RESUMO: Este artigo tem por objetivo demonstrar a necessidade de uma regulamentação nacional sobre a proteção de dados de testemunhas e vítimas que sofreram algum tipo de ameaça para que não colaborem com a Justiça, sob pena de ofensa à integridade física dela e de sua família. Não é raro ver uma pessoa que reconhece um imputado, descreve com detalhes sua conduta criminosa em sede de inquérito policial, mas em juízo há retratação inexplicável de suas palavras. Muitas delas tem até medo de revelar que a retratação está direta e intrinsecamente relacionada a ameaças graves sofridas para deixarem de colaborar com a Justiça. As normas sobre o assunto são esparsas e vagas, podendo-se dizer sem sombra de dúvida que há necessidade de um detalhamento sobre os procedimentos a serem seguidos pelos órgãos de persecução penal na defesa dos direitos à vida e à integridade física dessas pessoas.
Palavras-chave: Direito fundamental, proteção de testemunha, sigilo
ABSTRACT: This article aims to demonstrate the need for national regulation on the protection of data of witnesses and victims who have suffered some kind of threat to not collaborate with the Court, under penalty of offense to physical integrity of the person and her family. It is not uncommon to see a person who recognizes an imputed person, describes in detail his criminal conduct in police inquiry, but in court there is inexplicable retraction of his words. Many of them are even afraid of revealing that retraction is directly and intrinsically related to serious threats to stop collaborating with the courts. The rules on the subject are sparse and vague, and it can be said without a doubt that there is a need for details on the procedures to be followed by the criminal prosecution bodies in defense of their rights to life and physical integrity.
Key words: Fundamental right, Witness protection, secrecy
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da dignidade da pessoa humana. 3. Das normas e jurisprudência pátria referentes ao direito de proteção das testemunhas no tocante ao sigilo. 4. Do direito ao contraditório e ampla defesa: ponderação necessária com a proibição do défice. 5. Conclusão. 6. Referências
1. INTRODUÇÃO
A sociedade de risco e a globalização trouxeram também o crescimento da violência e das organizações criminosas. Nestas, há muitas vezes uma verdadeira estrutura, equipada com complexo aparato aos membros do grupo. Não raras vezes, a atuação desse grupo envolve ameaça a vítimas e testemunhas de crimes para que não colaborem com a persecução penal estatal, garantindo a impunidade dos infratores da lei.
Neste diapasão, é necessário que o Estado garanta a vida e a integridade física e psíquica das pessoas que colaboram com a Justiça. Mas essa proteção não está apenas na mudança de nome e de local do declarante/depoente, o que gera maior custo tanto financeiro ao Estado como de ruptura de vínculos aos protegidos, cujo preço pode atingir diretamente sua dignidade.
Existe uma medida menos gravosa que é a proteção de dados pessoais da testemunha, devendo ser acompanhada de designação de audiências de vítimas/testemunhas em data distinta da que será ouvido o suspeito, garantindo ao defensor o direito de presenciar os depoimentos, assumindo o compromisso de não revelar a identidade e dados pessoais do protegido.
2. DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O art. 1º, III, da Constituição Federal traz a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito. A impunidade é carta branca para o crescimento das Organizações criminosas, que além de terem grande responsabilidade pelos mais de 553 mil homicídios devido à violência intencional no Brasil[1], nos últimos dez anos, ainda trazem inúmeros prejuízos aos cofres públicos, tamanho o valor movimentado pelo mercado ilícito.
Nesta senda, as vítimas e testemunhas muitas vezes são ameaçadas diretamente ou têm receio da famigerada lei do silêncio que funciona como verdadeiro direito penal paralelo, tornando a persecução penal fadada ao resultado da absolvição por ausência de provas, embora haja testemunhas que saibam do detalhamento da conduta delituosa, mas não colaboram ou desistem de colaborar com o direito de punir estatal.
