Resumo:Este estudo destina-se a dissecar a questão da possibilidade de cancelamento judicial de cláusula restritiva de inalienabilidade que grava bem imóvel, à luz da jurisprudência nacional mais recente. Introduz-se o tema com conceitos básicos de cláusulas restritivas e seu tratamento. Na sequência, exploram-se as hipóteses de sub-rogção da cláusula em outro imóvel e de cancelamento puro e simples. Por derradeiro, expõe-se a jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
PALAVRAS-CHAVE: Cláusulas restritivas. Inalienabilidade. Imóvel clausulado. Cancelamento judicial. Sub-rogração. Cancelamento puro. Jurisprudência. Superior Tribunal de Justiça. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. POSSIBILIDADE DE SUBROGAÇÃO. 4 A QUESTÃO DO CANCELAMENTO PURO. 4. POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). 5. A POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL (TJRS). 6. CONCLUSÃO
Consoante a tradicional disposição do art. 1.228 do Código Civil, o proprietário detém os poderes de usar, fruir, dispor e reivindicar o seu bem. A regra geral, portanto, é que o proprietário tenha a liberdade de decisão quanto à alienação de seu patrimônio – seja onerosa ou gratuitamente.
As cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade), previstas no art. 1.848 do Código Civil, representam situações excepcionais nas quais o poder de disposição do bem é restrito por ato do instituidor.
A cláusula de inalienabilidade é uma restrição que nasce da vontade do autor do ato de liberalidade (doador ou testador) e que tem como fundamento a proteção do donatário/herdeiro/legatário, evitando a dissipação do bem e garantindo que o beneficiário tenha sempre consigo um mínimo patrimonial.
Para que as cláusulas restritivas sejam validamente impostas (sendo que a inalienabilidade acarreta também a impenhorabilidade e a incomunicabilidade – art. 1.911, CC), devem ser respeitados dois requisitos: a) seja um ato de liberalidade (doação ou testamento) e b) não incida sobre a legítima dos herdeiros necessários, a não ser que haja justa causa devidamente consignada em testamento (art. 1.848, CC).
Outro ponto relevante consiste no fato de que essas cláusulas restritivas não podem ultrapassar a vida do donatário/herdeiro/legatário: com a morte do beneficiário, o bem volta a ser livre.
2. POSSIBILIDADE DE SUB-ROGAÇÃO (ART. 1.848, § 2o e ART. 1.911, P. ÚNICO)
Em que pese a disposição de última vontade do testador no sentido de que o bem não pudesse ser objeto de futura alienação, o Código Civil permite expressamente que o bem inalienável seja vendido e, com o produto dessa venda, seja adquirido outro bem, o qual ficará sub-rogado na cláusula de inalienabilidade.
Para que seja possível essa alienação, é necessária a propositura de uma ação judicial, de jurisdição voluntária, em que se demonstrará ao juiz a ocorrência de uma fundada razão de conveniência dessa operação de substituição.
Ademais, para que a vontade do instituidor seja preservada em sua essência, é comum a referência pela doutrina da exigência de que o bem sub-rogado seja de valor igual ou superior ao originário – ainda que tal requisito não conste expressamente da lei codificada.
3. A QUESTÃO DO CANCELAMENTO PURO
Ao tratar das cláusulas restritivas, o Código Civil, diferentemente do que ocorre com a possiblidade de sub-rogação, não previu expressamente a possibilidade de que possa haver um cancelamento puro e simples.
A despeito do silêncio da lei, a atual jurisprudência nacional, com apoio na doutrina, tem reconhecido a relativização das cláusulas restritivas, admitindo, em casos pontuais, a dispensa judicial desses gravames.
O fundamento para a dispensa da cláusula de inalienabilidade repousa na função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF/88). Assim, quando restar assente que a impossibilidade de alienação do bem representa um prejuízo evidente ao beneficiário, poder-se-á superá-la.
Com efeito, se a manutenção do bem, no caso concreto, implicar em um prejuízo ao beneficiário - e até uma ofensa a valores constitucionais-, haveria uma verdadeira subversão da vontade do instituidor, podendo-se supor que, caso estivesse ainda vivo, anuiria com a alienação, diante da peculiaridade do caso concreto – sendo esta a pedra de toque.
Cumpre salientar, contudo, que o cancelamento, puro e simples, da cláusula de inalienabilidade ainda é vista como uma situação excepcional, cabendo ao autor da ação demonstrar os motivos excepcionais e suficientes que suplantem o regramento geral e recomendem a alienação.
4. POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ)
Seguindo a tendência jurisprudencial apontada no item anterior, a jurisprudência do STJ admite, excepcionalmente, o cancelamento das cláusulas restritivas, quando demonstrada, no caso concreto, a vantagem ou a necessidade de tal medida.
