Coautoras:
ROSELAINE L. TOLEDO[1]
ANDRÉIA L. COSTA [2].
RESUMO: No presente artigo buscou-se discutir possibilidades de conciliação entre os direitos e interesses de genitores portadores de deficiência mental e os direitos e interesses de seus filhos menores no tocante ao exercício de guarda e visita, através de uma abordagem quanti-qualitativa. No primeiro momento foi realizada uma revisão de literatura, considerando autores do direito, artigos científicos de diversas áreas de estudo e legislações brasileiras, objetivando compreender a possibilidade do exercício de guarda da pessoa com deficiência de acordo com a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (2009) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015). Em um segundo momento, através de uma abordagem quanti-qualitativa, realizou-se busca nos sites dos Tribunais de Justiça do Sudeste do Brasil, objetivando analisar o exercício da guarda pelo genitor com deficiência mental. Como resultado, observou-se que, em que pese este Estatuto determinar que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para exercer o direito de guarda em igualdade de oportunidades, esse exercício não é observado na prática pelos tribunais consultados, o que leva a considerar que é possível a conciliação entre os direitos da criança e do adolescente e o direito do genitor portador de deficiência à convivência familiar.
PALAVRAS CHAVE: Genitor com deficiência Mental. Direito de guarda e visita. Direitos da criança e do adolescente.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. METODOLOGIA. 3. REVISÃO DE LITERATURA. 4. DISCUSSÃO. 4.1. Jurisprudência do Sudeste do Brasil. 4.2. Solução para Compatibilização dos Interesses. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
ABSTRACT: This article aims to discuss possibilities of reconciliation between the rights and interests of parents with mental disabilities and the rights and interests of their minor children regarding the exercise of custody and visit, through a quali-quantitative approach. The research was carried out in two complementary moments: in the first moment, a literature review was conducted, considering renowned authors of the law, scientific articles from several areas of study and Brazilian legislations. The first moment was realized to understand the possibility of exercising custody of the person with a disability, in accordance with the Convention on the Rights of Persons with Disabilities of 2009 and the Disabled Persons Statute promulgated in 2015. In a second moment, through a quantitative-qualitative approach, a search was conducted on the websites of the Courts of Justice of the Southeast of Brazil, aiming to analyze the exercise of custody by the parent with mental disabilities. As a result, it was observed that, although the Statute determines that the disability does not affect the full civil capacity of the person to exercise the right of custody on equal opportunities, this exercise is not observed in practice by the courts of the Southeast of Brazil, which leads us to consider the possibilities of conciliation between the rights of the child and the adolescent and the right of the disabled parent to family coexistence.
KEY WORDS: Genitor with Mental deficiency. Right of guard and visit. Rights of children and adolescents.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil tornou-se, ao lado de outros 174 países ao redor do mundo, signatário da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD) e seu protocolo adicional, comprometendo-se, enquanto Estado-parte, a promover a dignidade e a inclusão das pessoas com deficiência. Esta norma internacional fora internalizada pelo Decreto 6949 de 25 de agosto de 2009 e impacta de maneira direta o Direito Civil brasileiro, especialmente no que tange à Teoria das Incapacidades e ao Direito de Família.
O artigo 23 da CDPD impõe aos Estados-parte a tomada de medidas que eliminem o preconceito da sociedade em relação ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos por pessoas com deficiência, além de, no item 2 desse artigo, impor que se assegurem os direitos familiares como o exercício de guarda, adoção, custódia, curatela, dentre outros (BRASIL, 2009).
Ato contínuo e reafirmando o texto da CDPD, fora promulgada a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência, autointitulada Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), Lei 13.146 de 2015. Dentre as diversas modificações trazidas à Teoria das Incapacidades e ao Direito de Família, destacam-se duas: a remoção das hipóteses de deficiência mental do rol de incapacidade dos artigos 3° do Código Civil de 2002, bem como a possibilidade do exercício de guarda, tutela, curatela e adoção em igualdade de oportunidades com as demais pessoas pelo PCD, tendo em vista que o artigo 6°, VI do EPD, afirma que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para exercer esses atos. Nesse sentido, a teoria da incapacidade passou por uma reconstrução em que o portador de deficiência tem o poder de gerir, na medida do possível, sua vida, podendo utilizar-se de institutos assistenciais (curatela ou tomada de decisão apoiada) para a efetivação de atos negociais ou patrimoniais (DINIZ, 2016).
Essa norma modificou normativamente sobremaneira o instituto de guarda de crianças e adolescentes exercido por genitores. Até então, o fato do genitor do menor ser portador de alguma deficiência, especialmente alguma deficiência mental, fazia com que não se cogitasse a possibilidade de requerer o exercício de guarda e visitas de seus filhos, em prol do melhor interesse das crianças e adolescentes, já que era considerado incapaz.
Adotou-se, por essas normativas que buscam a proteção e a possibilidade de exercício de autonomia das pessoas com deficiência, o conceito social de deficiência, largamente desenvolvido no mundo a partir de meados do século XX. Esse conceito considera que a deficiência não é provocada apenas por fatores biológicos e patológicos, mas também por fatores sociais, decorrentes da exclusão da PCD do exercício de sua cidadania. Nesse sentido, o que torna um cego deficiente é muito mais a falta de adaptação da sociedade em receber e conviver com a cegueira do que a cegueira em si (DINIZ, 2012).