3. DAS NORMAS E JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA REFERENTES AO DIREITO DE PROTEÇÃO DAS TESTEMUNHAS
Insta esclarecer a necessidade da salvaguarda do direito à vida e à integridade física de testemunhas que sofrem ameaças ou temem lei do silêncio implantada em determinado contexto.
Ab initio, é imperioso memorar que a Constituição Federal estabelece a inviolabilidade do direito à vida e à integridade física das pessoas, in litteris:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
Ainda na Carta Magna, cumpre destacar, há a previsão de que, excepcionalmente, justifica-se o sigilo de determinadas informações, inclusive no processo judicial, ou antes dele, tendo em vista à segurança da sociedade, do Estado e do próprio indivíduo interessado no sigilo, ipsis litteris:
Art. 5º. (...)
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
Desta forma, pode-se dizer que o sigilo serve muitas vezes como garantia da segurança, o que açambarca o direito à vida e à integridade física das pessoas.
Nesta senda, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil, na forma do Dec. 678/92, art. 8º, § 5), tendo caráter de norma supralegal, consoante entendimento do Pretório Excelso[2], também prevê que “o processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça” (Dec. 678/92, art. 8º, § 5).
Também a Convenção de Palermo, de 2000, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.015/2004, em seu art. 24, determina que cada Estado-Parte adote medidas para a proteção eficaz contra atos de violência ou intimidação das testemunhas que depõem sobre infrações previstas na própria Convenção, o que inclui o crime organizado (art 3 nº 1, “a”, c/c art. 5), e de seus familiares. Em meio a estas medidas protetoras, incluem-se aquelas destinadas a “impedir ou restringir a divulgação de informações relativas a sua identidade e paradeiro” (art. 24, nº 2, alínea “a”).
No mesmo delinear, o próprio Código de Processo Penal[3] determina, em seu art. 20, que a autoridade policial deverá garantir o sigilo exigido pelo interesse da sociedade, o qual certamente inclui a proteção de testemunhas e vítimas que se dispõem a colaborar com o poder-dever de punir os que desrespeitam os direitos sob o manto constitucional, mormente quando se trata de homicidas, que desdenham a vida humana. Como a seguir transcrito:
Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
A reforma processual de 2008 também trouxe inovações para a proteção de dados pessoais, vejamos:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) § 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Outrossim, a Lei 9.807/99 estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, in verbis:
Art. 1o As medidas de proteção requeridas por vítimas ou por testemunhas de crimes que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal serão prestadas pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito das respectivas competências, na forma de programas especiais organizados com base nas disposições desta Lei.
Art. 7o Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas, aplicáveis isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as circunstâncias de cada caso:
IV - preservação da identidade, imagem e dados pessoais;
VIII - sigilo em relação aos atos praticados em virtude da proteção concedida;
No tocante ao sigilo sobre a qualificação da testemunha, este é válido na fase de inquérito, conforme se depreende da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:
Habeas corpus. Banco de tecidos musculoesqueléticos clandestino. Venda, guarda e distribuição de tecidos ou partes do corpo humano (arts. 15 e 17 da Lei nº 9.434/97). Investigação criminal. (...) Testemunha sigilosa. Depoimento. Nulidade. Inexistência. Necessidade de preservação de sua higidez física ou psíquica, ante o temor de represálias. Inidoneidade do writ para revolvimento desses fatos. Ordem denegada. (...). O sigilo sobre a qualificação da testemunha na fase policial é válido para a preservação de sua higidez física ou psíquica, em face do temor de represálias, na forma da Lei nº 9.807/99. (HC nº 112.811/SP, Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 12/8/13). 8. Ordem denegada.
