RESUMO: O presente artigo, por meio de uma abordagem que toma os direitos fundamentais constitucionais como baliza, trata da possibilidade de investigação genética daqueles sujeitos que possuem filiação socioafetiva consolidada. Para este mister, questiona-se se o conhecimento da origem biológica pode ser considerado um direito fundamental. Ainda, analisa-se como solucionar eventual conflito entre o direito ao descobrimento da identidade genética pelo filho e o direito à intimidade, privacidade e integridade física do pai quando este se recusa a realizar o exame de DNA.
Palavras-chave: investigação genética; paternidade socioafetiva; direitos fundamentais.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Direitos Fundamentais; 3. Direito fundamental ao descobrimento da origem genética; 4. Filiação socioafetiva e descobrimento da origem genética; 5. Direito ao conhecimento da origem genética do filho em conflito com o direito à integridade física do pai; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.
1) INTRODUÇÃO
A centralidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 fez com que se erigissem direitos tidos como mínimos para uma vida digna. São os direitos fundamentais, que colocam em evidência a figura dos indivíduos, que passam a ser a razão de existir dos Estados.
Dentre esses direitos, há o denominado direito ao descobrimento da origem genética, consistente no conhecimento da ascendência dos indivíduos. Este direito se mostra intimamente vinculado aos direitos da personalidade, ao direito de se saber quem é e de onde se veio, além de poder se relacionar com a própria proteção à saúde desses indivíduos.
O presente artigo visa investigar as bases de sustentáculo da investigação genética enquanto direito fundamental, bem como a possibilidade da sua garantia mesmo naqueles casos em que existente filiação socioafetiva. Para tanto, se analisará, ainda, a existência de conflito entre o direito à integridade física e intimidade do pai frente ao direito de personalidade do filho que almeja descobrir sua ascendência genética.
2) DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988, seguindo a chamada “virada kantiana”, com o posicionamento dos indivíduos no centro da preocupação dos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, estipulou como seu vetor axiológico a garantia e proteção da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, estabeleceu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa (art. 1º, III). O indivíduo, neste cenário, passa a ser protagonista e destinatário da ação do Estado e do Direito. O Estado passa a existir em razão da pessoa humana, e não o contrário.
Segundo Kant, tudo teria um preço ou uma dignidade. Neste sentido, as coisas que se acham acima de todo o preço e que não admitem substituição, teriam dignidade. A dignidade da pessoa humana seria, portanto, essa qualidade intrínseca do homem, decorrente da sua mera condição humana, e que o torna possuidor de um fim em si mesmo. Segundo Ingo Sarlet (2009, p. 27):
[...] tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Direitos fundamentais, por sua vez, para além de serem aqueles previstos na Constituição como tal, são aqueles direitos que têm como eixo central a proteção da dignidade da pessoa humana. Ao erigir a dignidade da pessoa humana como alicerce do sistema constitucional e, por consequência, de todo ordenamento jurídico, a Constituição Federal de 1988 privilegiou os direitos fundamentais e reconheceu que todos os seres humanos são merecedores de um mínimo de direitos, que devem ser reconhecidos e protegidos.
O diploma constitucional elenca diversos direitos fundamentais a uma existência digna dos indivíduos (tais como o direito à vida, à liberdade, à imagem, à intimidade, à saúde, etc.). Não obstante, além da Carta Magna ter trazido cláusula de abertura (art. 5º, §3º), o próprio fato da dignidade da pessoa humana consistir em fundamento da República (art. 1º, III) possibilita a tutela dos direitos fundamentais (necessários à garantia da dignidade da pessoa humana) ainda não que não nominados expressamente na legislação nacional. Neste sentido é que se torna possível defender a existência de direito fundamental ao conhecimento da origem genética, ainda que a legislação pátria ainda não tenha regulamentado o assunto. Trata-se de direito fundamental da personalidade, conforme se demonstrará no tópico seguinte.
