FERNANDO SILVEIRA MELO PLENTZ DE MIRANDA
(Orientador)
RESUMO: Este trabalho busca apresentar de forma prática e objetiva os avanços e retrocessos havidos no que tange ao sistema punitivo mundial e as razões pelas quais surgiu a necessidade de se criar novas formas de resolução de conflitos visando a busca pela humanização das penas e consequentemente a diminuição de processos judiciais. A esta nova forma de resolução de conflitos na esfera penal, dá-se o nome de Justiça Restaurativa e após 14 anos de aplicação em nosso território, esta vem atingindo os objetivos a que se propõe notadamente no quesito meio alternativo de resolução de conflitos.
Palavras-chave: Resolução de conflitos. Justiça Restaurativa. Desjudicialização.
SUMÁRIO: 1 A EVOLUÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO. 2 CONCEITO E ORIGEM DA JUSTIÇA RESTAURATIVA. 3 APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 5 REFERÊNCIAS.
1 A EVOLUÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO
Para que possamos conhecer de que se trata a Justiça Restaurativa, precisamos contextualizar brevemente a origem do sistema punitivo existente.
O Sistema Punitivo passou por inúmeras evoluções e regressões no decorrer dos tempos. Ainda nos tempos primórdios as fases que representavam essas evoluções eram denominadas Fases da Vingança Penal. Observa-se inicialmente a Vingança Privada em que a pena pelo ilícito praticado era estabelecida pela própria vítima, por seus parentes ou demais pessoas daquela comunidade. Não havia, portanto, proporcionalidade uma vez que a pena a ser cumprida era muito pior do que a ofensa ou o dano que este havia causado à vítima.
É no decorrer desta fase que surge a Lei de Talião dentro do Código de Hamurabi em que se buscava delimitar que a sanção a ser aplicada ao infrator tivesse a mesma medida que o dano causado por ele. Era o chamado “Olho por olho, dente por dente”. A Lei de Talião adotada pelo referido Código foi a primeira tentativa de humanização da sanção criminal, pois dessa forma, autor e vítima teriam tratamento igualitário.
A partir de então, a pena passa a ser pensada de outra forma, tal como uma composição em que as partes passam a acordar uma forma de punição em que não haja sofrimento, dor e sobre algo que possa ser “negociado”. Dessa forma, o apenado poderia comprar sua liberdade mediante pagamento com seus bens materiais. Essa ocasião dá início à ideia de indenizações e multas que hoje são diariamente aplicadas nos litígios.
Na fase denominada Vingança Divina influenciada fortemente pelo misticismo, as penas eram tratadas como manifestações divinas (“totem”) aplicada pelos sacerdotes, as quais mereciam ser executadas de maneiras cruéis e desumanas, permitindo até que o infrator reparasse com a própria vida o mal cometido.
Já na fase denominada Vingança Pública, o Rei, o Príncipe ou a pessoa colocada como autoridade perante o povo era quem possuía o poder de apenar o indivíduo. Aplicava-se muito nesta época a pena de morte, pois considerava-se uma afronta ao poder do Rei que por sua vez estava representando a vontade e interesses do povo.
Além disso eram aplicados os suplícios, como por exemplo, a pena de esquartejamento, em que se amarrava cada membro do ofensor em quatro cavalos e às ordens do Rei, tinha o ofensor seu corpo desmembrado, queimado com óleo fervente, cera e enxofre, piche em fogo e após era reduzido às cinzas e lançado ao vento. Segundo Foucault (1984, p.34),
O suplício é uma pena corporal, dolosa, é a arte quantitativa do sofrimento. (...) A morte suplício é também a arte de reter a vida no sofrimento subdividindo-a em mil mortes. (...) A pena é calculada de acordo com as regras detalhadas: número de golpes, de açoites, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda, tipo de mutilação a impor.