A sociedade e o Estado não estão preparados para a inclusão e convivência com essas pessoas, o que as torna extremamente vulneráveis. Algumas produções artísticas e jornalísticas, baseadas em histórias reais, como a produção da jornalista Daniela Arbex “O holocausto brasileiro” (HOLOCAUSTO BRASILEIRO, 2016) e o filme “Nise” (NISE, 2016) que tratam, respectivamente, do genocídio de pessoas com deficiência no Hospital Colônia em Barbacena e da luta da psiquiatra Nise da Silveira por tratamento psiquiátrico humanizado a pessoas com deficiência mental, denunciam que pessoas com deficiência mental foram tratadas como objeto em diversas circunstâncias. Precisamos estar alertas para que se garanta a dignidade dessas pessoas. O preconceito, de forma mais severa que a própria patologia, exclui e vulnera pessoas.
Fato é que as novas normativas expressamente permitem o exercício de guarda e visitas de crianças e adolescentes por pessoas com deficiência mental. Pretende-se discutir, nesse trabalho, possibilidades de conciliação entre os direitos e interesses de genitores portadores de alguma deficiência mental e os direitos e interesses de seus filhos, crianças e adolescentes em relação a quem possa ser exercida a guarda e ou a visitação.
2. METODOLOGIA
Considerando o objetivo proposto, foi aplicada uma abordagem mista quali-quantitativa, sendo executado em dois momentos complementares: no primeiro momento, realizou-se a análise de dados secundários, através de uma revisão de literatura, considerando autores renomados do Direito de Família, artigos científicos de diversas áreas de estudo e legislações. Neste aspecto, pretendeu-se compreender a possibilidade do exercício de guarda da pessoa com deficiência de acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência promulgado em 2015, abordando conceitos como deficiência e guarda, analisando o princípio do melhor interesse da criança e o direito de convivência familiar dos pais e dos filhos.
Em um segundo momento, através de uma abordagem quanti-qualitativa, utilizou-se a análise de conteúdo de acórdãos obtidos através da busca nos sites dos Tribunais de Justiça do Sudeste do Brasil, ocorrida durante o mês de junho de 2019. Objetivou-se, com isso, analisar o exercício da guarda pelo genitor deficiente mental. Nessa busca documental, utilizou-se as expressões “problema mental”, “deficiência mental”, “família” e “guarda” e analisou-se todas as decisões prolatadas, em um total de 05 (cinco).
3. REVISÃO DE LITERATURA
O conceito de dignidade humana está permeado por diversas correntes de pensamento e não convém, nesse artigo, uma larga apresentação teórica acerca delas. Cabe-nos a apresentação de um conceito e da justificativa da escolha dele. A dignidade humana é direito de todo ser humano, independentemente de suas condições fisiológicas, mentais, morais, religiosas ou familiares. Isso implica que nenhum ser humano pode ser relevado à condição de objeto e deve ter sua forma de estar no mundo respeitada pelos demais seres humanos e pelo Estado.
Para se tratar da dignidade das pessoas com deficiência mental, é preciso observar que há muito no Brasil e no mundo, esses sujeitos foram ejetados do convívio social, retirados da condição de escolha. Entende-se que a garantia de dignidade está na possibilidade de exercício de autonomia, em que é proibida a redução da vida humana em uma vida nua, que seria, nos preceitos da bioética “aquela que constitui ‘o conteúdo primeiro do poder soberano’, exprimindo o caráter originário da sujeição da vida a um poder de morte” (ARÁN; PEIXOTO JUNIOR, 2007, p. 853). Isso implica dizer que atribuir a alguém, o pleno poder sobre a vida da pessoa com alguma deficiência, em função da patologia, é reduzir esta pessoa à ausência de vida própria.
Busca-se, nesse artigo, tratar a dignidade das pessoas com deficiência mental, ao lado de todas as demais, nos termos da nossa Constituição de 88 em que todos são iguais perante a lei. Nesse sentido, Costa (2003, p. 155) conceitua dignidade da pessoa humana:
[...] como princípio jurídico, vai designar não o modo de ser da pessoa, não a sua autonomia, ou liberdade, nem a sua honra ou vida privada, não o direito à opção sexual, ao nome, à associação ou a uma moradia, ou a um eletrodoméstico que não pode ser penhorado, nem ao fato de os contratos deverem obedecer à sua função social, ou cumpridos segundo a boa-fé, nem à circunstância de o estado dever certas prestações sociais como o trabalho, a escola ou o acesso ao sistema de saúde. Indicará, primária e precipuamente, a ‘humanidade da pessoa’. Sua função será a de obstar as práticas – provenham de entes públicos ou pessoas privadas – que atinjam a carga de humanidade que em nós está contida.
O Estado deve, portanto, garantir a promoção da dignidade por meio da garantia de um feixe de direitos fundamentais que, de forma inarredável, deve pertencer a quaisquer seres humanos, assegurando a igualdade de condições para se alcança-los.