Ademais, há proteção no direito internacional e no direito comparado. Segundo Hammerschmidt (2008, pág. 97):
O direito a intimidade genética encontra seu fundamento em diversos textos internacionais, a saber: a Declaração Universal sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos da Unesco (art. 7º); o Convênio relativo aos Direitos Humanos e Biomedicina do Conselho da Europa, realizado em Oviedo, em 04.04.1997 (art. 10º); e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, aprovada na Conferência Geral da Unesco, em 16.10.2003 (art.14ª), entre outros.
No Direito alemão, o Tribunal Constituicional, em decisão de 1994, reconheceu o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, mas sem efeitos sobre a relação de parentesco: é o chamado “Direito ao conhecimento das Origens”.
3) DIREITO FUNDAMENTAL AO DESCOBRIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA
A identidade genética, segundo Hammerschmidt (2008, p. 48), corresponde ao genoma de cada ser humano e às bases biológicas de sua identidade, e que decorrem de sua ascendência. Apenas com os avanços científicos e com a descoberta do exame de DNA é que se tornou possível aferir com precisão científica os verdadeiros progenitores de alguém.
O direito ao conhecimento da origem biológica diz respeito ao interesse manifestamente legítimo que todo ser humano possui de saber de onde veio (AULER, 2011). Esse conhecimento pode ter (e geralmente tem) uma enorme importância no desenvolvimento da própria pessoa, pois contribui para a formação da sua identidade. Canotilho e Vital Moreira (2007. p. 462) aduzem que a identidade pessoal se traduz nos elementos que identificam a pessoa como indivíduo, singular e irrepetível, abrangendo, portanto, além do nome, o direito à historicidade pessoal, que abarca o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores.
Por esta razão, o direito ao conhecimento da origem genética pode ser enquadrado como um direito da personalidade, pois saber da onde se veio e, em última medida, quem se é, se relaciona com a própria realização do indivíduo enquanto pessoa, o que não pode ser dissociado de sua dignidade. De acordo com Petterle (2007, p.111), “o direito à identidade genética é um direito de personalidade que busca salvaguardar o bem jurídico-fundamental ‘identidade genética’, uma das manifestações essenciais da personalidade humana, ao lado do já consagrado viés do direito à privacidade e do direito à intimidade”.
Conforme os ensinamentos de Almeida (2004, p. 105) “saber quem gerou o indivíduo, tanto o pai quanto a mãe, integra a existência do ser humano em seu mundo individual e no mundo coletivo, sendo que compõe a natureza da alma”. Ademais, o reconhecimento da origem genética também tem importância em casos de doenças somente solucionáveis através de compatibilidade consanguínea.
Ressalte-se que o direito ao conhecimento da origem biológica se difere do direito à filiação. O direito à filiação é o que estabelece um liame jurídico entre o filho e quem assume os deveres da paternidade (LÔBO, 2006, p. 797). Da filiação decorrem outros direitos, tais quais direito ao nome e a alimentos, além dos deveres de assistência decorrentes da relação de parentesco. Hoje é assente que a filiação não se funda exclusivamente na origem genética, sendo orientada principalmente pela afetividade nas relações intersubjetivas, pautadas pela convivência familiar.
Assim, o direito de filiação pode decorrer do nascimento, mas pode também decorrer do vínculo de afetividade que motiva a construção das famílias e o consequente registro como filhos de indivíduos que não partilham seu sangue biológico. Portanto, a filiação não se confunde com o direito que cada pessoa tem de conhecer sua origem genética. Tratam-se de direitos com fundamentos, conteúdos e efeitos bastante distintos. Segundo Paulo Luiz Netto Lobo (2003, p.151-153):
O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao reconhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram. [...] Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). [...]
Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie do direito à vida, pois os dados da ciência apontam para a necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para a prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por doador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga. São exemplos como esses que demonstram o equívoco em que laboram decisões que confundem investigação de paternidade com direito à origem genética.
Sobre o assunto, há acórdão paradigmático do STJ, de lavra da ministra Nancy Andrighi, a seguir transcrito em suas partes mais relevantes ao presente estudo:
STJ. Recurso Especial 833.712
(...)