Com o advento do período humanitário, no século XVII a XIX, há o desaparecimento dos suplícios e se altera o meio de julgamento do indivíduo onde passa a se verificar o fato ocorrido, determina-se quem o praticou e aplica-se uma pena adequada ao delito praticado. Neste momento, passa a se observar os aspectos do delito, a intenção do agente e a forma como será julgado. A pena aplicada agora não mais possui o caráter de castigar o infrator e sim passa a utilizá-lo para a execução de trabalhos forçados. O mais importante neste momento é a sua aptidão e capacidade física para a realização desses trabalhos.
Neste interim, entre o final do século XVIII e início do século XIX, com o nascimento do iluminismo e em decorrência do aumento dos crimes patrimoniais a prisão passa a trazer a ideia de humanidade ao apenado uma vez que este tem privada sua liberdade para “pagar sua dívida” perante a justiça e sociedade. Surge nesta época pensadores como Beccaria (2012), que em seu livro “Dos delitos e das penas” pugnava pela atenuação das penas bem como pela garantia dos direitos dos acusados.
Com isto, passa a se verificar que as penas aplicadas de modo a punir corporalmente o acusado eram ilegais e feriam seus direitos. Portanto, a prisão deixa de causar a dor física para atingir a alma do infrator. O indivíduo que antes era punido fisicamente ou obrigado a realizar trabalhos forçados agora é privado de sua liberdade. Enquanto isolado do mundo este perde sua própria vontade, ficando sujeito então às regras existentes na prisão, adequando e adaptando-se ao poder institucional. Com isso, a ideia trazida por Foucault em seu livro Vigiar e Punir procura demonstrar que para o Estado é mais interessante vigiar do que punir, pois ao fazê-lo, as pessoas têm consciência de que devem respeitar, cumprir as leis e não agir em desacordo com estas para que não necessitem de punição.
Constata-se, portanto, que conforme mencionado no início, a história do sistema punitivo no mundo passou por evoluções e regressões e que a todo momento surgiam ideias e novas formas de se enxergar como se deve ser apenado o indivíduo que comete um ilícito. E é sobre essas novas formas que esse trabalho vem elucidar.
2 CONCEITO E ORIGEM DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conforme dito anteriormente, embora tenha havido evoluções e retrocessos, a Justiça Restaurativa também não surge com o ideal de substituir o sistema punitivo atual. Pelo contrário, esta traz a ideia de que devemos ver o crime sob uma nova perspectiva, como dito nas palavras de (Zehr, 2008, p.7) “A lente através da qual enxergamos determina o modo como configuraremos o problema e a solução”. Devemos observar os danos, necessidades e obrigações de todos os envolvidos em um crime buscando-se a reparação das relações interpessoais. Assim sendo, mais do que uma nova forma de enxergarmos o crime, “A Justiça Restaurativa em seu cerne é um conjunto de princípios e valores, uma filosofia, uma série alternativa de perguntas paradigmáticas”. (Zehr, 2017, p.13)
Não é possível precisarmos quando a Justiça Restaurativa teve início. O que se sabe é que seus valores e princípios sempre existiram nos costumes indígenas primitivos, como uma tradição cultural e religiosa. No entanto, os estudos e projetos-pilotos relacionados a este tema se intensificam nos anos 70 em países como o Canadá, Ontário, Indiana e Estados Unidos surgindo como uma ideia de promover encontros entre vítima e ofensor originando dessa forma o modelo de programa que mais tarde seria utilizado em outras partes do mundo.
Na Nova Zelândia, a partir do ano de 1989, a Justiça Restaurativa é o centro do Sistema Penal para a infância e juventude (Zehr, 2017, p.12). Mas afinal, o que é Justiça Restaurativa? Para Zehr, (2017, p. 54)
A Justiça Restaurativa é uma abordagem que visa promover justiça e que envolve, tanto quanto possível, todos aqueles que tem interesse numa ofensa ou dano especifico, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de restabelecer as pessoas e endireitar as coisas na medida do possível.
A priori, faz-se mister destacar que a justiça restaurativa se trata de uma alternativa para solução de conflitos, tendo como foco o atendimento às necessidades primeiramente da vítima, a qual por muitas vezes sente-se ignorada, não encontra respaldo da justiça criminal para obter respostas para entender como ou por que ocorreu o delito e posteriormente o que ocorreu com o ofensor. Em razão deste processo de não obter informações, a vítima também, por muitas vezes, não possui a oportunidade de narrar os fatos demonstrando sua verdade.
