BERNARDO DA SILVA SEIXAS [1]
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo demonstrar uma nova maneira de se pensar os direitos de proteção dedicados aos animais não-humanos, dentro da perspectiva do ordenamento jurídico nacional. Em uma tentativa de afastar ideais antropocêntricos, ainda muito influentes no Direito brasileiro, evidencia-se a necessidade da atribuição de direitos fundamentais específicos a esses seres sencientes, com o reconhecimento de seu valor como criaturas vivas e merecedoras de dignidade. Ao longo da pesquisa, de cunho bibliográfico, na literatura pertinente, demonstra-se o importante papel dos direitos fundamentais para a proteção de direitos básicos, e a função do status de dignidade, atualmente atribuído somente aos seres humanos.
Palavras chaves: Animais não humanos; Titulares; Ordenamento Juridico.
ABSTRACT: This paper aims to demonstrate a new way of thinking about the protection rights dedicated to non-human animals, within the perspective of the national legal system. In an attempt to dispel anthropocentric ideals, still very influential in Brazilian law, the need for the attribution of specific fundamental rights to these sentient beings is evidenced, with the recognition of their value as living creatures worthy of dignity. Throughout the bibliographical research in the relevant literature, the important role of fundamental rights for the protection of basic rights is demonstrated, and the dignity status function, currently attributed only to human beings.
Keywords: Non-Human Animals; Holders; Legal Ordering
INTRODUÇÃO
Apesar do surgimento de novas perspectivas a favor da proteção do meio ambiente, a história da humanidade se viu marcada, em maior parte, por um cenário de frágil proteção da fauna e da flora. A sociedade foi sendo criada com base em pilares de segregação, e sem dúvidas, isso refletiu nos ordenamentos jurídicos mundo a fora.
Com o progresso civilizatório, a legislação foi sendo substituída lentamente por normas compatíveis com os dias atuais. Foi sendo construída uma melhor consciência ecológica na medida em que os homens perceberam as consequências destrutivas e irreparáveis que estavam proporcionando a natureza.
O grande desafio, entretanto, é conciliar o desenvolvimento econômico e social, que culmina em um capitalismo depreciativo e explorador, com os direitos dos animais, visto que grande parcela da sociedade ainda pensa que essa proteção não é necessária, visto que esse posicionamento inviabilizaria negócios de grandes indústrias e comércios que baseiam suas atividades em produtos de origem animal. Diante disso, fez-se necessário o surgimento de práticas que se posicionassem contra esse conflito moral de exploração do meio ambiente.
Frente a evolução em termos de doutrina e jurisprudência, quanto a tutela de direitos dos animais sencientes, é de importância a análise desta temática, no sentido de contribuir para o amadurecimento da discussão, não só em seu caráter acadêmico, mas também sociológico.
Esse trabalho se propõe a uma argumentação a cerca dos direitos dos animais não humanos, assim como a capacidade jurídica desses seres e sua comparação com os entes personificados e despersonificados presentes no ordenamento jurídico. Questiona ainda sobre a real existência do direito dos animais (como sujeitos de direito) no Brasil ou apenas a proteção dos bens particulares e do princípio fundamental do meio ambiente equilibrado e, por fim, a possibilidade desses seres não humanos buscarem o judiciário para tutelar seus interesses.
Os animais são objetos semoventes, passíveis de apropriação ou assenhoramento caso não tenham dono anterior. Esse seria um dos motivos pelos quais os animais não humanos não podem estar em juízo, pois não têm personalidade jurídica e, por conseguinte, não possuem também capacidade jurídica, não podem acessar o judiciário para tutela de seus interesses.
Segundo Tagore (2012) a ordem jurídica não concedeu aos seus protagonistas apenas a personalidade, mas os dotou de capacidade para a aquisição de direitos e para seu exercício, seja por si mesmo, seja por representação ou mediante a assistência de outrem. Assim, se a capacidade representa o gênero, pode-se dizer que suas espécies são: a capacidade de direito ou gozo e a capacidade de fato, correlata à efetivação desses direitos.
Tais conceitos de personalidade e capacidade mudam de autor para autor, muitas vezes relativizados em relação ao assunto tratado. Porém, as duas coisas não se confundem, pois, segundo Chaves (2011, p.16):
O conceito de capacidade, em sentido estrito e próprio, não se confunde, porém, com o de personalidade. A palavra ‘capacidade’ por si mesma está dizendo que ela indica uma extensão do exercício da personalidade, como que a medida da personalidade em concreto (CHAVES, 2011. P.16).