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal.
Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica.
Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar “adotivo” e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico.
Ainda, segundo decisão do Ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 900521, “não devem ser impostos obstáculos de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética”.
4) FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E DESCOBRIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA
Não há maiores divergências e conflitos na doutrina quanto á definição do que seja relação de parentesco. Maria Helena Diniz (2008, p. 431), por todos, prevê que se trata da “relação vinculatória existente não só entre pessoas que descendem umas das outras ou de um mesmo tronco comum, mas também entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro, entre adotante e adotado e entre pai institucional e filho socioafetivo”.
Segundo a doutrina, há três critérios para se definir a filiação: o jurídico, o biológico e o afetivo. Na acepção jurídica, filho é aquele que a lei presume como sendo filho do pai e da mãe. A filiação biológica, por sua vez, é aquela que leva em conta a ligação genética existente entre pais e filhos. O critério afetivo, por sua vez, é aquele que “emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade” (LÔBO, 2004). Trata-se de “um parentesco psicológico da filiação afetiva” (DIAS, 2007, p. 333).
Os artigos 1.609 e 1.610 do Código Civil preveem que o reconhecimento da filiação – ainda que socioafetiva – é irrevogável. Ademais, o art. 1.604, também do CC/02, prevê que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Além destes, há ainda o art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê que a adoção é irrevogável.
Surge então o questionamento acerca da possibilidade do conhecimento da origem genética naqueles casos em que a criança possui pai socioafetivo reconhecido. E, ainda, acaso possível, se esse descobrimento da origem biológica desconstitui eventual vínculo socioafetivo.
Analisando caso análogo (adoção à brasileira), doutrina e jurisprudência são assentes acerta da irrevogabilidade da paternidade socioafetiva, em decorrência do direito da criança à convivência família (art. 227, CF/88). Segundo Welter (2009, p. 236):
A irrevogabilidade da filiação afetiva é proclamada como a declaração de vontade tendente ao reconhecimento voluntário da filiação, admitindo alguém ser o pai ou a mãe de outra pessoa, uma vez aperfeiçoada, torna-se irretratável. A exemplo do que ocorre com os demais atos jurídicos, a invalidação pode verificar-se em razão de erro, dolo, coação, simulação ou fraude.
Sintetizando o entendimento de diversos Tribunais de Justiça dos Estados, bem como do Superior Tribunal de Justiça (STJ), colaciona-se um julgado bastante claro, oriundo do TJSC:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DESCONSTITUIÇÃO DA FILIAÇÃO PELA NULIDADE DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO E CONSCIENTE DA PATERNIDADE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO INEXISTENTE. REALIZAÇÃO DE TESTE DE PATERNIDADE POR ANÁLISE DE DNA. EXCLUSÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. IRRELEVÂNCIA. EXISTÊNCIA DE SÓLIDO VÍNCULO AFETIVO POR MAIS DE 23 ANOS. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA. DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE VEDADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. É irrevogável e irretratável a paternidade espontaneamente reconhecida por aquele que tinha plena consciência de que poderia não ser o pai biológico da criança, mormente quando não comprova estreme de dúvidas, vício de consentimento capaz de macular a vontade no momento da lavratura do assento de nascimento. A filiação socioafetiva, fundada na posse do estado de filho e consolidada no afeto e na convivência familiar, prevalece sobre a verdade biológica. (50504 SC 2011.005050- 4, Relator: Fernando Carioni, Data de Julgamento: 10/05/2011, Terceira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: 5/6/2011. Apelação Cível n. 2011.005050-4, de Lages).
Realizando-se analogia com o caso ora em questão, a doutrina sustenta que a descoberta da real identidade genética em nada altera a paternidade socioafetiva, que prossegue válida, posto que irrevogável acaso indene de vícios do consentimento. Isto ocorre porque o direito ao reconhecimento da origem genética se difere da relação de parentesco, já que visa tão somente assegurar a certeza da origem genética. Assim, o descobrimento da identidade biológica não importa em desconstituição de eventual filiação socioafetiva.