Além disso, uma vez que no sistema retributivo, utilizado atualmente, é o Estado quem busca solução e defende os interesses da vítima, esta sente-se privada do controle sobre sua própria vida, suas emoções, etc. Por fim, para a vítima tão importante quanto ser ouvida, esta deseja também obter a restituição do dano causado, o qual é capaz de lhe gerar o sentimento de efetiva responsabilização do ofensor, ou seja, a partir do momento em que ela é restituída, é como se o ofensor estivesse lhe oferecendo um pedido de desculpas, garantindo-lhe a sensação de ter o ofensor reconhecido que lhe causou um mal e que se responsabiliza por isto.
Em segundo plano, as necessidades do ofensor também se demonstram importantes, uma vez que precisamos ter por certo que este será devidamente punido pelo ato cometido. No entanto, é obvio afirmar que o ofensor irá refutar todas as alegações impostas contra si, com a finalidade de obter o mínimo de pena possível para que posteriormente e provavelmente volte a cometer delitos.
De encontro a isto, a justiça restaurativa busca demonstrar ao indivíduo o efeito que seus atos ilícitos e danos puderam causar em terceiros, verificando quais eram as suas necessidades, oferecendo-lhe ajuda à curar-se dos males que o levaram a cometer o delito, dando-lhe a oportunidade de tratar-se de traumas, vícios e dependências e principalmente, estimulando lhe a empatia, permitindo que ele se coloque no lugar da vítima para sentir o que ela sentiu, para compreender o tamanho do dano que ele lhe causou.
A terceira parte importante neste processo restaurativo é a comunidade, tendo em vista que com o decorrer do tempo perde-se o senso de comunidade, de responsabilidade pelo todo e neste processo é possível restabelecer e estimulá-los a assumir suas responsabilidades e obrigações perante o coletivo em favor de seu bem-estar e dos demais coobrigados, promovendo assim, um ambiente de convívio mais saudável.
Para promover a Justiça Restaurativa, além de compreender que seu foco são as necessidades, obrigações e danos que envolvem as partes do conflito e não apenas a punição a ser aplicada, é preciso conhecer seus princípios e quais são as formas utilizadas para aplicação da Justiça Restaurativa na atualidade.
Pensar em justiça é buscar a atitude correspondente ao dano gerado, a resposta adequada ao que foi acometido à vítima. Para tanto, a justiça restaurativa tem como pressupostos a violação das necessidades das pessoas e de relacionamentos, a necessidade de reparação destes danos que gera a obrigação de corrigí-lo, saná-lo, fazendo, portanto, justiça.
O primeiro princípio da justiça restaurativa é enxergar o crime como uma violação de pessoas e de relacionamentos. Todos os envolvidos que forem lesados precisam ser recompostos, tanto àquelas diretamente ligadas ao fato quanto às famílias da vítima e do ofensor, testemunhas, membros da comunidade, etc., cada uma em seu grau de dano pode ser considerada como vítima e por isso, são detentores do interesse na busca por justiça. O papel do Estado neste momento, é o de investigar os fatos, promover meios para que se facilite o processo de restauração e garantir a segurança dos envolvidos.
Esta violação faz gerar o segundo princípio que se trata da obrigação do ofensor em corrigir seu comportamento dentro do possível. A vítima participa deste processo, pois como vítima primária (a mais diretamente atingida) lhe cabe o direito de participar da definição de obrigações que devem ser cumpridas pelo ofensor.
Desta feita, o ofensor recebe a oportunidade e é estimulado a analisar e compreender o mal que ocasionou e a garantia de que será responsabilizado de maneira adequada. Trata-se de uma forma de buscar com que ele voluntariamente reconheça seus erros e possa repará-los. Um exemplo de obrigação a ser cumprida pelo ofensor é a restituição de bens e valores que são consideradas prioritárias em relação a outros tipos de sanções.