As pessoas com deficiência mental, pelo fato de serem vistas socialmente como anormais, foram por completo marginalizadas, inclusive juridicamente. Não se conferiu capacidade de agir e de se autodeterminar àqueles que não se comportavam da maneira que a maioria da sociedade espera. Segundo Rosenvald (2016, p. 127):
Por uma longa fase histórica, o beneficiário da plenitude da subjetividade foi o homem burguês, maior, alfabetizado, proprietário. A subjetividade dos demais humanos era cancelada, com a consequente exclusão da esfera pública e redução da capacidade patrimonial. A função ideológica desta concepção é a de imantar a garantia da liberdade na tutela da propriedade, convertendo o direito em guardião da ordem econômica do mercado. De fato, a iluminista civilização do direito civil não permitiu o acesso de alguns homens ao estatuto da capacidade civil. O direito privado optou por uma postura arredia e implacável perante aqueles que se conduzissem de forma diferenciada nas relações patrimoniais.
No sentido aqui apresentado, a autonomia do indivíduo é um pressuposto. De certo que não se pode compreender juridicamente uma só, sempre nos mesmos moldes, que deva ser garantida a toda e qualquer pessoa que seja portadora de alguma doença mental. É certo que as doenças mentais podem interferir nessa autonomia pelas suas limitações. Contudo, outros fatores também influenciam essa autonomia, como a educação precária, a deficiência econômica (GERMANO, 2012).
Há socialmente arraigada a ideia de que as pessoas com deficiência, especialmente aquelas com deficiência mental, são incapazes e dependem a todo momento de alguém que possa responder por ela. Desenvolveu-se, em relação às pessoas com deficiência, o paternalismo, que considera cuidado o tolhimento da própria pessoa, tratada socialmente, em suas relações interfamiliares, como incapazes, como inaptas ao exercício de autonomia. “O paternalismo pode, em nome do (suposto) bem-estar do outro, infantilizá-lo e sufocá-lo, impedindo sua capacitação para viver uma vida decente e livre, tornando-o, assim, sempre dependente das escolhas alheias” (SCHRAMM, 2008, p. 17)
Quando alguém, na condição de curador ou apoiador de uma pessoa com deficiência, mesmo sabendo de sua possibilidade de se expressar, ignora-a, no âmbito mais íntimo de suas relações, há uma violação da carga de humanidade desse ser humano, ele passa a ter vida nua (ARÁN; PEIXOTO JUNIOR, 2007).
De certo, em alguns casos de deficiência mental, a patologia, por si só, é capaz de gerar incapacidade para prática de atos civis, pela incompreensão até de si mesmo. Ocorre que há no Brasil, considerando os dados no Censo 2010, cerca de 2.617.025 pessoas com deficiência mental ou intelectual, o que representa 1,37% do total da população brasileira” (SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA). Não se pode considerar que todas essas pessoas são inaptas, que todas elas estão na mesma realidade de deficiência e de incapacidade. Em muitos outros casos, a deficiência mental/intelectual admite convívio, admite desejos, vontades, afeto, amor. É exatamente por que são seres humanos que estão sujeitos aos erros, acertos e tentativas da vida e, conforme sua deficiência, havendo necessidade de pessoas que o apoiem em poucos ou em muitos dos atos que venham praticar.
A pessoa com deficiência, assim como todas as demais, nasce no seio de uma família e nesse espaço desenvolve-se através de laços afetivos, de incentivos e conflitos. É de extrema importância que as pessoas tenham convívio familiar, sendo mutuamente respeitadas, especialmente aqueles mais vulneráveis membros de uma entidade familiar. Espera-se que no espaço familiar a pessoa tenha possibilidade de construir-se digna. Ocorre que isso se apresenta como uma dualidade entre liberdade e família:
De muitas formas a família limita o indivíduo, e, pois, o sacrifica em sua pretensão de liberdade. Reversamente, possibilitando-lhe a realização pessoal pelos contatos mais profundos a que dá origem, ela também o liberta, isto é, promove-lhe a personalização através do outro, de modo verdadeiramente insubstituível. (VILLELA, 1980, p. 10)
A família, no âmago de proteger a pessoa portadora de deficiência mental, muitas vezes e por diversos fatores, desconsidera as vontades e manifestações personalíssimas dela, agindo em seu lugar, tolhendo sua liberdade, mas ao mesmo tempo, conferindo cuidados. Segundo Germano (2012) quando o Estado ou a pessoa na condição de autoridade retirar o poder de escolha da pessoa com a deficiência, podendo este escolher, destrói sua liberdade, já que não permite sua livre manifestação de vontade.
Seguindo esse raciocínio e adentrando mais especificamente na temática proposta, tinha-se, até há pouco tempo que, caso a pessoa com deficiência viesse a ter filhos, uma outra pessoa ou o outro genitor não deficiente, seria responsável pela guarda de seu filho, já que a incapacidade por decorrência de deficiência mental, era, até então, tratada como hipótese presumida de incapacidade na codificação civil de 2002, o que impossibilitava o exercício de guarda. “É urgente e de grande relevância a discussão sobre a autonomia do portador de deficiência, justamente pela deficiência ser ‘comumente confundida com incapacidade de julgamento e decisão’ (BERNARDES apud GERMANO, 2012).