(HC 136503, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 04/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-089 DIVULG 28-04-2017 PUBLIC 02-05-2017)
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. (...) SUPRESSÃO DOS NOMES DE TESTEMUNHAS AMEAÇADAS OU COAGIDAS. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA(...) Legal a determinação de omissão dos nomes das testemunhas na denúncia e no libelo-crime. Tal ato não esbarra nas garantias constitucionais, mormente quando aos advogados dos réus foi permitida a participação na inquirição das testemunhas. Processo-crime que apura suposta quadrilha de guardas municipais e policiais militares. Fundada a necessidade de proteger aqueles que podem ajudar a esclarecer os graves fatos increpados aos que deveriam zelar pela segurança pública, por ser esse o seu próprio dever de ofício (artigo 144 da Constituição Federal). Recurso improvido. (RHC 89137, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 20/03/2007, DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29- 06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00059 EMENT VOL-02282-06 PP-01165)
Os julgados acima transcritos, arraigados nos princípios, direitos e garantias constitucionais, refletem a salvaguarda da vida e da integridade física daqueles que colaboram com a justiça. Ademais, é uma medida menos custosa e gravosa do que inserir a testemunha/vítima em um programa que poderá culminar em uma mudança de nome ou até mesmo no rompimento completo de todas as relações sociais e hábitos de vida em que estava inserido o indivíduo, tendo impacto direto em sua dignidade, desestimulando muitas dessas pessoas a colaborarem com o jus puniendi estatal, causando aumento da impunidade e da criminalidade.
Na mesma linha de entendimento, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem assentado reiteradas decisões:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. FURTO DE VEÍCULOS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CORRUPÇÃO DE MENORES.
AUSÊNCIA DE DEFESA TÉCNICA EFETIVA DURANTE A FASE DE APRESENTAÇÃO DE ALEGAÇÕES FINAIS. EVENTUAL VÍCIO AFASTADO PELA CORTE ESTADUAL.
IMPOSSIBILIDADE DE SE ENTENDER DE MANEIRA DIVERSA. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA. NECESSIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA.
PROVIMENTO N. 14/03 DA CORREGEDORIA-GERAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. NORMA QUE PREVÊ A PROTEÇÃO DOS NOMES, QUALIFICAÇÕES E ENDEREÇOS DE TESTEMUNHAS E VÍTIMAS AMEAÇADAS OU COAGIDAS. ATO ADMINISTRATIVO QUE PREVÊ O ACESSO AOS DADOS SIGILOSOS PELA ACUSAÇÃO E DEFESA. MÁCULA NÃO EVIDENCIADA.
1. Consolidou-se no âmbito dos Tribunais Superiores o entendimento de que apenas a falta de defesa técnica constitui nulidade absoluta da ação penal, sendo certo que eventual alegação de sua deficiência, para ser apta a macular a prestação jurisdicional, deve ser acompanhada da demonstração de efetivo prejuízo para o acusado, tratando-se, pois, de nulidade relativa. Enunciado 523 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
2. Não existe nulidade por cerceamento ao direito de defesa decorrente do fato de algumas das testemunhas arroladas na denúncia terem sido beneficiadas com o sigilo de sua qualificação, porque temiam represálias. Ademais, é imperioso assinalar que tanto o réu quanto o seu defensor estiveram presentes à audiência de instrução em que ouvidas as testemunhas protegidas, oportunidade na qual lhes foi oportunizado o contraditório, circunstância que afasta, por completo, a arguição de nulidade do feito.
3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp 1680561/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2018, DJe 16/02/2018)
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. RECURSO INTERPOSTO APÓS O QUINQUÍDIO LEGAL.
INTEMPESTIVIDADE. AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO NOS AUTOS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 115/STJ. SIGILO NA QUALIFICAÇÃO DE TESTEMUNHA PROTEGIDA.
POSSIBILIDADE. ART. 7º, INCISO IV, DA LEI N. 9.807/99. PROCESSO SIGILOSO DE CORRÉU. PEDIDO DE ACESSO ÀS INFORMAÇÕES DEFERIDO PELO MM. JUIZ PROCESSANTE. PREJUÍZO NÃO COMPROVADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO ORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.
