RESUMO: Este artigo tem por objetivo demonstrar características, natureza jurídica, condições e requisitos do acordo de não persecução penal. Foram feitas ponderações sobre os principais argumentos que envolvem a discussão da constitucionalidade ou não formal do acordo, já que foi instituído por resolução do Conselho Nacional do Ministério Público. Por derradeiro, foram trazidas algumas questões pertinentes sobre o assunto, como o momento da audiência de custódia para implementar a celebração do acordo e sua aplicabilidade ou não à Lei Maria da Penha.
Palavras-chave: acordo de não persecução penal, eficiência da persecução penal
ABSTRACT: This article aims to demonstrate the characteristics, legal nature, conditions and requirements of the non-prosecution agreement. Considerations were made on the main arguments involving constitutional or non-formal discussion of agreement, as it was instituted by resolution of the National Council of the Public Prosecution Service. Finally, some relevant questions were raised, such as the time of the custody hearing to implement the conclusion of the agreement and its applicability or not to the Maria da Penha Law.
Key words: non-criminal prosecution agreement, efficient criminal prosecution
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do princípio da eficiência. 3. Natureza jurídica do acordo de não persecução penal. 4. Sobre a questão da constitucionalidade do acordo. 5.Acordo de não persecução e audiência de custódia. 6. Requisitos e condições do acordo. 7. Acordo de não persecução e Lei Maria da Penha. 8. Considerações Finais. 9. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Um dos principais problemas hodiernos da persecução penal são os longos anos pelos quais se arrastam os processos judiciais, com inúmeros recursos, muitas vezes, protelatórios, bem como várias formas de prescrição, culminando em muitos processos fadados à extinção de punibilidade por ausência de capacidade estatal de garantir o jus puniendi de forma eficiente.
No palmilhar acima descrito, a população perde a credibilidade na Justiça e acaba não levando ao órgãos estatais muitos crimes. São as nomeadas cifras negras, douradas, verdes, rosas, dentre outras, a depender do tipo de crime envolvido[1].
Uma das soluções apresentadas pela doutrina é justamente o acordo de não persecução penal, que visa evitar um processo judicial e os seus efeitos deletérios na vida de um cidadão, no tocante a crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa.
2. DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA
O princípio da eficiência foi introduzido na Carta Magna de 1988 pela emenda constitucional de número 19, de 1998. Isso não quer dizer que antes de sua expressa menção a Administração não necessitava de eficiência, podendo-se dizer que era um princípio implícito à teleologia de existir da própria Administração Pública, que recebe o dinheiro público para serviço da população, devendo prestá-lo da melhor forma possível.
Os órgãos de persecução penal também estão subordinados ao cumprimento deste princípio. Entretanto, pode-se dizer que tais órgãos passam por uma verdadeira crise institucional, em que não se consegue cumprir em um tempo razoável a prestação jurisdicional na esfera penal, devido a uma imensa multiplicação de processos, associados ao crescimento dos índices de violência nos últimos anos, havendo registro de cerca de 553 mil homicídios violentos intencionais nos dez últimos anos[2].
Nesta senda, o acordo de persecução penal é proposto como uma solução ao problema, deixando o processo judicial penal para casos de crimes mais graves, garantindo dois direitos fundamentais, quais sejam a razoável duração do processo e a eficiência estatal, guardando mais recursos e mais tempo para solucionar crimes mais graves.
3. NATUREZA JURÍDICA DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Renato Brasileiro de Lima[3] explica que a natureza jurídica do acordo de não persecução penal é a de negócio jurídico extrajudicial, com necessária homologação pelo juízo competente.
Quando do seu surgimento na Resolução 181/2017 do CNMP[4], o art. 18 não previa o crivo do Poder Judiciário, o que foi amplamente criticado pela doutrina pátria. Em 2018, a Resolução 183 acrescentou ao acordo a necessidade de homologação pelo Poder Judiciário, em consonância com a sistemática processual penal acusatória, em que claramente estão separadas as funções de acusar e de julgar.
Apesar de não haver propriamente a acusação e o julgamento no acordo, os papéis exercidos pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário são distintos, de modo que o Juiz deve velar pelos princípios que regem o direito processual penal, verificando a regularidade e legalidade do acordo.
É mister recordar que, no processo penal, enquanto o parquet exerce a acusação, quando encontrar justa causa suficiente, com materialidade e autoria delitiva, o Judiciário aplica o direito de punir quando há juízo de certeza, aplicando o princípio do favor rei quando necessário.
4. SOBRE A QUESTÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO
Há argumentos favoráveis e contrários à constitucionalidade do acordo de não persecução penal. O principal argumento contrário à constitucionalidade do acordo é que ele foi estabelecido por resolução do CNMP, sendo que deveria ter sido regulado por lei formar, já que traz uma exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, de modo que a competência para legislar sobre processo penal é privativa da União, consoante art. 22, I, da Constituição.