Essa urgência traduz na necessidade de tratar as pessoas com deficiência, assim como já está previsto no EPD, como capazes e, tão somente por exceção, como incapazes. É necessário o reconhecimento da capacidade das pessoas com deficiência mental, por meio da possiblidade de exercer escolhas no limite da sua compreensão, de exercer direitos, especialmente aqueles de cunho personalíssimo, é essencial para se alcançar dignidade. Busca-se, em relação às pessoas com deficiência mental, não apenas a previsão normativa de que se tem direitos da personalidade, mas a sua efetividade. “O direito, é, pois, não à personalidade, mas às condições de sua afirmação e de seu exercício na ordem social, no intermundo que é o nosso comum destino (COSTA, 2003, p. 187).
A lei 13.146/15 – o EPD -, modificou o rol das incapacidades descrito no Código Civil de 2002. Não há, seja no rol das incapacidades absolutas, seja no rol das incapacidades relativas, nenhuma causa de deficiência que seja presumidamente uma hipótese de incapacidade. Houve definitivamente a distinção e separação entre os conceitos de deficiência e incapacidade. A pessoa com deficiência, entretanto, pode ser, por meio de processo de curatela[3] ou por tomada de decisão apoiada[4], considerada incapaz, com a descrição escorreita dos poderes conferidos ao apoiador ou curador. Não há como se estabelecer, na maior parte dos casos, que a pessoa com deficiência nada pode decidir sobre si mesmo.
O critério anteriormente utilizado eram os diferentes graus de discernimento que, dependendo do caso, definiriam a necessidade de uma maior ou menor proteção da pessoa com deficiência mental em questão. Porém, após o Estatuto, o discernimento parece ter passado a ser presumido, tendo em vista que pela nova regra aqueles que não podem exprimir sua vontade passaram a poder, excepcionalmente, ser considerados relativamente incapazes. Essas alterações, porém, impõe uma análise das incapacidades conforme os elementos do caso concreto, e não por uma prévia classificação, em busca da dignificação da pessoa com deficiência mental. Não seria coerente com o conceito atual de deficiência a presunção normativa de que as pessoas com deficiência mental seriam relativamente ou absolutamente incapazes (MADEIRA; LIMA; JUNIOR, 2018, p. 125-126)
No que tange à prática de atos familiares, a regra não é diferente: as pessoas com deficiência são plenamente capazes de exercer os atos personalíssimos. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Dec. 6949/09 -, prevê a necessidade de que o Estado tome medidas que busquem a inclusão, pela sociedade, da possibilidade de a PCD exercer atos sexuais e reprodutivos e, por consequência, possam também exercer a guarda, requerer a adoção, dentre outros atos familiares.
Os Estados Partes assegurarão os direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência, relativos à guarda, custódia, curatela e adoção de crianças ou instituições semelhantes, caso esses conceitos constem na legislação nacional. Em todos os casos, prevalecerá o superior interesse da criança. Os Estados Partes prestarão a devida assistência às pessoas com deficiência para que essas pessoas possam exercer suas responsabilidades na criação dos filhos (BRASIL, 2009).
Estariam as pessoas com deficiência mental aptas ao exercício de guarda? Caso não possam fazê-lo, como buscar uma solução para que sua impossibilidade de exercer guarda não se transforme no tolhimento de direito da PCD de ter convívio familiar e da criança e adolescente de conhecer seu pai ou sua mãe e conviver com a diferença dele?
O termo “guarda”, tratando-se de proteção aos filhos, significa vigiar e cuidar do melhor interesse da criança e do adolescente, relacionando-se à responsabilidade de cuidados imprescindíveis à criação destes. Nesse sentido, Lauria (2003) conceitua a guarda como sendo um conjunto de direitos e deveres que uma pessoa ou casal exerce em relação à criança ou adolescente, consubstanciado no cuidado pessoal, moral, educacional, bem como diversão e cuidados para com a saúde, consistindo na mais ampla assistência à sua formação.
A guarda decorre da obrigação de cuidado que deve ser cumprida pelos genitores do menor ou por outra pessoa designada – tutor, curador, avós, dentre outros. Quando houver uma disputa de guarda entre os genitores, sendo um deles portador de deficiência mental ou não, a análise, no âmbito do estudo social considera o melhor interesse do menor. Em relação à condição dos genitores para o exercício de guarda, considera-se a “história de abusos por parte do parceiro/cônjuge; status econômico; interesse e desejo de obtenção da guarda; saúde física e mental; uso de drogas; nível de hostilidade entre o par; flexibilidade; habilidades parentais; cuidados antes e depois da separação em relação ao filho” (SANTOS, 2015, p. 27-28).
Pode-se, nessa disputa, atribuir a guarda unilateral a um dos genitores ou a guarda compartilhada a ambos[5]. Todavia, ainda que apenas um deles figure como guardião, o direito da criança ao convívio com ambos deve ser preservado. Apenas quando o convívio não for saudável para o menor é que deve ocorrer o afastamento deste do genitor que lhe seja tóxico. Não sendo este o caso e se for considerada a melhor alternativa a atribuição de guarda unilateral, deve ser garantido ao genitor não guardião o direito de visita, caso haja interesse no seu exercício. O que não é correto é impedir o menor do convívio familiar com um dos genitores, sem fundamento.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, assegura à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar. Corroborando, a Convenção dos Direitos da Criança determina que toda criança possui o direito de manter relacionamento afetivo e contato direito com ambos os genitores. No Código Civil Brasileiro de 2002, a guarda está inclusa nos direitos e deveres alcançados pelo poder de família, em que compete aos pais, dirigir a criação e educação de seus filhos menores, bem como, tê-los em sua companhia e guarda. O Estatuto da Criança e do Adolescente, dispõe sobre a aplicação, obrigações e deveres inerentes à guarda tais com a prestação de assistência material, moral e educacional.