Ademais, se faz importante a participação da comunidade neste processo, uma vez que ela tem o dever de dar apoio, prestar ajuda às vítimas de um crime, apoiar os esforços de se promover uma reintegração dos ofensores na sociedade, criando um ambiente de bem-estar e condições para se atingir a paz com que todos merecem viver.
Feito isso, como terceiro princípio, a justiça restaurativa busca reestabelecer pessoas e corrigir os males. Com isso, garante-se que a vítima tenha o respaldo necessário para atender às suas necessidades e permita também que o ofensor possa continuar a sua vida sob uma nova perspectiva. O consentimento mútuo das obrigações e responsabilidades permite que nada seja imposto, como atualmente é feito, mas faz com que as partes estejam engajadas e envolvidas no processo de reestabelecimento daquilo que se violou, se rompeu. Cria-se a oportunidade para pedir perdão, para reconciliação, para a prática da empatia. O ofensor recebe apoio, atenção e respeito durante o processo restaurativo. Este processo provoca também mudanças na comunidade de modo que evita que fatos semelhantes atinjam outras pessoas. Além disso, sendo assegurada a participação de todos os envolvidos no fato, é possível fazermos com que as decisões não sejam tomadas sempre da mesma forma e em razão disto, evita-se a discriminação, o preconceito, etc.
O meio como são realizadas as práticas restaurativas, nas quais se busca o que foi apresentado anteriormente, podem se dar de três formas. Encontros entre vítima e ofensor, Conferência de Grupos Familiares e os Processos Circulares. Veremos a mais utilizada que se denomina Processos Circulares.
Os processos circulares ficaram conhecidos dentre os povos indígenas denominados aborígines no Canadá. Posteriormente, foi reconhecido através de sentença, pela primeira vez, pela vara onde atuava o juiz Barry Stuart como “Círculos de Construção da Paz” (Zehr, 2017, p.70).
Neste contexto, todos os envolvidos se acomodam em círculos, onde utilizando-se de um “bastão da fala”, é oportunizado para que cada um dos integrantes expresse sua opinião e suas necessidades. Há também os facilitadores que denominados “guardiães do círculo” auxiliam os envolvidos por meio de questionamentos, insights e conselhos.
Além do bastão da fala, esta pratica de justiça restaurativa inclui uma declaração inicial dos envolvidos, oportunidade na qual são explicitados seus valores, sua integridade, importância de se expressar com sinceridade, etc.
Neste ínterim, esta modalidade permite que não somente as pessoas envolvidas diretamente com o fato ou o dano participem do processo, mas também as pessoas da sociedade, tal como a comunidade, pessoas convidadas, profissionais do Poder Judiciário. A importância da comunidade neste processo é fundamental, uma vez que, o diálogo entre os participantes permite que sejam demonstradas as violações que vem ocorrendo, as responsabilidades e normas que toda comunidade deve possuir.
3 APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL
A Justiça Restaurativa no Brasil passou a ser aplicada no Brasil após a edição da Resolução n º 225 do CNJ em razão de uma recomendação do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas nas Resoluções de nº 1999/26, 2000/14 e 2002/12 onde são estabelecidos além dos princípios que a norteiam, conforme descrito em seu artigo 2º, quer sejam os de corresponsabilidade, reparação dos danos, atendimento às necessidades de todos os envolvidos, informalidade, voluntariedade, imparcialidade, participação, empoderamento, consensualidade, confidencialidade, celeridade e urbanidade, a forma como a Justiça Restaurativa deverá ser aplicada.
Esta resolução do CNJ é de suma relevância para implantação dessa modalidade de resolução de conflitos em nosso país. Primeiro porque nos termos da Constituição da República, em seu artigo 5º, XXXV, “é direito de todos o acesso à justiça”. Segundo, pois há várias hipóteses dentre as quais ela pode ser aplicada conforme descritas nos artigos 72, 77 e 89 da Lei 9099/95, quando permitem a possibilidade de transação entre as partes bem como na condição de suspensão condicional do processo de natureza criminal, em trâmite perante às Varas dos Juizados Especiais Criminais.
