RESUMO: A partir da contextualização da criação da dogmática penal e os desdobramentos que resultaram no surgimento da Teoria do Garantismo Penal, busca-se entender a limitação do poder punitivo estatal sob o enfoque do axioma 4 de Ferrajoli, denominado Princípio da Lesividade - nulla necessitas sine insjuria.
Palavras-chave: dogmática penal; garantismo penal; poder punitivo; princípio da lesividade.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. A FINALIDADE DA TEORIA DO GARATISMO PENAL. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE: Conceito, Função e Fundamento axiológico do princípio. AS QUATRO VERTENTES DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE. DISCUSSÃO ACERCA DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO. CONCLUSAO.
INTRODUÇÃO
No contexto da criação do Direito Penal como um método que se pretendia científico, a dogmática penal foi sendo construída a partir do surgimento das práticas criminosas analisadas casuisticamente no século XIII – a partir de um Direito Penal público romano produto da atividade criativa dos pretores que julgavam ao alvedrio de parâmetros penais e processuais penais[1].
Contudo, a partir do século XIX, a construção metodológica da dogmática penal foi necessária com o objetivo de limitar a violência, tornando-se a teoria do crime um produto genuinamente cientifico, que começou a ser teorizado a partir do período marcado pelos pós-glosadores com Tiberius Deciano:
Nos séculos XVI, época final dos pós-glosadores, período chamado mos italicus tardio, Tiberius Deciano, com base em Aristóteles, busca responder à seguinte pergunta: quais são as causas primeiras de um crime? [...] eis aí o embrião da parte geral do direito penal. (BRANDÃO, 2019. p. 33)
A partir do século XVIII e XIX, com a necessidade fixar parâmetros restritivos à violência, – limitando o poder de punir do Estado, lastreado nos ideários iluministas, eis que surge a sistematização do princípio da legalidade[2], com a Obra de Beccaria “Dos Delitos e das Penas” (1764). Ou seja, só poderia existir crime e pena se houvesse lei anterior que definisse aquele fenômeno como tal[3]. Dessa forma, no afã contínuo de limitar o poder punitivo, já em meados do século XIX, Binding e Birbaum formularam o conceito de bem jurídico[4]. Tal conceito sofreu várias redefinições durante a criação da dogmática penal, sem contudo perder o fim que lhe é precípuo: limitar o poder de punir. Desse modo, podemos citar Edmund Mezger que definiu o bem jurídico como o valor objetivo protegido pela lei penal[5].
A construção da dogmática penal foi se desenvolvendo ao longo do século XIX e XX, até chegarmos o desenvolvimento completo da Parte Geral do Código Penal que trazia em bojo a estrutura da Teoria da Crime como um fato típico, ilícito e culpável, sendo que toda manifestação e aplicabilidade do Direito Penal, como um fenômeno genuinamente violento, deverá ser manifestado sob a égide dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, garantido pela Constituição do Estado-Nação na qual o sujeito ativo do delito estaria inserido.
No decorrer da dogmática penal várias teorias foram sendo criadas para sustentar todo o arcabouço normativo e principiológico que circundava o Direito Penal como ciência jurídica. Dentre várias teorias, o estudo da Teoria do Garantismo Penal, cujo precursor foi Luigi Ferrajoli, far-se-à necessário, pois a finalidade da teoria foi justamente coibir o poder punitivo do Estado.
O elemento conjectural-histórico que desencadeou o desenvolvimento de toda teoria garantista circunda o período compreendido entre as décadas de 60 a 80, denominado na Itália como “anos de chumbo”, caracterizado como uma onda crescente de ataques terroristas que infligiu o país naquele período. O governo italiano no intuito de conter os ataques, decretou uma série de leis emergenciais que tinham como objetivo o combate ao terrorismo. Tais leis, que eram de caráter extremamente rígidas, acabaram colidindo com os direitos e garantias fundamentais conquistados anteriormente. Nesse conjuntura, Luigi Ferrajoli, iniciou o combate a esse regime autoritário, resgatando princípios penais e processuais penais esquecidos. A consequência disso, foi a criação da Teoria do Garantismo Penal.