O direito à convivência familiar entre os genitores e seus filhos é um direito-dever decorrente do poder familiar[6] exercido através da guarda, ou ainda pelo exercício de visita do genitor não guardião. Nesse sentido, o direito de visita evita o distanciamento de pais e filhos, minimizando os traumas que a perda da convivência poderia causar. O que se tem, portanto, é a determinação, pelo EPD, de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para exercer o direito de guarda em igualdade de oportunidades com as outras pessoas, cabendo aos juristas analisar, caso a caso, as possibilidades de compatibilização dos interesses envolvidos no exercício de guarda por genitores com alguma deficiência mental.
Bronfenbrenner, na década de 1970, desenvolveu a Teoria Ecológica, que teve como objetivo o estudo do desenvolvimento humano a partir das relações de um indivíduo com os ambientes naturais que o mesmo convive. Ao reformular sua teoria para uma compreensão bioecológica do desenvolvimento humano, passou a considerar também as características do indivíduo em desenvolvimento em relação às influências de quatro aspectos multidirecionais inter-relacionados, pessoa, processo, contexto e tempo, considerados elementos centrais do modelo ecossistêmico da Teoria Bioecológica de Bronfenbrenner. Essa reformulação é importante para compreender o processo de desenvolvimento de uma criança ou de um adolescente, a relação entre o meio em que esses se relacionam, incluindo os valores e regras que lhes são passados, com o seu percurso. Os sujeitos são considerados agentes dinâmicos do ambiente, sujeitos a mudanças de acordo com a realidade (BRONFENBRENNER, 1977/1996).
A Teoria Bioecológica de desenvolvimento humano foi aqui eleita como aporte para se discutir a importância do convívio de uma criança ou de um adolescente com seus genitores para o seu pleno desenvolvimento, mesmo que um deles possua alguma deficiência mental. Com base nos conceitos trazidos pelo modelo, será discutido como a falta do convívio mais próximo com um dos genitores, por alguma limitação, pode interferir todo um sistema. A abordagem ecossistêmica foca nas relações interpessoais, característica essencial na análise de uma família, em que um dos genitores é impedido de exercer seu direito de guarda por alguma deficiência mental e o direito da criança ou adolescente de conviver com esse genitor.
4. DISCUSSÃO
O instituto da guarda visa à proteção da criança ou adolescente, em desenvolvimento. Há o reconhecimento normativo, portanto de que estes necessitam de cuidados diversos e de que, a priori, os responsáveis por realizar o dever de cuidado seriam os genitores. O que se problematiza são os conflitos existentes entre os interesses e direitos do genitor com deficiência mental e seus filhos menores.
Para discutir esse conflito aparente, é adequada a utilização da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humana de Bronfenbrenner (1977/1996), que permite compreender as interações existentes nas relações familiares. Segundo a teoria, as normas e valores convencionais comprometidos pelo ambiente familiar podem ser reproduzidos em outros contextos por generalização. O impedimento do convívio com um dos genitores pode gerar na criança ou adolescente crenças, atitudes, valores ideológicos preconceituosos, como também, um sentimento de abandono, impactando negativamente o seu desenvolvimento ao longo de sua trajetória de vida e o convívio com outros meios. Teixeira (2005) considera a família uma unidade doméstica, em que o comportamento de um exerce influência recíproca e significativa no comportamento de todos os demais indivíduos daquela unidade familiar.
Segundo Dubar (1997), o processo de socialização é visto como a reciprocidade da estrutura mental e social, permitindo inferir ser importante o convívio mais próximo da criança ou adolescente com seus genitores, sem qualquer menção acerca da higidez física ou mental destes. A ausência do convívio pode comprometer o processo de construção coletiva de suas condutas sociais, podendo ser no aspecto cognitivo – regras; aspecto afetivo – valores; ou aspecto expressivo – signos.
4.1. Jurisprudência do Sudeste do Brasil
Ao realizar-se uma pesquisa junto aos sites dos Tribunais de Justiça do Sudeste do Brasil, sem recorte temporal, com objetivo de verificar o entendimento jurisprudencial a respeito da aplicabilidade da guarda ou visitas pelo genitor deficiente mental, observou-se que as 05 decisões de apelação e Agravo de Instrumento encontradas decidiram pela não aplicabilidade da guarda ao genitor com deficiência.
Tabela 1: Pesquisa jurisprudencial nos Tribunais de Justiça do Sudeste do Brasil acerca da aplicabilidade da guarda pelo genitor deficiente.