Em nosso país, a Justiça Restaurativa vem sendo aplicada para o atendimento dos adolescentes em conflito com a lei, sempre priorizando às vítimas em observância à Lei 12.594/12, em seu artigo 35, II e III.
De acordo com a referida Resolução, constitui-se Justiça Restaurativa o conjunto de ações, princípios, métodos e técnicas que promovem a conscientização sobre diversos fatores da sociedade, tais como as relações interpessoais, institucionais e sociais que desencadeiam conflitos e violência, gerando com isso, efetivos danos às pessoas direta ou indiretamente envolvidas.
Para que possa ser colocada em prática, tal como já mencionamos, a Justiça Restaurativa prescinde do atendimento às necessidades dos envolvidos no crime/ infração, identificação das obrigações e responsabilidades, reparação dos danos e restauração das relações interpessoais. Para isso, é necessária a participação do ofensor ou ofendido (ou representantes destes), representantes da comunidade ou pessoas convidadas que possam ter sido atingidas pelo fato ocorrido. No entanto, faz-se necessário também a presença dos facilitadores que capacitados em técnicas de composição podem auxiliar as demais partes durante a pratica restaurativa. Esses facilitadores geralmente são servidores do Poder Judiciário, agentes públicos, voluntários ou pessoas representantes de entidades parceiras.
Conforme falamos anteriormente, um dos princípios que norteiam a Justiça Restaurativa é o princípio da voluntariedade. Assim sendo, para que as práticas restaurativas possam ocorrer é fundamental que as partes tenham prévio, livre e espontâneo consentimento e expressem sua concordância e reconhecimento de que o fato realmente existiu. Cabe-lhes ainda, a retratação até que seja homologado o procedimento restaurativo.
Para implementação dos programas de Justiça Restaurativa, o CNJ atribui essa competência aos Tribunais de Justiça que coordenados e estruturados pelo órgão competente devem incentivar e promover capacitação de magistrados e servidores nas técnicas e métodos da JR, bem como devem estipular locais para sua aplicação. Tem competência também para estabelecer parcerias entre entidades que lhes convém, como por exemplo, secretaria da educação, entidades de fins assistenciais para menores, entre outras, para que possam realizar os atendimentos necessários.
Não obstante tal resolução do CNJ, também foi firmado em 14 de Agosto de 2014, entre a Associação dos Magistrados Brasileiros e demais instituições brasileiras, como Secretaria dos Direitos Humanos, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, São Paulo, Distrito Federal, Departamento Penitenciário Nacional, Associação brasileira dos Magistrados da Infância e Juventude, entre outros, o Protocolo de Cooperação Interinstitucional para Difusão da Justiça Restaurativa que tem por objetivos promover, difundir e implantar programas de justiça restaurativa em nosso país, em decorrência da necessidade de se existir novas formas de resolução de conflitos auto compositivas, atendimento e serviços especiais voltados situações com crianças e adolescentes em extrema vulnerabilidade social, envolvidas com drogas, violência e criminalidade.
A importância da Justiça Restaurativa reflete não somente na possibilidade de restaurarmos as relações interpessoais como também na diminuição dos números de processos distribuídos nos fóruns no país.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça levantados no ano de 2018, há pelo menos 80 milhões de processos aguardando solução definitiva. A associação dos magistrados brasileiros acredita que 40% dos processos existentes no país poderiam ser resolvidos por meio de outra forma de resolução de conflitos, tais como mediação, conciliação e arbitragem. Ademais, importante mencionar que a economia gerada com os custos relativos a esses processos chegaria a R$ 63 bilhões aos cofres públicos.
Dessa forma, a Justiça Restaurativa, além de cumprir seu papel na resolução de conflitos, reparação de danos e responsabilização dos respectivos envolvidos, também pode ser vista como uma forma de contribuir com a desjudicialização do Poder Judiciário, ou seja, buscar resolução de conflitos fora da esfera judicial, assegurando sobretudo o direito fundamental do cidadão tanto com relação ao acesso à justiça quanto com a celeridade dos procedimentos.