Segundo Lôbo (2004), “a origem biológica não é mais fundamental para legitimar a filiação, pois a filiação socioafetiva quando plenamente comprovada, sobrepõe-se à origem genética. Considera-se como direito de personalidade o conhecimento da ascendência genética, pois este direito está relacionado com a pessoa em si.
Nos dizeres de Almeida (2004, p. 107): “Para buscar saber a origem genética, o indivíduo, em algumas vezes, tem apenas objetivo de saber para fins psicológicos ou em casos de doenças, por exemplo, não tendo somente interesse econômico, tendo em vista que hoje a paternidade socioafetiva quando devidamente comprovada, prevalece sobre a paternidade biológica”.
Segundo Maria Berenice Dias (2007, p. 441), em síntese:
“O direito de conhecer a verdadeira identidade integra o conceito de dignidade da pessoa humana. No entanto, gerando a adoção vinculo de filiação socioafetiva, a declaração de paternidade não surte efeitos registrais, o que impede benefícios de caráter econômico. De qualquer forma, é possível obter a declaração de paternidade genética sem desconstituir a filiação gerada pela adoção”.
Portanto, conclui-se que é sim possível intentar o descobrimento da identidade genética ainda quando haja filiação socioafetiva. Isto porque o direito à origem genética, corolário do direito da personalidade, visa tão somente conhecer a verdadeira identidade, não gerando quaisquer efeitos registrais ou civis, acaso já existente a paternidade socioafetiva reconhecida.
5) DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA DO FILHO EM CONFLITO COM O DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA DO PAI
Um conflito surge quanto o suposto pai se nega a se submeter ao exame de DNA que ensejaria o conhecimento da identidade genética do filho, opondo-se, de um lado, o direito à integridade física e intimidade do pai e, de outro, o direito do filho ao conhecimento da sua ascendência genética. Como nenhum direito é absoluto, havendo colisão entre direitos fundamentais, impõe-se a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Nas ações de investigação de paternidade, que visam tão somente assegurar o estado de filiação, o entendimento dos Tribunais Superiores e da doutrina é no sentido de que em havendo recusa na realização do exame, não seria possível a condução coercitiva do suposto pai, resolvendo-se o impasse com a aplicação da presunção legal de paternidade do pai que se recusa ao exame (Súmula 301, STJ), com todos os efeitos daí decorrentes.
Ocorre que, como já enunciado, as ações de identificação de ascendência genética não se confundem com as ações de investigação de paternidade. Como aquelas visam tão somente o reconhecimento da origem genética, sem vínculo com o estado de filiação, eventual presunção jurídica não lhe interessa. Isto se dá porque a ação de identidade genética visa exatamente a uma obrigação de fazer – realizar o exame de DNA –, e não a constatação de um estado de filiação por meio da presunção. Por esta razão, tem-se que a negativa da realização do exame, ou mesmo a aplicação da presunção, implicaria em sacrifício total do direito do filho à investigação genética, não suportando, portanto, à aplicação do princípio da proporcionalidade.
Assim é que a doutrina mais moderna defende a possibilidade de condução coercitiva do pai que se recusa ao exame de DNA, em aplicação à regra geral de que, nas ações de obrigação de fazer, o juiz pode determinar as providências necessárias ao cumprimento da obrigação (art. 461, do Código de Processo Civil). Com efeito:
A personalidade é direito natural e constitucional, que precede a mera negativa do investigado, pois o direito de ser reconhecido como filho é um destes poucos direitos aos quais se pode aplicar, sem excesso, e sem hipérbole, a qualidade de ‘sagrado’, [...] trata-se da própria identidade biológica e pessoal – uma das expressões concretas do direito à verdade pessoal. Pelo mesmo fundamento, o investigado também tem o direito de humanidade que é o de não ser responsabilizado pela paternidade se de fato não for pai. [...] Seria por demais desumano e vexatório admitir-se que o direito material ou processual – que não são um direito natural e imutável, e sim circunstancial – pudessem impedir a verdadeira paternidade pela insuficiência de provas, justamente devido à negativa do investigado em se submeter à perícia. (WELTER, 2001, p.25).