PESQUISA JURISPRUDENCIAL NOS TRIBUNAIS DO SUDESTE Descritores Utilizados: “problema mental”, “deficiência mental”, “família” e “guarda” |
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Tribunal |
Número do Processo |
Atribuição da guarda à PCD |
Atribuição de visita à PCD |
Fundamentos |
TJMG |
Ap. 10183.08.154802-0/001 |
Não houve |
Não houve |
1;2;3;5 |
TJMG |
Ap. 10480.09.138610-6/001 |
Não houve |
Não houve |
1;2;4;5 |
TJRJ |
AI. 0014056-43.2017.8.19.0000 |
Não houve |
Não houve |
1;2;3;5 |
TJRJ |
Ap. 0019508-77.2012.8.19.024 |
Não houve |
Inconclusivo |
1;2;3;5;6 |
TJRJ |
AI. 0047255-22.2018.8.19.0000 |
Não houve |
Não houve |
1;2;3;5 |
TJES |
Não foram encontrados acórdãos com pertinência temática |
|||
TJSP |
Não foram encontrados acórdãos com pertinência temática |
FONTE: tabela elaborada pelas autoras em junho 2019
Foram encontrados diversos fundamentos distintos nas decisões analisadas e, assim, as autoras elaboraram uma tabela (02) que permite vislumbrar e analisar a última coluna da tabela 01.
Tabela 2: fundamentos jurídicos dos julgados
FUNDAMENTOS JURÍDICOS |
|
1 |
Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente |
2 |
Análise das condições dos genitores ou outras pessoas para conferir assistência material, moral e educacional |
3 |
Análise da probabilidade de guarda compartilhada |
4 |
Revelia |
5 |
Análise do distúrbio mental |
6 |
Desconsideração do genitor como PCD |
FONTE: tabela elaborada pelas autoras em junho 2019
Ao analisar-se o primeiro acórdão do TJMG (Ap. 10183.08.154802-0/001) publicado em 01/07/2013, observa-se que, em que pese o fato da CDPD já estar em vigência, esta sequer fora citada como fundamentação. Nesse processo, a disputa de guarda dava-se entre o pai, que já detinha a guarda consigo e a mãe, que fora decotada de seu direito de guarda em razão de distúrbios psiquiátricos que lhe provocavam agressividade e oscilações de comportamento. Havia nos autos, laudo que mencionava ser a mãe apta para o exercício de guarda, mas não mais que o pai. O pai já dispensava cuidados aos dois filhos do casal e os filhos sentiam-se bem, confortáveis no lar paterno. Assim, fora sobrelevado o melhor interesse dos menores envolvidos no conflito, mantendo-se a guarda unilateral paterna.
Observa-se ainda, neste acórdão, que o relator considerou que o convívio dos menores com a mãe não deveria ser evitado, pois que seria importante para eles e para recuperação materna. Contudo, apesar dessa menção, que coaduna os interesses conflitantes da mãe com deficiência mental e dos menores, não houve nem mesmo a regulamentação da visita, nem menção aos direitos familiares das pessoas com deficiência nesta decisão.
Nos mesmos moldes, mas diante de circunstâncias fáticas mais graves, o segundo acórdão do TJMG (Ap. 10480.09.138610-6/001) tratou de uma situação de disputa de guarda, em que a avó paterna requeria a guarda dos três netos. A genitora quedou-se inerte, tendo sido decretada a revelia. Apesar de haver provas de que a genitora possuía transtornos mentais, esse não fora o ponto de discussão do processo. A mãe havia agressivamente matado o pai das crianças e encontrava-se presa e a avó já possuía há muito a guarda de fato. Não é um julgado importante para a discussão que por hora se faz.
Os julgados do Tribunal de Justiça do RJ não trazem nenhuma novidade em relação aos encontrados em Minas Gerais. Tratam o tema guarda como pertencente ao interesse dos menores presentes no litígio. O intuito é tão somente a proteção destes, sem carrear qualquer discussão acerca dos interesses ou dos direitos das pessoas com deficiência. Não é feita menção acerca da CDPD. Sendo que na Apelação de nº. 0019508-77.2012.8.19.024, a guarda do filho foi concedida ao pai, já que a mãe possuía problemas psicológicos, sendo que o filho, que há época se encontrava com 12 anos manifestou o desejo realizar a visitação à mãe em finais de semana. Contudo, não é possível afirmar que a visita foi regularizada neste acórdão, já que, por se tratar de processo em segredo de justiça não foi possível a visualização de seu inteiro teor:
Apelação cível. Ação de Guarda. Autor, genitor do menor, alega que a ré (genitora) é portadora de problemas psicológicos. Procedência. Laudos de estudo social que apontam que a recorrente é portadora de distúrbios psicológicos, tendo inclusive reconhecido o próprio adoecimento psíquico e admitido não ter matriculado o filho em qualquer estabelecimento de ensino no ano letivo de 2014. Menor que manifestou o desejo de residir junto ao pai, realizando a visitação à mãe em finais de semana, devendo ser ressaltado que à época da realização da audiência já contava com quase 12 anos de idade, possuindo tem plenas condições de expressar a sua vontade. Conjunto probatório que evidencia que a ré apelante não se encontra em perfeita saúde mental para assumir a guarda de seu filho. Genitor que reúne melhores condições para o exercício da guarda. Prevalência do princípio da proteção integral ao menor. Teor do art. 227 da Constituição Federal. Precedentes jurisprudenciais desta Corte. Sentença mantida. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC (TJRJ – AP. 019508-77.2012.8.19.0204, julgamento 20/04/2015, rel. Des. PEDRO SARAIVA DE ANDRADE LEMOS).
