RESUMO: A partir do entendimento fenomenológico do Populismo Punitivo passaremos a analisar a repercussão quanto a aplicabilidade do princípio da presunção de inocência, recentemente mitigada pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: populismo punitivo; aplicabilidade do conceito de presunção de inocência, Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: From the phenomenological understanding of Punitive Populism, we will analyze the repercussion regarding the applicability of the presumption of innocence principle, recently mitigated by the Federal Supreme Court.
Keywords: punitive populism; applicability of the presumption of innocence concept, Federal Supreme Court.
SUMARIO: INTRODUÇÃO. A INVERSÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NA ERA DO POPULISMO PUNITIVO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
A definição do termo populismo punitivo far-se-á necessário tendo em vista se tratar de um conjunto de práticas discursivas de poder a alicerçar as bases estatais instrumentalizada pelas agências midiáticas, com o objetivo de manutenção do status quo do Estado como agência de controle social. A massa votante imersa no medo que atormenta e atordoa pela disseminação massiva da insegurança urbana, credita nas agências de comando o ir e vir de suas vidas. Contudo, decisões de poder que permeiam a vida dos cidadãos por vezes é desprovida de garantias constitucionais no afã do bem estar social, trazendo efeitos deletérios para o Direito Penal, cuja missão substancial e absoluta é a promoção humana.
Desse modo, necessário investigar, por exemplo, o fenômeno populista com base na inversão conceitual do Principio da Presunção de Inocência e suas implicações, trazendo a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante a permissão de antecipação do cumprimento de pena em decisão condenatória em 2ª instância[1].
O Princípio da Presunção de Inocência está presente em diversas legislações no Brasil e no mundo, podendo destacar a presença do principio insculpida na Declaração Universal dos Direitos do Homem no art. 11 que diz “ todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” (ONU, 1948, p. 7). Ademais, o Pacto San José da Costa Rica, em seu art. 8º, item 2 estabelece que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa […]” (BRASIL, 1992). No Brasil, o princípio também está positivado no art. 5º, LVII, CRB – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (BRASIL, 1988).
Da aplicabilidade do princípio emanam três regras basilares: a) regra probatória: cabe a quem acusa o ônus de provar legalmente e judicialmente a culpabilidade do acusado. Não existe confissão ficta no Processo Penal; b) regra de tratamento: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória e c) regra de excepcionalidade das medidas cautelares, devem estar presente o caráter excepcional e urgente de forma a se evitar uma antecipação da aplicação da pena.
Recentemente, subvertendo o conceito da presunção de inocência, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 152752[2], por maioria dos votos, entendeu sobre a possibilidade de execução provisória da pena após a confirmação da condenação em 2ª instância, ainda que pendente recurso. Segundo destacou, por exemplo, o Ministro Roberto Barroso[3]
“os efeitos negativos trazidos pela posição contrária, adotada pelo STF entre 2009 até 2016, sobre o tema da prisão provisória, que, a seu ver, incentivou a interposição infindável de recursos protelatórios para gerar prescrição, impôs a seletividade do sistema ao dificultar a punição dos condenados mais ricos e gerou descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade”
O Ministro Barroso criticou os recursos positivados no sistema, chamando-os de ‘protelatórios’ e ainda chamou o Direito Penal de seletista ao argumento de que os ricos também merecem ficar presos no país. Contudo, não podemos deixar de aplicar um princípio assegurado pela Constituição sob o fundamento da morosidade da justiça (em julgar os inúmeros recursos), pois senão cairíamos no erro crasso e paradoxal de justificar a inefetividade do sistema se escusando de cumprir o próprio sistema[4]. Que o Direito Penal é seletista não há duvidas – mas não se soluciona essa característica retirando as garantias constitucionalmente asseguradas –, pois se assim o fizer, os mais afetados serão, inevitavelmente, as classes oprimidas pelo sistema que têm que suportar, por exemplo, os custos processuais ou a falta de estrutura das Defensorias Públicas e, por conseguinte, os efeitos deletérios do processo penal. Nesse sentido, a seletividade se repercute na massa carcerária, composta de sobremaneira, por pessoas com baixo poder econômico e social, que não conseguem lidar com as misérias de um sistema usurpador de direitos e genocida, alcunhado por Zaffaroni de “realismo marginal”.
Se perseguem os excedentes sociais que não geram renda e nem estabilidade pro Estado – são indivíduos tolhidos da oportunidade de experimentar o estado de inocência desde a abordagem policial. Sobre tais indivíduos já se impõe uma punição desde a captura – pois, sobre eles há censura, vergonha e a própria reafirmação das estruturas sedimentadas de poder.
Na Era do Populismo Punitivo em que impera a mentalidade encarceradora, não estamos lidando com o direito de punir e sim com o poder de punir, em que a pena é para mostrar a própria eficiência do sistema. A pena retratada é entendida no sentido amplo e subjetivo. Não significa tão somente a pena em concreto, mas todo o aparato sistêmico de poder exercido sobre indivíduos sujeitos a uma provável punição (pena in abstrato).
A inversão do princípio da presunção de inocência se insere neste contexto – sob as bases da estrutura pós-moderna de um Direito Penal seletivo, conforme menciona PAVARINI e GIAMBERARDINO (2018):
O crescimento da "multidão de excluídos, tanto de mercado de trabalho como dos serviços assistenciais enfraquecidos, torna cada vez mais impraticável politicamente o projeto de uma ordem social construída em torno à inclusão. Trata-se da era do miserável declínio da ideologia reeducativa e da emergencia e triunfo das políticas de controle social fundadas na fé na práxis da neutralização seletiva, coerentemente à linguagem da guerra ao inimigo interno. (PAVARINI e GIAMBERARDINO, 2018, p. 43).