O direito de conhecer o pai biológico é, como visto, um direito da personalidade intimamente ligado à dignidade pessoal. E a presunção da paternidade ante a recusa em realizar o exame de DNA, se tem relevância para fins de filiação e para fins patrimoniais, não é relevante quando o que se visa tutelar são direitos da personalidade e da dignidade.
A ação de conhecimento de origem genética versa sobre uma obrigação de fazer infungível, que não visa atribuir a paternidade ao genitor biológico, e nem mesmo interferir nas relações de família. Assim, o cerne da prestação a ser efetivada pelo réu é justamente a obrigação de fazer consubstanciada na realização do exame de DNA.
Analisando a partir da perspectiva de conflito entre direitos fundamentais, que se resolve com a utilização da técnica da ponderação dos interesses em jogo, Madaleno (2007, p. 141) ressalta que:
Os tipos de atos que são necessários à realização dos testes de DNA, incluindo a picada de um dedo para a recolha de sangue, não atinge o núcleo do direito à integridade física; e ainda que se entenda estar perante uma restrição ao mencionado direito, esta é absolutamente proporcionada e adequada, porque implica uma intervenção mínima e visa obter uma decisão judicial sobre filiação que coincida com a realidade, decisão que, em muitos casos, é exigida pelo interesse superior da criança.
Ante o conflito, deve prevalecer o direito constitucional à personalidade, calcado no princípio da dignidade humana, uma vez que a presunção de paternidade não resolve o problema da identificação dos ascendentes genéticos. Ademais, com a evolução científica, o exame de DNA se tornou extremamente simples, podendo ser realizado através da análise de um fio de cabelo, uma gota de saliva, ou vestígio de sangue, por exemplo, não sendo crível que isto atinja a integridade física ou a dignidade do suposto pai. Desse modo, não se deve caracterizar como constrangimento ilegal a obrigatoriedade de submissão do investigado ao exame de DNA, pois trata-se do único modo de efetivar a tutela do direito.
Assim, tratando-se de obrigação de fazer, a imposição de realização do exame genético deve ser feita através dos mecanismos de indução, que se prestam a “influenciar psicologicamente o sancionado, para que ele adote a conduta pretendida pela ordem jurídica” (TALAMINI, 2003, p.171). São os meios coercitivos indiretos (artigo 461 do CPC), em que o juiz pode determinar medidas necessárias a fim de ver garantida a tutela da obrigação de fazer, que, nos moldes do §5º do referido artigo incluem desde astreintes à utilização de força policial.
6) CONCLUSÃO
Pelo exposto, percebe-se que o direito à investigação genética se trata de direito da personalidade intimamente ligado à dignidade da pessoa humana e que deve ser protegido.
Trata-se de direito que não se confunde com o direito à paternidade, posto que aquele não tem efeitos na filiação e demais direitos daí decorrentes (nome, alimentos e direito de assistência, por exemplo). Por esta mesma razão, não há óbice à investigação genética mesmo naqueles casos em que há paternidade socioafetiva regularmente constituída, posto que a origem genética não tem o condão de desconstituir o vínculo socioafetivo.
Por fim, concluiu-se que em eventual conflito com o direito à intimidade e integridade física do ascendente, deve-se privilegiar a proteção da personalidade e dignidade do filho, haja vista que o direito à ascendência genética só se efetiva com a realização do exame do DNA (não se beneficiando de presunções legais), por se tratar de obrigação de fazer, e porque na utilização da técnica da proporcionalidade, a proteção à retirada de um fio de cabelo ou a uma gota de saliva não subsiste frente ao direito de se saber quem se é e da onde se veio.
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TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: e sua extensão
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WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Advogada. Bacharel e mestre pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MURTA, Raíssa de Oliveira. Direito fundamental à investigação genética e a paternidade socioafetiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53438/direito-fundamental-investigao-gentica-e-a-paternidade-socioafetiva. Acesso em: 23 dez 2024.
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