Esse entendimento já vem sendo esposado há bastante tempo, conforme se percebe do seguinte precedente, ainda sob a vigência do Código Civil de 1916:
PRESTAÇÃO DE CONTAS PROPOSTA CONTRA A ADMINISTRADORA DE BEM IMÓVEL, A QUAL, PORÉM, SE OPÕE AO PEDIDO MEDIANTE A ASSERTIVA DE CELEBRAÇÃO DE UM NEGÓCIO JURÍDICO EM QUE SEU MARIDO FIGUROU COMO COMPROMISSÁRIO-COMPRADOR. TRANSAÇÃO EFETUADA QUANDO VIGENTE A CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.676 DO CÓDIGO CIVIL. COISA JULGADA. MOTIVOS DA SENTENÇA. QUESTÃO PREJUDICIAL.
- Segundo já decidiu a Quarta Turma do STJ, a regra restritiva à propriedade inscrita no art. 1.676 do Código Civil deve ser interpretada com temperamento, pois a sua finalidade foi a de preservar o patrimônio a que se dirige, para assegurar à entidade familiar, sobretudo aos pósteros, uma base econômica e financeira segura e duradoura. Hipótese em que a transação se fez de irmão a irmão há muitos anos, não negada pelos interessados, com a quitação integral do preço, sendo falecidos os promitentes-vendedores, de molde a dar ensejo ao cancelamento, no Cartório Imobiliário, dos gravames da inalienabilidade e da impenhorabilidade. [...]
(REsp 89.792/MG, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 18/04/2000, DJ 21/08/2000, p. 135)
Tal posição foi mantido com o Código Civil de 2002, conforme se percebe do seguinte precedente, já do ano de 2008:
CIVIL. BEM. CLÁUSULA DE INALIENABILDIADE. PENHORA. IMPOSSIBILDADE.
1 - Nos termos do art. 1.676 do Código Civil de 1916 a cláusula de inalienabilidade, afora as exceções legais (desapropriação e débitos de imposto do próprio imóvel), não pode ser afastada, enquanto vivo estiver o donatário, o que impossibilita possa recair penhora sobre o bem.
2 - A jurisprudência tem admitido a quebra da inalienabilidade, em outras hipóteses excepcionais, mas apenas em prol dos próprios beneficiários da cláusula.
3 - Recurso especial não conhecido.
(REsp 571.108/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 28/10/2008, DJe 17/11/2008)
Nos precedentes mais recentes, a tendência permanece a mesma. Veja-se:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. PEDIDO DE CANCELAMENTO.
1 - Pedido de cancelamento de cláusula de inalienabilidade incidente sobre imóvel recebido pelo recorrente na condição de herdeiro.
2 - Necessidade de interpretação da regra do art. 1576 do CC/16 com ressalvas, devendo ser admitido o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus legítimos interesses.
3 - Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
4 - Recurso especial provido por maioria, vencida a relatora.
(REsp 1422946/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 05/02/2015)
5. POSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL (TJRS)
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul segue a mesma tendência daquela esposada pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o cancelamento da cláusula de inalienabilidade é medida excepcional, que depende da demonstração de fundadas razões concretas pelo proprietário do bem clausulado da necessidade ou dos benefícios de tal medida.
Confiram-se diversos precedentes do TJRS, em ordem cronológica, os quais dão um fidedigno panorama geral de como a matéria é tratada no Estado:
APELAÇÃO CÍVEL. SUB-ROGAÇÃO DE INALIENABILIDADE DE IMÓVEL. VENDA. AUTORIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. Ao tempo do disposto no art. 1.676 do antigo Código Civil, a jurisprudência sempre admitiu temperamento, admitindo em circunstâncias excepcionais e para evitar prejuízos aos proprietários, a venda do bem vinculada à aquisição de outro, com sub-rogação. Atualmente o bem gravado com cláusula de inalienabilidade pode ser vendido para aquisição de outro, com sub-rogação do gravame (art. 1.911, parágrafo único). No caso, está demonstrada a situação precária do imóvel que acarreta prejuízos aos proprietários que tiveram declarada a inalienabilidade do bem por decisão judicial. Possibilidade de venda vinculada à aquisição de outro imóvel, com sub-rogação da inalienabilidade. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70028928893, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 23/02/2011)
APELAÇÃO. CANCELAMENTO DE CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE INSTITUÍDAS SOBRE HERANÇA. CABIMENTO NO CASO CONCRETO. Cabível o cancelamento das cláusulas restritivas instituídas por testamento pela mãe do autor, falecida, conforme moderno entendimento sedimentado no atual Código Civil, e que já vinha preconizado na jurisprudência e doutrina. Situação em que a instituição dos gravames levou em conta a menoridade do herdeiro, fato agora ultrapassado. Imóvel pequeno e em mau estado de conservação, rendendo aluguel baixo, pouco contribuindo para subsistência do demandante. Prevalência da livre disposição dos bens, inerente ao direito de propriedade. Precedentes desta Corte. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70023782808, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 22/11/2012)
APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO. EXTINÇÃO. IMÓVEL GRAVADO COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. POSSIBILIDADE. DA PRELIMINAR CONTRARRECURSAL. Alegação de intempestividade recursal afastada. O recurso interposto antes do dia da publicação da sentença não é extemporâneo. Ausência de prejuízo à parte. Preliminar rejeitada. MÉRITO. É possível o cancelamento da cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade que grava o imóvel, a fim de permitir a extinção do condomínio e garantir o pleno exercício do direito da propriedade. PRELIMINAR REJEITADA. APELO PROVIDO (Apelação Cível Nº 70058548306, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 17/04/2014)
APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO DE IMÓVEIS. AÇÃO DE CANCELAMENTO DE CLÁUSULAS RESTRITIVAS NA MATRÍCULA DE IMÓVEL. CANCELAMENTO DE CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. INVIABILIDADE NO CASO CONCRETO. É entendimento corrente na doutrina e jurisprudência que a indisponibilidade gravada sobre bens imóveis não é absoluta, havendo possibilidade da relativização quando se tornarem óbice à própria fruição da coisa pelo proprietário. Atende-se, com essa exegese, a função social da propriedade. Entretanto, no caso inexistem elementos que configurem justa causa ao cancelamento do gravame. RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70069779361, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 25/08/2016)
APELAÇÃO. PEDIDO DE CANCELAMENTO DE GRAVAMES. CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. Possibilidade de retirada dos gravames em atenção ao princípio da função social da propriedade. A leitura da legislação infraconstitucional deve ser realizada sob a ótica dos valores fundamentais contidos na Constituição Federal. Não mais se justifica a perpetuação da vontade do titular do patrimônio para além de sua vida quando impede a plena fruição da propriedade. DERAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70077261139, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 28/06/2018)
Ao se visualizar as ementas acima, contudo, não se pode construir a falsa impressão de que a possibilidade de cancelamento das cláusulas restritivas é ampla e indiscriminada.
Conforme já referido, a procedência do pedido está umbilicalmente ligada à demonstração de uma “justa causa”, a ser apreciada pelo juiz – com uma boa margem de discricionariedade judicial, em razão de se tratar de conceito jurídico indeterminado.
A título de alerta, portanto, confira-se o seguinte precedente, em que foi negado o pedido de cancelamento:
APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO DE IMÓVEIS. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO QUE MANTEVE GRAVAMES DE INALIENABILIDADE. NÃO DEMONSTRADA A EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O CANCELAMENTO DAS RESTRIÇÕES. ÔNUS PROBATÓRIO NÃO SATISFEITO PELA PARTE REQUERENTE. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70060522687, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Renato Alves da Silva, Julgado em 11/12/2014)
6. CONCLUSÃO
Feitas todas essas considerações, pode-se afirmar que a opção mais segura para aquele que precisa alienar um imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade é seria a propositura de uma ação pleiteando o cancelamento do gravame e, subsidiariamente, caso não atendido esse pedido principal, então uma sub-rogação em outro imóvel a ser adquirido com o produto da venda.
Deve-se tomar em conta, contudo que, ao se oferecer para o magistrado a saída “mais cômoda” da sub-rogação, existe sempre o receio de minorar as chances de sucesso do pedido de cancelamento, puro e simples, que é mais conveniente para o autor da demanda.
Mostra-se importante, outrossim, que o pedido seja acompanhado de uma convincente demonstração de que o negócio será efetuado no benefício do proprietário do imóvel, aumentando seu patrimônio, em vez de dissipá-lo. Deve-se centrar a argumentação nos desdobramentos da função social da propriedade e de como ela será mais bem atendida com a viabilização da operação imobiliária sobre o terreno.
Referências BIBLIOGRÁFICAS
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. 6: Direito das sucessões. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
GALGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Vol. 7: Direito das sucessões. 6ªed. São Paulo: Saraiva, 2019.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 10ª ed. Salvador: Juspodium, 2019.
ROSA, Edson Costa. Prática de direito imobiliário. 3ª ed. Editora Mundo Jurídico, 2018.
TARTUCE, Flavio. Direito Civil. Vol 6: Direito das sucessões. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
Advogado. Graduado com Láurea pela UFRGS e Pós-Graduado em Processo Civil pela Rede LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AITA, Rodrigo Antola. Viabilidade do cancelamento de cláusula de inalienabilidade à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53153/viabilidade-do-cancelamento-de-clausula-de-inalienabilidade-a-luz-da-jurisprudencia-do-superior-tribunal-de-justica-stj-e-do-tribunal-de-justica-do-rio-grande-do-sul-tjrs. Acesso em: 22 dez 2024.
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