O aparato penal na forma apresentada se traduz como fabricante de criminosos, fomentado pelas agências midiáticas detentoras de um discurso populista que repercute no sistema prisional brasileiro.
A função do princípio da presunção de inocência não é inocentar, mas selecionar quem será presumidamente taxado como culpado. Por isso, nessa acepção, durante a persecução penal ninguém deve ser presumidamente inocente, mas tampouco presumidamente culpado, pois soaria como uma medida estatal autoritária. Dessa forma, inocente não se pode afirmar; logo, melhor será imputá-lo[5]como não-culpável. Corroborando com esse pensamento ALEIXO e PENIDO (2018) mencionam:
Subvertendo a lógica dos direitos e garantias enquanto protetivos dos sujeitos, opera-se a sua inversão para defender que mais direitos sejam ceifados, já que o primeiro – a ampla defesa – não é implementado em sua integralidade a todos indistintivamente. (ALEIXO e PENIDO, 2018, p. 121).
E ainda complementam:
Nota-se que o STF assume com veemência o lugar de sublocador do desejo social falando em nome de uma sociedade fichamento presumida para dizer quais direitos serão retirados dela própria em nome de um bem maior. Não obstante, essa busca de “escopos metajurídicos” não pode justificar a violação do princípio acusatório vez que este é o primeiro traço distintivo entre modelos processuais democráticos e autoritários. (ALEIXO e PENIDO, 2018, p. 145)
Por todas essas razões é preciso entender que o princípio da presunção de inocência deve ser aplicado em sua integralidade, não devendo se render à protagonismos judiciais que subvertem o seu valor para robustecer as bases punitivas estatais, que pressionado (interna e externamente por suas agências de controle), pugnam por uma avalanche de punições, encarceramentos e justiça sumária como se remédio de todos os males sociais fossem. O Direito, principalmente, o Direito Penal, que lida com os valores pungentes dos indivíduos, deve agir obstinadamente para a promoção humana, devendo conter o direito de punir e, de forma assecuratória, garantir a realização de direitos.
CONCLUSÃO
A repercussão do fenômeno do populismo punitivo na inversão da presunção de inocência se traduziu no aniquilamento do estado de inocência dos indivíduos. A noção de populismo evoca a manipulação ostensiva das massas não-culpáveis - jamais inocentes! –, até que se prove o contrário.
Não podemos vilipendiar uma garantia constitucional sob o argumento utilitarista de combate à impunidade. Não há ponderação a se fazer quando o que se está em jogo é um valor supraindividual que é a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Assim está descrito no mandamento constitucional e dessa forma é que deve ser cumprindo. Não podemos nos eivar de solipsismos judiciais e destruir o sistema acusatório apregoado pelo Estado Democrático de Direito.
O Direito Penal não é jogo de cartas e não pode ser aplicado por malabarismos judiciais advindo dos Tribunais Superiores pressionados pelas agências midiáticas. Antecipar o cumprimento da pena em 2ª instância é confundir trânsito em julgado com condenação; é tratar como sinônimo ‘inocência’ e ‘não-culpável’, é subverter a ordem e tornar o poder decisório dos Tribunais Superiores inócuo, pretendendo reconhecer que o interesse punitivo é mais importante que o interesse na liberdade dos indivíduos.
REFERÊNCIAS
ALEIXO, Klelia Canabrava. PENIDO, Flávia Ávila. Execução penal e resistências. Belo Horizonte, 2018, Editora D’Placido.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Habeas Corpus nº 152752. Relator: Ministro Edson Fachin. Notícias STF. Disponível em www.stf.jus.br/portal/cm/s/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=374437 . Acesso em 31 de julho de 2019.
BRASIL. Decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm
__________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
PAVARINI, Massimo. GIAMBERARDINO, André. Curso de Penalogia e execução penal. 1 Ed. - Florianópolis (SC), 2018. Ed. Tirant lo Blanch.
UNIDAS, Organização das Nações. Declaração Universal dos Direitos do Humanos. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo, 2004, Editora Revista dos Tribunais.
——————. La cuestión criminal. Buenos Aires, 2013, Planeta.
——————. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro, 1991, Editora Renavan.
[1] Supremo Tribunal Federal. Pleno. Habeas Corpus nº 152752. Relator: Ministro Edson Fachin. Notícias STF. Disponível em www.stf.jus.br/portal/cm/s/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=374437 . Acesso em 31 de julho de 2019.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Habeas Corpus nº 152752. Relator: Ministro Edson Fachin. Notícias STF. Disponível em www.stf.jus.br/portal/cm/s/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=374437 . Acesso em 31 de julho de 2019.
[3] Idem.
[4] Pode parecer redundante, mas é como dizem no brocardo popular: “não se justifica um erro com outro”. Não podemos inferir que a morosidade da justiça é um erro capaz de fundamentar a inaplicabilidade do princípio da presunção de inocência (cometer outro erro).
[5] O sentimento é exatamente esse quando não podemos presumir a inocentabilidade de alguém – neste caso, apontamos o dedo (com chantilly) para dizermos que é um não-culpado. Entender a presunção de inocência como sinônimo de não-culpabilidade é uma atitude canhestra no intuito de mascarar um sistema carreado de estigmas e etiquetamentos sociais. Dizer que uma pessoa que sofre uma persecução penal não pode ser considerada inocente, prima face, traduz um estado autoritário e rudimentar.
Delegada de Polícia de Minas Gerais; Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes – RJ; Professora da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais. Cursando disciplina isolada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais na linha de pesquisa ‘Intervenção Penal e Garantismo’.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Alessandra Alvares Bueno da. A inversão da presunção de inocência na era do populismo punitivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 ago 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53367/a-inverso-da-presuno-de-inocncia-na-era-do-populismo-punitivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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