Ademais, tal argumento é corroborado pela impossibilidade de comparação com a audiência de custódia, que também foi instituída por resolução (213/CNJ), haja vista haver previsão expressa no Pacto de São José da Costa Rica, norma supralegal do ordenamento pátrio.
Já os argumentos favoráveis contornam a necessidade de lei para excepcionar o princípio da obrigatoriedade com algumas alegações. A primeira delas diz respeito às regras de Tóquio (Resoluçao 45/110) das Nações Unidas, que versa no item 5.1:
Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para a decisão sobre a adequação da retirada ou determinação dos procedimentos deve-se desenvolver um conjunto de critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal. Para infrações menores, o promotor pode impor medidas não privativas de liberdade, se apropriado.
Nesta senda, o item exposto incentiva que quando adequado e suficiente à prevenção do crime e proteção da sociedade, tanto o Ministério Público quando a Polícia podem retirar procedimentos contra o infrator. É mister observar que a Polícia mencionada pelo item deve ser interpretada como a Polícia Judiciária ou quem a Lei der competência similar, sob pena de interpretação destoante do art. 144, §§ 1º e 4º, da Constituição Federal[5], bem como ao que aduz o art.2º da Lei 12.830/13.[6] Ademais, como o Ministério Público é o titular da ação penal e um dos destinatários das investigações de Polícia Judiciária, caberia ao delegado a função de sugerir o acordo, com necessária participação do parquet e posterior homologação judicial.
Outra justificação favorável à constitucionalidade do acordo é a força normativa das resoluções do CNMP, de modo que esta retiram seu fundamento de validade da própria Constituição. Ademais, a Resolução 181 apenas trouxe aplicação aos princípios da eficiência, da proporcionalidade, da celeridade e do acusatório.
Há ainda a alegação de que o acordo em si não tem natureza processual, mas sim procedimental, pois perfilha-se no âmbito extrajudicial, não envolvendo denúncia, nem prestação jurisdicional, nem necessidade de contraditório. Por isso, à semelhança do procedimento de investigação criminal, não se submete ao crivo do art. 22, I, da Constituição.
Ademais, uma das bases legais para o acordo é o próprio art. 28 do Código de Processo Penal, o qual diz que o Ministério Público pode requerer o arquivamento, apresentando “razões” para tanto, as quais podem ser ou não homologadas pelo juiz, de modo que o Código não menciona quais as razões necessárias para o arquivamento, podendo o acordo de não persecução ser uma dessas razões.
Há ainda quem diga que o acordo de não persecução sequer tem natureza penal, diferenciando-se do plea bargain anglo saxão, já que este impõe uma sanção, enquanto que o acordo não aplica qualquer pena.[7]
Ademais, quem defende o acordo explica que se trata de uma política criminal exercida por membro do ministério público, que é agente político e titular da ação penal, detendo a prerrogativa de fixar as prioridades no exercício da persecução penal.
Destarte, é imperioso mencionar que já há projeto de lei 882/2019 em tramitação que tem o fito de incluir o art. 28-A no Código de Processo Penal e trazer ao âmbito de Lei formal o acordo de não persecução penal, dirimindo as discussões [8]
5. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO E AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Muito se discute se o acordo de não persecução penal pode ou não ser realizado na audiência de custódia. Uma primeira corrente doutrinária entende não haver tal possibilidade, uma vez que não se pode discutir o mérito da ação na audiência de custódia.
Já uma segunda posição, que parece prevalecer, ex vi do §7º do art. 18 da Resolução 181 do CNMP, aduz que há sim essa possibilidade, desde que haja respeito aos demais requisitos da Resolução. Entretanto isso não significa que o acordo sempre deverá ser celebrado quando da audiência de custódia[9], cabendo ao parquet verificar o momento adequado de sua viabilidade.
Pelo princípio da eficiência e razoável duração do processo, é muito acrertado o momento inicial da audiência de custódia para esboçar uma proposta de acordo, desde que haja respeito à legalidade e proporcionalidade, evitando-se proposta apressada, sem averiguação sobre as reais delineações do caso concreto.
6. REQUISITOS E CONDIÇÕES DO ACORDO
O art. 18 da Resolução 181 traz alguns requisitos fundamentais para a celebração do acordo. São eles: pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, houver confissão formal e circunstanciada.
Percebe-se que a tendência é desafogar o Poder Judiciário, mas sem contemplar crimes violentos, pois este merecem um processo judicial efetivo, já que o bem jurídico violado é mais essencial, ultrapassando o liame patrimonial, atingindo a dignidade da pessoa humana, a integridade física/psíquica da vítima.