No Estado de São Paulo, para a efetiva implementação de projetos de Jus‑ tiça Restaurativa desenvolveu‑se a metodologia que denominou‑se “polos irradiadores” que para (Mumme e Penido, 2014, p.80), significa,
Os “polos irradiadores são locais necessariamente com a participação direta ou com o acompanhamento do Judiciário local que recebem a proposta, inovando a prática de resolução de conflito, que visa, em última instância, à harmonização justa dos conflitos nas três dimensões – relacional, institucional e social –, por meio da implementação da Justiça Restaurativa.
Muitos desses polos irradiadores realizaram parcerias com as Secretarias da Educação, Cultura, Esporte, Polícia Militar, Guarda Civil Municipal, para que pudessem desenvolver tais processos circulares em escolas da rede pública, nos casos de brigas e lesões corporais entre os adolescentes, ofensas a professores bem como danos patrimoniais ocasionados às escolas.
Um dos mais importantes Polos Irradiadores da Justiça Restaurativa, o Núcleo da Justiça Restaurativa foi implantado na comarca de Tatuí, interior de SP, no ano de 2012. Na referida comarca, no ano de 2014, este núcleo deu início à aplicação dos processos circulares com jovens maiores e menores de 18 anos, os quais haviam sido flagrados em atos de pichação ilegal, respondendo perante o Juízo da Infância e Juventude ou Juizado Especial Criminal por estes atos.
Com a participação da comunidade, após a concordância destes jovens em participar dos processos circulares e a compreensão de que haviam cometido um erro e teriam sido irresponsáveis, constatou-se que no município não havia espaço para que eles pudessem expressar e desenvolver a arte de grafitagem da qual eles faziam parte.
Os resultados destes processos circulares foram satisfatórios, tendo em vista que, os jovens assumindo suas responsabilidades se comprometeram a localizar “pontos bons na cidade” para que pudessem expressar sua arte e com isso, foi posto em pratica um projeto, por meio do Conselho Municipal da Cultura, que os auxiliou nessa questão. Mais do que ter consciência de suas responsabilidades, estes jovens não voltaram a cometer os mesmos atos.
Nesta comarca de Tatuí foi formado também o Grupo Gestor Interinstitucional representado por instituições como Secretaria Municipal da Saúde, Educação, Esporte, Cultura entre outros que tem por finalidade identificar as causas que levam os jovens à atos de violência ou de danos, visando criar políticas públicas que possam suprir essas deficiências e disseminar as ideais da Justiça Restaurativa em suas instituições.
No município de Sorocaba, a Justiça Restaurativa passou a ser implementada após um projeto realizado entre a Secretaria de Igualdade e Assistência Social da Prefeitura de Sorocaba. Para tanto, foi inaugurada no ano de 2017 uma sala no prédio da referida Secretaria para que se pudessem realizar os círculos restaurativos.
Para aplicação dessa modalidade de resolução dos conflitos, não se faz necessária a presença de um juiz. Basta que haja um facilitador que tenha participado e concluído do curso de formação de facilitadores para que possa conduzir esses encontros entre vítima e agressor. O que mais se nota como resultado da implantação dessa modalidade é a diminuição da reincidência se comparado aos métodos utilizados pelo Poder Judiciário atual.
A fim de dar embasamento à esta modalidade de resolução de conflitos, foi decretada na Comarca de Sorocaba, em 3 de outubro de 2017, sob o nº 23.118 a Lei que dispõe sobre a participação do município na implementação local da Justiça Restaurativa, criando se também, tal como na comarca de Tatuí, um grupo Gestor Interinstitucional, para que possam designar integrantes dos Poderes Executivo, Judiciário e da sociedade civil capacitando-os para atuarem como facilitadores nos processos circulares. Verificando-se a aplicação e os efetivos resultados da Justiça Restaurativa em nosso país, resta demonstrado que nossa sociedade urge de medidas alternativas para a resolução de conflitos de maneira eficaz, responsável e principalmente humanizada.