Nos tribunais do Espírito Santo e de São Paulo, não se encontrou nenhum acórdão com pertinência temática.
O resultado encontrado denota a invisibilidade e ao mesmo tempo a importância de se discutir a presente temática. Não há muitos pedidos judiciais que tenham alcançado a segunda instância que versem sobre o pedido de guarda e/ou visitação por PCD. Não há elementos para uma conclusão, mas é provável que o Brasil, enquanto estado-parte da CDPD não tenha ainda desenvolvido políticas que permitam que as pessoas com deficiência saibam que possuem direito à convivência familiar. Nesse sentido, em que pese a regulamentação, ainda estamos muito a quem de uma efetiva inclusão dessas pessoas.
Essa realidade pode ser observada em outros países, como nos Estados Unidos, em que estudos indicam que as taxas de remoção dos filhos de pais que possuem deficiência psiquiátrica foram encontradas em 70% a 80%; em relação à deficiência intelectual, as taxas variam de 40% a 80%; e em famílias onde a deficiência dos pais é física, 13% relataram tratamento patologicamente discriminatório em casos de custódia. O fundamento mais utilizado nos tribunais americanos, para essa prática, é o melhor interesse da criança. Contudo, ao autor aponta que este fundamento tem sido criticado por afetar fortemente as decisões de custódia e visitação de pais deficientes, o que muitas vezes tem consequências significativas e prejudiciais para os pais e seus filhos (YOUNG, 2012).
Para este autor, os pais com deficiências psiquiátricas são os que mais sofrem com a retirada de seus filhos, devido ao senso comum de que pessoas com deficiências psiquiátricas são perigosas Segundo Toole (2002)"Às vezes é a falta de questionamento que é a gênese da lacuna de pesquisa." Devido à ausência de dados substantivos nos níveis local e nacional, de pais com deficiência, estes permanecem praticamente invisíveis, afetando a disponibilidade de recursos ou a motivação para criar novos recursos (YOUNG, 2012).
4.2. Solução para Compatibilização dos Interesses
Conforme a Tabela 01, percebe-se que, a guarda de filhos pelos pais deficientes não é aplicada no Sudeste do Brasil. E pelo número de acórdãos encontrados, observa-se que essa problemática vai além, pois sequer esse pleito é levado à apreciação do judiciário, o que torna a questão, preocupantemente, invisível e difícil de ser demudada.
Contudo, o convívio familiar é de extrema importância, tanto para a criança como para o genitor deficiente. Esse direito é “tão importante quanto o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à liberdade” (MPF, 2019).
Os laços familiares representam segurança e proteção para a criança e adolescente e impedi-los do convívio com um dos seus genitores, por alguma deficiência mental poderia, conforme análise casuística, comprometer o seu desenvolvimento. A família, no campo das ciências sociais, é considerada como unidade emocional, transformativa e afetiva de referência, exercendo um papel importante para o bem-estar e o desenvolvimento da criança e do adolescente (FIGUEIREDO, 2009).
É provável que a deficiência mental implique em redução da capacidade de exercer tarefas do cotidiano, em virtude das limitações advindas da doença ou da não inclusão social. Entretanto, não é adequado pressupor que o genitor portador de deficiência não seja capaz de exercer seus direitos e deveres em relação a seus filhos. O dever de cuidado vai muito além do cuidado pessoal e educacional, está relacionado também ao cuidado moral e social, imprescindíveis para o pleno desenvolvimento de uma criança ou adolescente.
O que se percebeu, na análise dos escassos julgados, é que a guarda é conferida ao genitor que possui melhores condições de cumprir as obrigações de cuidado com a criança ou adolescente, com a pressuposição de que o genitor com deficiência mental, em razão da patologia, não poderia adequadamente cuidar. Isso fora decidido, mas não parece ter havido, pela análise dos elementos presentes nos documentos pesquisados, uma averiguação minuciosa da limitação do genitor com deficiência ou a sua possibilidade de exercer a visita e, por consequência, a regulamentação desta.
No acórdão Ap. 10183.08.154802-0/001, publicado em 01/07/2013, do TJMG em que o relator Des. Washington Ferreira, afirma que:
Não me afastado dos autos, que demonstrou que em determinadas situações o convívio dos menores com a sua genitora deveria ocorrer sob os olhos de terceiros, de uma análise dos elementos probatórios, pude concluir que uma aproximação dos filhos com Apelante / Ré poderá trazer benefícios para todos os envolvidos neste núcleo familiar, já que inconteste o afeto dos menores pela sua mãe.
É verdade que a situação vivenciada pela genitora lhe traz angústia, agonia, inquietação, influenciando em seu quadro psíquico, por sofrer problemas de ordem mental. Portanto, uma reaproximação dos filhos, mesmo que seja mediante acompanhamento, além de contribuir para o seu equilibrado emocional, poderá assegurar a todos uma convivência saudável. (Ap. 10183.08.154802-0/001, pub. 01/07/2013, TJMG, rel. Des. Washington Ferreira). Destacamos
Mesmo diante da ponderação do Relator Washington Ferreira, de que a aproximação da mãe deficiente com seus filhos contribuiria para o seu equilíbrio emocional e asseguraria o direito de ambos ao convívio familiar, nenhum direito foi assegurado à mãe, nem mesmo uma visita assistida.