I - Verifica-se que o v. acórdão objurgado foi publicado em 2/10/2015 e o presente recurso interposto apenas em 14/10/2015, portanto, quando já expirado o prazo de 5 (cinco) dias previsto no artigo 30 da Lei 8.038/1990, restando configurada a intempestividade recursal.
II - "Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos" (Enunciado n. 115 da Súmula do STJ).
III - O inciso IV do art. 7º da Lei n. 9.807/99, de forma especial, dispõe sobre a possibilidade de se preservar a identidade, a imagem e os dados pessoais de testemunha, observadas a gravidade e as circunstâncias do caso concreto (precedentes).
IV - In casu, o sigilo imposto pelo MM. Juiz processante, no que tange à identificação da testemunha protegida, não teve caráter absoluto, uma vez que foi permitido à defesa ter acesso a tais informações antes do julgamento pelo eg. Tribunal popular. Ademais, conforme se verifica do parecer do Ministério Público Federal, "a testemunha protegida foi ouvida em Juízo, na presença do Defensor constituído dos pacientes", que formulou "intenso questionário à testemunha" e, ainda, "em nenhum momento, a Defesa, na fase instrutória e nem mesmo nas alegações finais, se insurgiu contra a medida determinada, deixando para fazê-lo apenas através de habeas corpus e depois de proferida a sentença de pronúncia, e sem comprovar a existência de prejuízo, sendo pois, matéria preclusa".
V - Observado o princípio do contraditório e da ampla defesa e não comprovada a ocorrência de efetivo prejuízo à defesa (art. 563 do Código de Processo Penal), não há falar em nulidade dos autos (precedentes). VI - Segundo ressaltado no acórdão, o MM. Juiz processante esclareceu que, a pedido da Defesa, em 28/07/2015, foi facultado o acesso aos demais autos corréus relativos aos fatos constantes da denúncia .
Recurso ordinário não conhecido.
(RHC 68.767/ES, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 25/04/2017, DJe 05/05/2017)
Sobre a possibilidade de decretação de sigilo de dados, de outro modo os colendos tribunais citados não poderiam entender, pois se toda testemunha que fosse coagida ou ameaçada tivesse que ser destituída de seus laços afetivos e sociais, na verdade a mesma estaria recebendo uma punição, que se assemelharia a um exílio.
No caso de testemunhas com qualificação correndo em segredo de justiça, o interesse social na proteção de seus dados está consubstanciado pela proteção à vida, integridade física e moral da testemunha e pela própria realização do jus puniendi.
Para corroborar o direito ao sigilo, vejamos provimento 32/2000, exarado pela Corregedoria do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[4], que estabelece parâmetros para a proteção dos aludidos dados pessoais:
Artigo 2º - Quando vítimas ou testemunhas reclamarem de coação, ou grave ameaça, em decorrência de depoimentos que devam prestar ou tenham prestado, Juízes de Direito e Delegados de Polícia estão autorizados a proceder conforme dispõe o presente provimento.
Artigo 3º - As vítimas ou testemunhas coagidas ou submetidas a grave ameaça, em assim desejando, não terão quaisquer de seus endereços e dados de qualificação lançados nos termos de seus depoimentos. Aqueles ficarão anotados em impresso distinto, remetido pela Autoridade Policial ao Juiz competente juntamente com os autos do inquérito após edição do relatório. No Ofício de Justiça, será arquivada a comunicação em pasta própria, autuada com, no máximo, duzentas folhas, numeradas, sob responsabilidade do Escrivão.
Artigo 5º - O acesso à pasta fica garantido ao Ministério Público e ao Defensor constituído ou nomeado nos autos, com controle de vistas, feito pelo Escrivão, declinando data. “se o Estado não tem condições de garantir, totalmente, a segurança da vítima e das testemunhas que vão depor, é preciso que o magistrado tome tais providências, valendo-se dos princípios gerais de direito e do ânimo estatal vigente de proteger as partes envolvidas num processo criminal”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 402.)