Já as condições do acordo são a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade; renúncia voluntária a bens e direitos instrumentos, produto ou proveito do crime; prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas, prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social preferencialmente que proteja bens jurídicos semelhantes; outras condições impostas pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a prática delitiva imputada.
É vedado o acordo nos casos em que cabe transação penal, pois esta é mais favorável ao imputado, nem nos seguintes casos: dano superior a vinte salários mínimos ou parâmetro diverso definido pelo órgão de revisão, nos casos em que não se admite transação penal[10], o aguardo para cumprimento do acordo possa acarretar prescrição, delito for hediondo ou equiparado e a celebração do acordo não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
7. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO E LEI MARIA DA PENHA
A política criminal da Lei 11.340/06 trouxe consigo uma tutela da violência doméstica absolutamente incompatível com a alegação de lesividade mínima[11]. Não é por outra razão que há enunciados de súmula do Superior Tribunal de Justiça que veda a aplicação de institutos despenalizadores a delitos cometidos no contexto de violência doméstica.
São exemples desse entendimentos os verbetes sumulares 536, 588 e 589, os quais proíbem a aplicação de suspensão condicional do processo, transação penal, substituição de pena por restritiva de direitos e do princípio da insignificância.
Pelas mesmas razões, ainda que seja cometido um crime sem violência no contexto de relação doméstica e familiar contra a mulher, não há que se falar em acordo de não persecução penal, pois os bens jurídicos tutelados da Lei Maria da Penha ultrapassam a violência física ou grave ameaça, violando a própria dignidade da pessoa humana, na esfera íntima e essencial da mulher.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte, é mister colacionar a importância do acordo de não persecução penal como uma das soluções para a verdadeira crise que assola a persecução penal seletiva no Brasil. O processo judicial penal deveria ser destinado a crimes mais graves, desafogando o Judiciário com tutelas que poderiam ser resolvidas em ótica semelhante ao sistema multiportas do Judiciário, implantado com métodos autocompositivos e até heterocompositivos.
Entretanto, isso não significa impunidade, pelo contrário, traz uma resposta célere e sensação de Justiça, tendo em vista que a vítima deve ser ressarcida, já que uma das condições do acordo é a reparação do dano ou restituição da coisa.
9. REFERÊNCIAS
BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.p. 266.
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Um panorama sobre o acordo de não persecução penal in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 7ª ed. Rev. Ampl. e Atual. Salvador: Ed. JusPodivm,2019.
SOUZA, Renee do Ó; DOWER, Patrícia Eleutério Campos. Algumas respostas sobre o acordo de não persecução penal. in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019. P.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei 3.689, 03 de outubro de 1941.
BRASIL. Lei nº 9.099, 26 de setembro de 1995.
BRASIL. Lei nº 12.830, 20 de junho de 2013.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019. Acesso em 22/09/2019.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33
410&Itemid=432. Acesso em 22/09/2019.
Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf. Acesso em 22/09/2019.
[1] Cifras negras: sentido genérico de crimes que não chegam às agências estatais. Cifras douradas: crimes contra o patrimônio que não chegam às agências estatais. Cifras verdes: crimes ambientais que não chegam às agências estatais. Cifras rosas: crimes de homofobia que não chegam às agências estatais.
[2] Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33
410&Itemid=432. Acesso em 22/09/2019.
[3] LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 7ª ed. Rev. Ampl. e Atual. Salvador: Ed. JusPodivm,2019.P. 200
[4] Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf. Acesso em 22/09/2019.
[5] Art. 144(...)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:" (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
[6] Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais
[7] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Um panorama sobre o acordo de não persecução penal in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.p. 32
[8] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019. Acesso em 22/09/2019.
[9] SOUZA, Renee do Ó; DOWER, Patrícia Eleutério Campos. Algumas respostas sobre o acordo de não persecução penal. in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019. P. 141.
[10] Condenação definitiva por crime à pena privativa de liberdade, anterior benefício de transação nos últimos cinco anos e circunstâncias judiciais desfavoráveis. (art. 76, §2º, da Lei 9.099/95).
[11] BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. in: CUNHA, Rogério Sanches et al. Acordo de não persecução Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.p. 266.
Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa, com reconhecimento validado pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Consultora Legislativa da Assembleia Legislativa da Paraíba, aprovada no concurso de 2013.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Keila Lacerda de Oliveira Magalhães. Acordo de não persecução penal: eficiência da persecução penal, constitucionalidade e outros aspectos relevantes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2019, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53476/acordo-de-no-persecuo-penal-eficincia-da-persecuo-penal-constitucionalidade-e-outros-aspectos-relevantes. Acesso em: 23 dez 2024.
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