Em linhas gerais, se determinado sujeito possui personalidade, possuiria, também, capacidade (em maior ou menor grau), entretanto não seriam somente os sujeitos dotados de personalidade que poderiam ter capacidade. O direito atribuiu capacidade aos entes despersonalizados (o nascituro, a massa falida, o condomínio, etc) para que esses possam fazer parte de relações jurídicas como sujeitos.
Para Tagore (2012, p.328) Os entes despersonalizados, mesmo que não registrados, possuem condições de estabelecer relações jurídicas com quaisquer pessoas ou outros entes e apesar de não configurar sob um aspecto normativo-dogmático pessoas de direitos, são considerados sujeitos de direito. O que evidencia claramente que algo “não humano” tem aptidão para capacidade e para buscar seus interesses e ou seus direitos básicos, ou ainda parte disso junto às vias judiciais.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 12, traria alguns dos entes despersonalizados, evidenciando a problemática desses “sujeitos” que não receberam qualquer denominação legal, diferentemente das pessoas jurídicas, que são praticamente “paridas” pelos seus atos constitutivos e foram delimitadas e elencadas no artigo 40 do mesmo código em clara lacuna para analogia por parte dos operadores de direito.
1.1 Da dignidade do homem e dos demais seres vivos
A evolução do Direito, como ciência e teoria dos diretos fundamentais do ser humano, impõe trazer à tona alguns questionamentos: somente a vida do homem merece cuidado especial por parte do Direito? Seria somente o animal racional titular de direitos e de dignidade? Tais indagações serão tratadas ao longo do presente estudo. Nosso ordenamento jurídico é composto por princípios e normas que, de acordo com a interpretação social adequada ao período atual, traduzem os valores morais e aspirações da nossa sociedade. Pela análise do já exposto, a dignidade é um direito fundamental do homem, protegido pela constituição e que serve de parâmetro para a aplicação do Direito (SABADELI, 2008).
Apesar de não possuir um viés jurídico, a definição encontrada no dicionário ilustra claramente essa noção de valor basilar à ser defendido. Sendo assim, se torna essencial a compreensão do que seria o princípio da dignidade da pessoa humana para assim se construir uma noção de dignidade dos demais animais viventes.66 Entender que a dignidade é um direito fundamental que pode ir além do animal humano é o primeiro passo para que seja criada uma gama de direitos voltados aos demais seres vivos.
Nessa linha de pensamento, muitos estudiosos se debruçam sobre o tema da dignidade animal, com a consciência do desafio de se quebrar a formação antropocêntrica que ainda circunda o tema. Como observado pelas explanações à seguir, o caminho encontrado para tal pode ser feito através das próprias teorias sobre a dignidade humana, abrindo caminho para uma visão ecológica e mais ampla de sua aplicabilidade.
Para Medeiros (2013), em sua obra "Direitos dos Animais", traça um caminho interessante sobre a dignidade da pessoa humana como ponto de partida para um possível entendimento de uma extensão deste direito fundamental aos animais não-humanos. Como base nas doutrinas de Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel e Ronald Dworkin aponta o início de um estudo mais profundo sobre a dignidade da pessoa humana, porém ainda ligado a um conceito onde apenas o ser humano seria detentor da dignidade.
Então, a partir da contribuição de tais filósofos e juristas, Medeiros (2013) propõe uma quebra do paradigma antropocêntrico criado, ao sugerir, com base no pensamento de Jüngen Habermas, a valoração da proteção à vida para além do ser humano. Na construção de seu estudo sobre a dignidade, a autora inicia seu raciocínio pelo pensamento de Immanuel Kant. Na obra do filósofo alemão, surge a ideia da dignidade humana fundada exclusivamente na condição do homem como ser racional e em sua autonomia de vontade. Essa condição pode ser traduzida como a capacidade humana de se auto determinar e agir conforme determinadas leis, apenas encontrada nos seres racionais.
Ainda sobre o tema da dignidade, destaca-se na obra o trabalho de Ronald Dworkin, filósofo norte-americano, para o qual o ser humano, independente dos variados conceitos culturais atribuídos ao tema, não poderia ser submetido à indignidade, e foca o seu estudo justamente sobre essa preocupação. A dignidade possuiria uma voz ativa e uma passiva, sendo a voz ativa o dever e o direito das pessoas em zelarem pela sua própria dignidade.