Em palmilhar semelhante, há outros provimentos das Corregedorias de outros Egrégios Tribunais do país, a saber:
Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça da Bahia[5]:
PROVIMENTO CONJUNTO Nº CGJ/CCI-02/2015
Art. 2º – O Juiz de Direito e o Delegado de Polícia, no âmbito de suas atribuições, estão autorizados a proceder de acordo com o disposto neste provimento, nos casos em que vítima ou testemunha reclame de coação ou grave ameaça em decorrência da colaboração a ser prestada durante investigação policial ou instrução criminal.
Art. 3º – Os endereços e dados de qualificação das vítimas e testemunhas coagidas ou submetidas a grave ameaça, em assim desejando, não serão lançados nos termos de seus depoimentos. Aqueles ficarão anotados em impresso distinto, remetidos pela Autoridade Policial, ao Juiz competente juntamente com os autos do inquérito após edição do relatório. No Ofício de Justiça, será arquivada a comunicação em pasta própria, atuada com, no máximo, duzentas folhas, numeradas sob responsabilidade do Escrivão ou Diretor de Secretaria de Vara.
Neste diapasão, é mister enaltecer o conteúdo destes provimentos, no tocante à proteção do direito à vida e à integridade física das testemunhas e vítimas colaboradoras, de modo que se evitem represálias, as quais respaldam o poder paralelo de criminosos, que invadem a esfera social quando o Estado se omite no seu dever de garantir direitos fundamentais.
Entretanto, ad argumentandum tantum, é imprescindível destacar que, para além dos aludidos provimentos, existem inúmeras normas presentes na ordem brasileira que trazem espeque jurídico à proteção da testemunha/vítima ameaçada. Nesse despacho foram citadas algumas delas: Constituição Federal (art. 5º, caput, incisos III, XXXIII e LX, art. 93, IX); Pacto de São José da Costa Rica (Dec. 678/92, art. 8º, § 5); Convenção de Palermo (Decreto nº 5.015/2004, art. 24, nº 2, alínea “a”); Código de Processo Penal (art. 20, art. 201, §6, art. 217, art. 792,§1º); Lei nº 9.807/99.
Semelhantemente, reiteradas decisões do STF e STJ aplanam o sigilo e segredo de justiça no tocante aos dados pessoais de testemunhas e vítimas ameaçadas.
Igualmente, a doutrina também alicerça o tema em pauta, nas palavras de NUCCI:
“se o Estado não tem condições de garantir, totalmente, a segurança da vítima e das testemunhas que vão depor, é preciso que o magistrado tome tais providências, valendo-se dos princípios gerais de direito e do ânimo estatal vigente de proteger as partes envolvidas num processo criminal”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 402.)
4. DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA: PONDERAÇÃO NECESSÁRIA COM A PROIBIÇÃO DO DÉFICE
No que se refere ao direito de defesa do suspeito/acusado/réu, igualmente com patamar constitucional, no art. 5º, LV, da Constituição[6], em nada o mesmo fica suplantado, tendo em vista que os dizeres dos fatos que lhe são imputados por testemunhas/vítimas permanecem intactos, de modo que como o mesmo se defende dos fatos e não de sua capitulação legal, seu direito será preservado.
Ademais, como o defensor constituído terá acesso aos dados sigilosos, com controle de vistas, comprometendo-se a manter o sigilo, não divulgando para o imputado os dados protegidos, cabe ao patrono contestar eventuais incoerências nestes.
O art. 217 do Código de Processo Penal traz a previsão de o juiz fundamentar a oitiva de testemunha ou de vítima por videoconferência ou na ausência do réu quando verificar que a presença do réu pode causar humilhação, temor ou sério constrangimento, de modo que a inquirição será realizada com a presença do defensor. Ora, a presença do defensor garante o direito constitucional à ampla defesa e contraditório, podendo o patrono contraditar eventual depoimento eivado de vícios.