Para ilustrar o presente trabalho, trago abaixo dois casos práticos de aplicação da Justiça Restaurativa, a saber:
Assalto à mão armada a um restaurante. Dos quatro assaltantes, três são adolescentes; um deles, empregado do estabelecimento, e outro que já havia trabalhado ali. Só foram descobertos e presos depois de alguns meses de investigação policial. Durante esse tempo, o fruto do crime, R$ 3.750 para cada um, foi gasto: roupas e tênis de grife, aparelho de som “legal”, correntes de ouro, festas.
Com o processo em mãos, o juiz convidou a todos os envolvidos para participarem de uma prática restaurativa. Reuniram-se os adolescentes, seus pais e a vítima para falar de forma aberta sobre o ocorrido. Como os rapazes se mostraram dispostos a devolver a quantia furtada, o juiz concedeu a liberdade assistida para os menores e foi combinada a devolução do dinheiro de forma parcelada, conforme a possibilidade econômica de cada um.
O magistrado fez uma exigência: o pagamento deveria ser feito mensalmente no local do assalto. “Esta foi uma experiência de alta dimensão pedagógica, porque além de economizar três previsíveis vagas na privação de liberdade, evitamos que esses adolescentes tivessem agravado a sua trajetória infracional”, comenta Leoberto Brancher, responsável pelo caso e coordenador na AMB da campanha de difusão da Justiça Restaurativa. (Casos de Sucesso, Justiça Restaurativa, 2019)
Era uma briga de vizinhos de área rural que durava mais de dez anos. A disputa envolvia inicialmente a demarcação das terras, mas se estendeu pelo uso das águas de uma nascente que ficava entre as duas propriedades. Os anos passaram marcados por agressões e ameaças de ambos os lados. Durante a primeira audiência na Justiça, os envolvidos foram convidados a participar de uma prática incomum, que tinha como finalidade restaurar aquela relação estremecida e reparar os danos causados pelos diversos embates.
Foram algumas sessões individuais e em conjunto. Numa delas, a Agência Reguladora de Águas (ADASA), do Distrito Federal, participou como convidada a propor solução ao conflito. O resultado: os dois moradores se uniram para evitar a degradação da nascente. “Alcançamos a pacificação e o apadrinhamento das águas, uma solução completamente não pensada por ninguém”. (Casos de Sucesso, Justiça Restaurativa, 2019)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o exposto no presente trabalho é possível verificar que a Justiça Restaurativa vem conquistando seu espaço em nossa sociedade e cada vez mais vem conseguindo quebrar paradigmas preestabelecidos que já não são mais capazes de fazer justiça.
Graças ao apoio, divulgação, envolvimento e engajamento dos órgãos institucionais e adeptos desse tipo de resolução de conflitos, a Justiça Restaurativa vem permitindo que inúmeros casos de violência, crimes de menor potencial ofensivo e crimes contra o patrimônio sejam solucionados de maneira pacífica e tenham bons resultados, sem a necessidade de se mover o Poder Judiciário para a busca da efetiva reparação dos danos e responsabilização dos indivíduos.
Podemos verificar nos exemplos colacionados que é possível se reestabelecer a ordem, trazer novamente a paz entre as pessoas e comunidade e criar novas formas de se solucionar os conflitos por meio do diálogo, da empatia, do estabelecimento de responsabilidades, da reparação dos danos causados e da busca pelo recomeçar, tornando nosso meio de convivência um lugar de paz e tranquilidade.
Aplicando-se essa nova modalidade de solução de conflitos podemos obter resultados eficientes na condução de casos em que o diálogo, a responsabilização e a empatia podem mudar a forma como vemos os conflitos e nos permitir alcançar verdadeiramente a tão sonhada paz social e ainda, reduzir o número de processos judiciais que muitas vezes acabam por criar ainda mais transtornos, reincidência e caos.
REFERÊNCIAS
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Graduanda em Direito. Licenciada em Letras: Português e Inglês.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Priscila de Miranda. Justiça restaurativa no Brasil: novos caminhos para a resolução de conflitos e a desjudicialização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53181/justia-restaurativa-no-brasil-novos-caminhos-para-a-resoluo-de-conflitos-e-a-desjudicializao. Acesso em: 23 dez 2024.
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