Quando alguém, segundo Dworkin (2002), compromete a sua própria dignidade estaria negando a importância da vida humana, tanto a sua própria quanto a do outro. A voz passiva da dignidade estaria relacionada com a ação do outro. Alguém que zela por sua dignidade ainda sim poderia ter seu direito fundamental lesado por outrem.
Ao observarmos a tendência antropocêntrica criada em torno do tema, a proposta da sua extensão aos animais não-humanos representa uma inovação no campo jurídico, ainda muito atrelado às premissas da racionalidade e da consciência de Kant e Hegel. O que se propõe é a quebra da visão do ser humano como centro da tutela jurídica, observada inclusive no direito positivado, para que se possa construir uma ideia de dignidade como apenas direito fundamental aplicável às demais criaturas que demonstrem traços mínimos em comum ao ser humano, e não necessariamente a capacidade de raciocínio lógico ou o uso de uma consciência desenvolvida (MEDEIROS, 2013).
Para Habermas (2002) a dignidade humana é abordada à partir da relação entre seres morais, seja numa esfera social ou jurídica, que sendo membros de uma comunidade podem estabelecer normas de comportamento e obrigações entre si e a expectativa de seu cumprimento. A dignidade humana teria seu sentido atrelado às relações pessoais recíprocas. A identidade moral do indivíduo se daria pela vida social, em função das inúmeras relações que os homens tecem entre si, criticando-se assim a teoria do homem como fim em si mesmo elaborada por Kant.
Desta forma infere-se que a dignidade no mundo jurídico decorre de uma concepção antropocêntrica de que apenas o ser humano seria detentor de dignidade, mas que vem sendo desconstruída devido aos esforços de estudiosos que se debruçam sobre a causa da defesa do meio ambiente e da proteção animal. Como se observa, a dignidade da pessoa humana é condição para que nós, seres humanos, possamos proteger a nossa própria existência, através da moral e da tutela jurídica (SARLET, 2014).
Não basta para o homem "estar vivo", sendo necessária essa condição de dignidade para haja seu desenvolvimento saudável e feliz. Portanto, este princípio basilar do Direito, atribuído no ordenamento jurídico pátrio à pessoa humana, pode (e deve) alcançar também os demais seres, pois o que é digno carrega em si um valor próprio de existência, que é facilmente reconhecido, sendo a chave para a proteção da vida como um todo.
1.2 Animais como sujeitos personificados
Para Singer (2008), os termos “sujeito” e “pessoa” são obviamente ampliados segundo seu objeto de estudo, onde poderia levar-se em consideração níveis de racionalidade e autoconsciência revistos pelo mesmo após diversas críticas a seu utilitarismo, porém partindo do ponto da sensibilidade animal:
“Pessoa” é qualquer ser racional e autoconsciente, capaz de levar uma vida biográfica e não apenas biológica; percebe a si mesmo no tempo, possui interesses, projeta sua existência e realiza planos para o futuro. Essa definição se aplica à maior parte dos seres humanos, mas inclui uma notável porção de animais, especialmente mamíferos como cães, porcos e primatas superiores (SINGER, 2008, p.135).
Entretanto, por conta de seu utilitarismo, tal filósofo não serviria de salvaguarda para a presente proposta abolicionista, posto que, na prática, esse não negaria seu cunho de individualismo utilitarista, que em prol da maioria ainda se filiaria ao pensamento comum.
Gonçalves (2014, p.14), esclarece que:
A expressão “todo homem” fora empregada em sentido amplo e genérico, abrangendo de fato todas as pessoas sem distinção, e que, posteriormente, a mesma definição necessitou ser alterada, uma vez que, no relatório do Código Civil seguinte, o Senado Federal aprovou a expressão “todo homem”, novamente modificada na Câmara dos Deputados por “toda pessoa”, de modo a adequar o texto à nova constituição e suprimir possíveis dúvidas com relação à interpretação (GONÇALVES, 2014, p.142).
Desta forma, o termo “toda pessoa” pode ser interpretado de forma extensiva abarcar todos os sujeitos corpóreos e incorpóreos possíveis, dada sua natureza da expressão que foi pensada levando em consideração as novas pessoas em evidência nas relações jurídicas contemporâneas.