Ademais, em consonância com o art. 201, §6º, do Código de Processo Penal, o direito à honra, à vida privada e à proteção de dados pessoais do ofendido devem ser garantidos pelo Poder Judiciário, o qual deve decretar segredo de justiça sobre tais dados, quando necessário para salvaguardar direitos fundamentais.
É necessário, portanto, ao julgador, ponderar sobre a aplicação de ambos os direitos fundamentais, em verdadeira aplicação do princípio da concordância prática. Se por um lado, é necessário garantir o direito à ampla defesa e contraditório ao acusado/imputado/investigado, por outro, não se pode deixar a sociedade indefesa, protegendo seus direitos fundamentais, até mesmo sob a ótica da proibição do déficit.
Sobre o tema, é mister trazer à colação lições de Claus Roxin:
“O direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes do direito penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do indivíduo.” (Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal . 3ª. ed., Lisboa, Coleção Veja Universitária,1998, pp. 76 e ss.)
O excerto acima elenca um ponto importante sobre o funcionalismo penal, que é o papel social da tutela penal de bens jurídicos essenciais da sociedade, que deve estar devidamente protegida contra abusos de indivíduos que infringem a lei, em completo desrespeito à paz social.
Destarte, percebe-se que o direito ao sigilo de dados qualificativos e demais informações sobre testemunhas e vítimas é medida que se impõe, como corolário do princípio da proporcionalidade, em sua vertente positiva, que encontra respaldo no devido processo legal substancial, estampado no art. 5º, LIV, da Constituição.
5. CONCLUSÃO
À guisa de arremate, pode-se concluir que as normas de proteção de informações pessoais de vítimas e testemunhas ainda não trazem a regulação necessária para efetiva garantia do sigilo, de modo que muitas vezes não há a proteção necessária desses dados, provocando enorme prejuízo e risco à integridade física e psíquica dessas pessoas que colaboraram com a justiça.
Algumas corregedorias de tribunais trazem um avanço na matéria, mas ainda necessitamos de uma norma nacional que indique aos participantes dos órgãos de persecução penal qual o procedimento necessário para garantir o sigilo, sem tolher o direito de defesa do imputado, aplicando os direitos fundamentais envolvidos na melhor medida possível, sob a ótica da ponderação.
6. REFERÊNCIAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3ª. ed., Lisboa, Coleção Veja Universitária,1998.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Decreto 678, 06 de novembro de 1992.
BRASIL. Convenção de Palermo. Decreto 5.015, 12 de março de 2004.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei 3.689, 03 de outubro de 1941.
BRASIL. Lei nº 9.807, 13 de julho de 1999.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/. Acesso em 01/02/2018.
Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Jurisprudencia. Acesso em 01/02/2018.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33. Acesso em 22/09/2019.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em 22/09/2019
Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/diariojustica/20181120.pdf. Acesso em 22/09/2019.
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoCriminal/PortalDeTrabalho/Provimento32CGJ.pdf. Acesso em 21/09/2019.
[1] Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33
410&Itemid=432. Acesso em 22/09/2019.
[2] RE 466.343-1 (STF).
[3] Insta acrescer que o CPP ainda menciona outras regras sobre restrição de publicidade, cuja menção corrobora os fundamentos jurídicos do atual despacho, vejamos: Art. 792. (...) § 1o Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.
[4] Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoCriminal/PortalDeTrabalho/Provimento32CGJ.pdf. Acesso em 21/09/2019.
[5] Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/diariojustica/20181120.pdf. Acesso em 22/09/2019.
[6] Art. 5º, LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa, com reconhecimento validado pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Consultora Legislativa da Assembleia Legislativa da Paraíba, aprovada no concurso de 2013.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Keila Lacerda de Oliveira Magalhães. Direito fundamental ao sigilo de informações pessoais de testemunhas e vítimas: corolário da dignidade da pessoa humana e da proibição do défice Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2019, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53483/direito-fundamental-ao-sigilo-de-informaes-pessoais-de-testemunhas-e-vtimas-corolrio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-da-proibio-do-dfice. Acesso em: 23 dez 2024.
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