos exames genéticos, ainda que se entendesse que eles devessem ser submetidos ao exame da adequação (o que, por si só, já é discutível), a esta não sobreviveriam, pois, como já visto, estes exames apenas indicam uma tendência, pecando pela vagueza” (A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 201). Sustentando também serem ilícitos os exames, SANDRA LIA SIMÓN assevera que “o empregador não poderá exigir de seus empregados ou ‘candidatos’ a emprego a realização de exame eu tenha por objetivo identificar o código genético, sob pena de extrapolar o exercício do poder diretivo”. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTr, 2000, p. 141).
[43] AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ, em obra clássica, assim define a irrenunciabilidade: “a impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio” (Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. 3 ed. atual. São Paulo: LTr, 2000, p. 142).
[44] Consolidação das Leis do Trabalho, Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
[45] Convém rememorar, por oportuno, que a responsabilidade civil decorrente de abuso de direito é expressamente albergada pelo atual Código Civil, encontrando sua disciplinada nos arts. 187 e 927 do diploma legislativo.
[46] Neste sentido é o Enunciado n.º 37 da I Jornada de Direito Civil, in verbis: “Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
[47] BARROS, Alice Monteiro de. Proteção à intimidade do empregado. 2 ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 110.
[48] MIGUEL, Carlos Ruíz. Los datos sobre características genéticas: libertad, intimidad y no discriminación in Genética y Derecho, Cuadernos de Derecho Judicial. Carlos María Romeo Casabona (dir.). Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2001, p. 48.
[49] PETTERLE, Selma Rodrigues. O Direito Fundamental à Identidade Genética na Constituição Brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 127. Impende, aqui, ressaltar que, diante da determinação constitucional de proteção à saúde e à segurança do trabalhador (art. 7º, XXII), deve buscar o empregador, como primeira opção, o oferecimento e a manutenção de um ambiente de trabalho salubre e seguro. Sobre o tema, vale mencionar a recente aprovação de tese da autoria da Juíza Andréa Presas Rocha, do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, pela Assembléia Geral da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, no XV Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, cuja ementa a seguir se transcreve: “Tese 1.5. EMENTA: Adoção pela CF/88 da teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais. Operacionalização de tais direitos, pelo Judiciário, por meio da aplicação das “precedências prima facie” e do “método da ponderação”. Situação concreta de lacuna legislativa, em que o empregador, embora dispondo de meios tecnológicos para eliminar a insalubridade, opta por realizar pagamento do adicional correspondente. Possibilidade de efetivação, pelo Judiciário, do direito fundamental a um meio ambiente sadio de trabalho, impondo ao empregador a eliminação da insalubridade” (Disponível em http://www.conamat.com.br/conamat/teses_aprovadas.aspx. Acesso em 27 de junho de 2011).
[50] Conforme notícia divulgada em 2009 por sítio jornalístico: “O Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP) desenvolveu um exame genético que ajuda a determinar a dose certa de medicamento para cada paciente. A velocidade com que o organismo processa ou elimina uma droga varia de pessoa para pessoa. A diferença explica por que a mesma quantidade de remédio causa efeitos adversos em alguns indivíduos e pode ser ineficaz para outros. O novo teste mostra a resposta do organismo de cada paciente a uma variedade de medicamentos - psicofármacos, analgésicos, remédios contra cardiopatias, câncer - e viabiliza o ajuste personalizado da prescrição” (GONÇALVES, Alexandre. Exame genético determina dose de medicamento para cada paciente. Estadão.com.br, 14/05/2009. Disponível em: . Acesso em 02 de fevereiro de 2014). Saliente-se, a propósito, que a área de pesquisa denominada de “farmacogenética” (ou farmacogenômica) tem sido alvo de crescente atenção no Brasil (CASTILHOS, WASHINGTON. Farmacogenética torna possível aplicar terapias individualizadas. PESQUISA FAPESP – EDIÇÃO ONLINE. Disponível em . Acesso em 02/02/2014).
[51] É vedado ao médico: (...)
Art. 76. Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade.
[52] Capítulo I - Princípios fundamentais (...)
XXV - Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.
[53] 7.4.5.1 Os registros a que se refere o item 7.4.5 deverão ser mantidos por período mínimo de 20 (vinte) anos após o desligamento do trabalhador.
Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região. Mestre em Relações Sociais e Novos Direitos pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo JusPodivm/BA. Diretor de Prerrogativas da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Sexta Região -- AMATRA VI (gestão 2018/2020). Professor. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho (IBDT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, Leandro Fernandez. Intimidade genética na relação de emprego: uma análise da aplicação da biotecnologia à luz dos direitos fundamentais do trabalhador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jul 2019, 06:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53151/intimidade-genetica-na-relacao-de-emprego-uma-analise-da-aplicacao-da-biotecnologia-a-luz-dos-direitos-fundamentais-do-trabalhador. Acesso em: 23 dez 2024.
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