Para Coelho (2003), mesmo deixando claro seu entendimento a respeito do conceito de sujeito de direito, que teria: “finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres”. Os sujeitos não humanos, portanto não buscam equiparação em relação à capacidade de um nascituro, por exemplo, mas a busca pelos seus direitos fundamentais, ou ainda a sua dignidade como sujeitos donos de uma vida.
Conforme o pensamento de Daniel Braga Lourenço ( 2016) ao se analisar a herança sociológica e filosófica das ciências, em especial da Ciência do Direito, se torna nítida uma divisão criada para distinguir o homem e os demais seres vivos. Apesar do ser humano integrar conjunto de animais existentes na cadeia biológica de nosso planeta, nunca é atribuído à espécie Homo Sapiens a condição de "animal" propriamente dita. Se o ser não é dotado de racionalidade ou singularidade, não se enquadra no perfil humano, deixando de ter seu valor próprio em detrimento do bem estar da humanidade (LOURENÇO, 2016).
É nesse contexto que é possível aplicar a expressão "antropocentrismo", para designar essa tendência do homem de se colocar em uma posição superior às demais espécies. Para Dias (2009) é incontestável a necessidade da proteção da natureza para a sobrevivência da humanidade. Por esse motivo, é preciso discutir a posição dos animais dentro da órbita jurídica da nossa legislação, pois esta deve corresponder a anseios mais ecológicos, que, aos poucos, tem se mostrado cada vez mais presente na nossa realidade social.
Para Rodrigues (2010) Contudo há que ressaltar que nossa legislação enfrenta um paradigma jurídico: De um lado temos um direito ambiental que protege, mas possui um enfoque antropocêntrico, isto é, a proteção existe apenas com o intuito de satisfazer o homem e de outro, temos um direito ambiental mais moderno, que procura romper com essa noção antropocêntrica e visa introduzir na legislação a devida proteção animal em razão da sua existência e não por causa dos humanos.
2.1 O Código Civil brasileiro e a coisificação animal
Infelizmente, as proteções no ordenamento jurídico não passam de proteções antropocêntricas que visam, na realidade, proteger os homens. A preocupação é voltada unicamente ao ser humano, pois os legisladores são incapazes de enxergar além dos interesses do indivíduo. Isso se justifica porque o Código Civil Brasileiro considera os animais não humanos como coisas, isto é, o nosso aparato normativo os equiparou a coisas sem vida, como por exemplo, uma pedra (COELHO, 2003).
A grande questão é que os animais se distinguem dos objetos dos quais foram assemelhados, pois possuem capacidade de sentimento, o que deveria fazer com que eles, ao menos, estivessem em uma categoria jurídica relevante. Na perspectiva civilista brasileira, temos duas pontas na relação jurídica: Os sujeitos de direito e os objetos de direito. Segundo Coelho (2003, p.138):
O centro de imputações de direitos e obrigações referido em normas jurídicas com a finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres. Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos (COELHO, 2003, p.138).
Assim, sujeito de direito no Brasil é todo ente a quem o ordenamento jurídico atribui direitos e obrigações. Esses sujeitos podem ser pessoas físicas – os seres humanos – ou pessoas jurídicas, que são as que possuem uma existência ideal, como por exemplo, empresas e associações.
Além disso, o direito ainda traz a previsão, no artigo 75 do Código de Processo Civil, de que esses sujeitos podem ser despersonalizados, ou seja, a lei reconhece direitos para determinados agregados patrimoniais, caso do espólio, condomínio, massa falida, etc. (SILVA, 2015).
Percebe-se, portanto, que os animais não estão incluídos no grupo dos sujeitos de direito, pois se encontram na categoria de objetos de direito, como demonstra o artigo 82 do Código Civil:
Art. 82: são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico social.
O Brasil, segundo Leonardo Boff (2003) , ainda não conseguiu se enquadrar completamente na atual tendência dos países da América Latina, no sentido de reconhecer um constitucionalismo que abarque não somente as necessidades do ser humano, mas sim de todas as espécies existentes no planeta.
Faz-se necessário ressaltar a diferença entre bem e coisa. Há diversas percepções, mas a adotada pelo Código Civil de 2002 foi a de que a coisa é o gênero, e o bem, espécie. Assim, coisa é tudo aquilo que existe objetivamente, sem ser o homem, e bem é a coisa que é suscetível de apropriação, que tem valor econômico (RODRIGUES, 2003).