Nesse sentido, nos casos em que houver disputa de guarda e for constatado que um dos genitores possui deficiência mental, a decisão deve ser alinhada as normativas que visam à proteção dessas pessoas, ao lado do melhor interesse da criança e do adolescente. A normativa atual pressupõe a capacidade plena da PCD, tratando a incapacidade como medida de exceção e possibilitando, neste caso, a limitação da capacidade pela curatela ou pela tomada de decisão apoiada.
É possível, portanto, que a PCD seja reconhecida como capaz ou como relativamente incapaz, neste caso tendo ela um curador ou apoiador. Na hipótese de incapacidade em função da deficiência, os atos que ela não pode praticar devem ser discriminados, análise a ser feita também casuisticamente, com apoio no laudo elaborado por equipe multidisciplinar. É possível, também, que a pessoa possua uma deficiência mental e não seja nem curatelada, nem apoiada, por não ter sido judicializada a questão. Nesses casos, entende-se, considerando todos os argumentos aqui já tratados, que é no processo que se discute a guarda que deva ser analisada as limitações decorrentes da deficiência, por perícia que guarde correlação com a previsão do EPD no que tange à análise por equipe multidisciplinar.
Assim, pressupor que o genitor, pelo fato de ser portador de uma deficiência mental, teria menos condições de exercer guarda ou que não teria condições de fazê-lo, sem apresentação de nenhuma alternativa para salvaguarda dos seus direitos e interesses, é preconceito e não fundamento jurídico.
5. CONCLUSÃO
Através da discussão apresentada, percebe-se que o preconceito em relação à PCD mental é enraizado culturalmente ao ponto de ser invisível aos aplicadores do direito as reais questões que tangenciam as discussões de guarda nas ações judiciais. A PCD é vista, no imaginário social, ainda como “louco de todo gênero”, como perigoso, como imprevisível e, por isso, pressupostamente incapaz de conviver. O que talvez não se queira perceber é que a PCD possui uma patologia, passível de tratamento ou até de cura e que deve assim ser tratado. Há situações que a deficiência inviabiliza o exercício da guarda, contudo isso não pode ser pressuposto, necessita de averiguação casuística.
Assim, o que a princípio poderia ser visto como um entrechoque principiológico entre o interesse do menor, e o direito dos pais deficientes ao convívio com o filho, ao final observa-se a possibilidade de aplicação de ambos, com a devida harmonia, de modo, que seja capaz de atender à proteção familiar num todo, já que, tanto os interesses dos pais deficientes, quanto dos filhos são legítimos.
Nesse sentido, é preciso analisar cada processo, para que então, o magistrado, com auxílio de uma equipe multidisciplinar (psiquiatra, psicólogo, assistente social) possa identificar o melhor arranjo para garantir a convivência familiar.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Roselaine L. Toledo: Graduada em Direito pela Escola de Estudo Superiores de Viçosa-MG, Especializando em Direito Civil Pela Faculdade Anhanguera e Mestranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa-MG. CV: http://lattes.cnpq.br/1167948792678070. Rua José Samartine, 465, Centro, CEP: 36580-000, Teixeiras – MG. Telefone: (31) 99374-4595. E-mail: [email protected].
[2] Andréia L. Costa: Graduada em Direito pela Escola de Estudo Superiores de Viçosa-MG, Especialista em Direito do Trabalho pela Candido Mendes, UCAM; Mestre em Economia Doméstica e Doutoranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa-MG. CV: http://lattes.cnpq.br/8598802738453600. Rua Sebastião Rezende Andrade,115/102, Quinta Quimaraes, CEP: 36570-422, Viçosa – MG. Telefone: (31) 98533-8890.E-mail: [email protected]
[3] Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei. § 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. § 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. § 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. § 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
[4] Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. § 1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. § 2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. § 3º Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. § 4º A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. § 5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado. § 6º Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão. § 7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. § 8º Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. § 9º A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. § 10. O apoiador pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria. § 11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela.”
[5] A menção às modalidades de guarda – unilateral e compartilhada - tornou-se necessária para demonstrar como se realiza o convívio familiar dos pais e seus filhos, mas não se trata do objeto dessa pesquisa.
[6] O poder familiar constitui uma responsabilidade comum dos genitores, de prestar aos filhos, menores e incapazes, o necessário ao seu sustento como alimentação, vestuário, educação, moradia, lazer, saúde, nos termos dos artigos 227 da Constituição Federal e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Sendo esse poder decorrente tanto da paternidade natural como da filiação legal, e é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível, sendo suas obrigações de caráter personalíssimo (RODRIGUES, 2004)
Graduada em Direito pela Universidade federal de Viçosa-MG, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela UNIPAC-Ubá e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas, Professora Assistente de Direito Civil da Universidade Federal de Viçosa - MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MADEIRA, Débora Fernandes Pessoa. Exercício de guarda por pessoas com deficiência mental: análise das possíveis soluções do conflito entre o interesse do guardião e da criança ou adolescente que estiverem sob guarda Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2019, 05:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53306/exerccio-de-guarda-por-pessoas-com-deficincia-mental-anlise-das-possveis-solues-do-conflito-entre-o-interesse-do-guardio-e-da-criana-ou-adolescente-que-estiverem-sob-guarda. Acesso em: 23 dez 2024.
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