A FINALIDADE DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL
Basicamente, Ferrajoli propôs em sua teoria a edição de 10 (dez) axiomas, ou seja, valores supremos a serem seguidos à risca para que o operador do Direito pudesse assegurar os direitos e as garantias aos indivíduos submetidos à violência, que por excelência, é a aplicabilidade do Direito Penal. O fundamento do Estado de Direito é a sua Constituição e a aplicação efetiva dos postulados que a regem. Desse modo, a finalidade da teoria é coibir os abusos no direito de punir perpetrados pelo Estado, garantindo aos cidadãos os direitos constitucionalmente postulados, por meio de princípios norteadores que irão conduzir a aplicação do Direito Penal.
Ante o exposto, e submetendo a Teoria do Garantismo Penal a um recorte, passamos a expor o quarto axioma de Ferrajoli – Princípio da Lesividade (Nulla necessitas sine insjuria) e as digressões acerca da limitação do poder de punir do Estado face a aplicabilidade do princípio:
[...] Para que se possa proibir e punir comportamentos, o princípio utilitário da separação entre Direito e Moral exige, como igualmente necessário, o fato de que os mesmos ofendam concretamente bens jurídicos alheios, cuja tutela é a única justificação das leis penais enquanto técnicas de prevenção daquelas ofensas. O Estado, com efeito, não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem mesmo promover-lhes, de forma coativa, a moralidade, mas, somente, tutelar-lhes a segurança, impedindo que os mesmos causem danos uns aos outros”. (FERRAJOLI. 2014. p. 208)
PRINCÍPIO DA LESIVIDADE: CONCEITO, FUNÇÃO E FUNDAMENTO AXIOLÓGICO DO PRINCÍPIO
O princípio da lesividade pode ser definido sob o fundamento de que somente pode haver criminalização de condutas que constituam lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico alheio. Dessa forma, impõe-se tolerância jurídica a toda atitude ou conduta não lesiva a terceiros, vedando proibição de condutas meramente imorais, pois a confusão entre o direito e a moral não favorece o Direito e nem auxilia a moral.
O princípio da lesividade visa fundamentar um direito penal mínimo de forma laica e jurídica, orientado para defesa dos mais frágeis por meio da tutela de direitos considerados necessários e fundamentais.
A consequência deste princípio é impor maior tutela a liberdade pessoal de consciência e da autonomia. Nesse sentido, Ferrajoli aduz: “a intervenção punitiva é a técnica de controle social mais gravosamente lesiva da liberdade e da dignidade dos cidadão [...]” (FERRAJOLI, 2014. p. 427). Ademais, visa fundamentar um direito penal mínimo de forma laica e jurídica, orientado para defesa dos mais frágeis por meio da tutela de direitos considerados necessários e fundamentais.
Por fim, o fundamento axiológico do princípio é a própria inserção num dos elementos constitutivos do delito – qual seja: a natureza lesiva do resultado.
AS QUATRO VERTENTES DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE
Como vertente basilar do princípio, veda-se a incriminação do pensamento. Welzel dizia que o crime nasce na mente do agente. É a cogitatio, que não é punida em razão desse princípio. Dessa forma, via de regra, é vedada a punição de atos preparatórios no Direito Penal. Além disso, denominamos como segunda vertente do princípio a proibição da incriminação de condutas que não transcendem o próprio agente. Por isso, a autolesão não é punida. Ademais, também é proibida a incriminação de simples estados existenciais de determinada pessoa, ou seja, não se pune ninguém pelo o que ele é (p.ex.ladrão), mas sim pelo o que ele fez (p.ex. subtraiu). Assim, o Direito Penal não é do autor e sim do fato. Por fim, é vedado condutas que não afetem, concretamente, qualquer bem jurídico protegido pelo Direito Penal.
DISCUSSÃO ACERCA DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O questionamento que se faz presente concerne a exposição da quarta vertente do princípio da lesividade conforme descrito acima, pois veda criminalizar condutas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado pelo Direito Penal.
Diante disso, é imperioso inquirir como podemos determinar a lesão, a natureza e quantificar o dano que impõe a necessidade da proibição jurídica (pena) aos delitos de perigo abstrato, ou seja, a conduta que não lesionem e não expõem a perigo concreto de lesão nenhum bem jurídico? Como exemplo podemos citar os tipos penais presentes no Ordenamento de duvidosa constitucionalidade: Embriaguez no volante – art. 306, CTB; Participação em via pública de corrida, disputa, etc – art. 308, CTB; Envenenamento de agua potável ou de substancia alimentícia ou medicinal – art. 270, CP; Corrupção de água potável – art. 271, CP; Omissão de alerta aos consumidores quanto à nocividade ou periculosidade de produtos já colocados no mercado – art. 68 da Lei 8078/90; Dia do Pendura – art. 176, CP e Consumo de Drogas – art. 28 da Lei. 11.343/2006.
Nesse sentido, a doutrina, principalmente alemã, tem discutido a respeito de um conceito político-criminal de bem jurídico, pois incriminações aparentemente imorais não tutelam bem jurídico algum, sendo portanto ilegítimas. De outro modo, e respeitando a Teoria do Garantismo Penal apregoada por Ferrajoli, deve-se entender que é preciso definir bem jurídico com arrimo na Constituição, devendo ainda tal definição ser mais restrita que os valores constitucionais, com o objetivo de tutelar bens jurídicos indispensáveis, na esfera que nenhum outro ramo do Direito poderá alcançar, pois senão cairíamos na excrescência de tutelar penalmente os interesses, por exemplo, do Colégio Dom Pedro II (art. 242, parágrafo 2º da Constituição Federal de 1988).
CONCLUSÃO
É impossível entender o contexto de criação da dogmática penal sem investigar o momento histórico na qual o fenômeno está inserido. É relevante entender que toda a teorização partiu dos crimes em espécie (que aconteciam de forma prática – a partir das relações sociais entre os indivíduos) para a sistematização da dogmática penal como um método cientifico - parte geral. Além disso, a partir do momento em que rupturas políticas aconteceram, o reflexo no poder político estatal é inexorável e o Direito Penal teve que se reinventar por meio de mecanismos (dentre eles, teorias) capazes de tutelar os interesses dos indivíduos em sociedade.
Nesses moldes ocorreu com os “anos de chumbo” italiano, fazendo com que o professor Luigi Ferrajoli criasse um sistema teórico com determinados postulados a serem seguidos no afã de proteger o ‘criminoso’ contra o Estado, protegendo-o da vingança privada; mas também, tutelando a sociedade em desfavor de pessoas que cometem crimes. Assim, buscou-se metodizar por meio da razão a força bruta.
Com a aplicabilidade do princípio da lesividade, só haverá necessidade de punição se houver ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado, sendo que essa lesão só será produto da ação humana e não de meros estados existências. Dessa forma, coibimos um Direito Penal classista e seletista, que persegue e pune a pessoa pelo que ele é, e não pelo o que ela realmente faz.
Contudo, é evidente que os desafios do garantismo penal são enormes, pois o que se verifica nos dias atuais é um Estado com viés autoritário, mas com uma roupagem de Estado de Direito, que na verdade luta para que os excedentes sociais, isto é, os indivíduos não lucrativos em sociedade, sejam perseguidos e punidos, passando a normatizar crimes de perigo abstrato, estados existenciais e delitos de mero comportamento. A conjectura dessa inversão dogmática é fomentada por estados de urgências incentivados pelo Estado, instrumentalizado pelas agências midiáticas, causando temor na população que consequentemente pugna pelo encarceramento em massa dos indivíduos etiquetados como “maus” – subvertendo toda lógica trazida pela Teoria do Garantismo Penal.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1. Ed. São Paulo: Martin Claret, 2000.
BRANDÃO, Claudio. Teoria Jurídica do Crime. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccvil_03/constituicao/constituicao.htm
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014
[1] BRANDÃO, Claudio. Teoria Jurídica do Crime. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.33.
[2] nullum crimen, nulla poena sine lege.
[3] Sistematizado pela obra de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria.
[4]Para Binding, bem jurídico é uma criação livre do legislador, por meio da qual tem liberdade de escolher a partir da norma, quais objetos serão merecedores da tutela penal, uma vez que o delito é uma ofensa a um direito de obediência estatal.
[5] Apud: BRANDÃO, Claudio. Teoria Jurídica do Crime. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.48.
Delegada de Polícia de Minas Gerais; Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes – RJ; Professora da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais. Cursando disciplina isolada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais na linha de pesquisa ‘Intervenção Penal e Garantismo’.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Alessandra Alvares Bueno da. O contexto da criação do garantismo penal como teoria limitadora do poder punitivo do Estado sob a ótica do princípio da lesividade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2019, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53429/o-contexto-da-criao-do-garantismo-penal-como-teoria-limitadora-do-poder-punitivo-do-estado-sob-a-tica-do-princpio-da-lesividade. Acesso em: 23 dez 2024.
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