Os animais se encaixam no conceito de bem, pois possuem um valor econômico e podem vestir-se das prerrogativas da propriedade – já que estão à disposição humana. O parágrafo primeiro do artigo 1.228, cumulado com o artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal, que traz a ideia da função social da propriedade, aduzem disposições para que esse direito seja corretamente exercido. Dispõe o parágrafo:
Art. 1228, § 1º: O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Nesse sentido, aqueles que detêm sua propriedade podem usar, gozar e dispor de acordo com a finalidade social que lhe interessar, inclusive podem doá-los ou vendê-los, como assegura o artigo 1.228 do Código Civil. (Regan, 2006).
Para Angher (2016) nosso regime jurídico se mostra atrás da realidade social apesar de ainda haver muitas marcas do antropocentrismo, é nítido que o diploma social já considera os animais como seres dignos de uma vida com proteção. Logo, a divisão entre sujeitos de direito versus objetos de direito que nossa ordem civil traz fica obsoleta, pois ela ignora por completo a realidade de seres com vida que não são pessoas, caso dos animais (RABENHORST, 2001).
2.2 Projeto de Lei 27/2018
No dia 08 de agosto de 2019, o plenário do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 27, de 2018, que estabelece em seu texto um novo tratamento jurídico para os animais não humanos. De acordo com o PL, os animais não mais receberão tratamento de “coisa”, conforme preleciona o Código Civil brasileiro de 2002, mas terão uma natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos despersonificados, reconhecidos como seres sencientes e passíveis de sofrimento.
O texto acrescenta dispositivos à lei 9.605/98 (lei de crimes ambientais) e foi aclamado como sendo mais um meio efetivo de tutela aos direitos dos animais. O ponto chave para a presente análise é que o texto do PL veda a caracterização de tais seres como “coisa”, podendo gerar reflexos no âmbito do direito penal como, por exemplo, na caracterização de alguns crimes contra o patrimônio.
Um dos problemas que abrange a criação de animais, seja para o corte (no caso de gado) ou para criação doméstica (cães, gatos e outros), na esfera criminal, é a possibilidade de furto/roubo destes seres vivos. Em fevereiro desse ano, seis membros de uma quadrilha especializada em furto de gado de fazendas mineiras foram condenados a penas de prisão e reparação de danos às vítimas pelos crimes cometidos (CABETTE, 2016).
Para o âmbito doméstico, a revista IstoÉ, em maio de 2019, lançou uma matéria afirmando que o furto e roubo de cães de companhia cresceu nas grandes cidades. Na forma de subtração de cães de suas próprias casas, o delito teve uma aumento de 110% somente em São Paulo.
O direito, como um todo, é uno e indivisível. Partindo desse ponto, o que se questiona com a alteração legislativa quanto ao tratamento jurídico dado pelo ordenamento brasileiro aos animais, é a definição dos crimes contra o patrimônio existentes no Código Penal (CP). Pode-se notar que há uma crescente demanda social acerca do melhor tratamento dos animais por parte da população com relação à tutela que o ordenamento jurídico pátrio dá para com os animais não humanos (TAGORE, 2012).
É inegável que ao longo das últimas décadas, houve um maior envolvimento do direito brasileiro assegurando um patamar mínimo aos animais, desde o Decreto 24.645/34 que proibiu os maus tratos aos animais, quando em vigor, à Lei 9.605/98 que em seu artigo 32 prevê pena de detenção de até um ano e multa para quem praticar maus tratos. Além dessas previsões, há projetos de lei, como o PL 236/12 que pretende aumentar as penas para crimes com os animais.
Nesse sentido, o PL 27/18 emerge como mais um anseio popular para com a adequada tutela do ordenamento no que tange a tais seres vivos. Apesar de estar sendo tido como um avanço na área de direitos dos animais, tanto pela população quanto pelos deputados e senadores, a mudança da natureza jurídica dos animais não humanos pode afetar diretamente outras áreas do direito, como é o caso do Direito Penal.
Como já afirmado, o direito é uno como um todo. A mudança da natureza jurídica dos animais não humanos de “coisas” para uma nova natureza jurídica sui generis implicaria na exclusão, pelo menos de maneira expressa, de tais bens (se a denominação “bem” continuar correta) do enquadramento dos tipos penais de furto e roubo, escolhidos neste trabalho por serem corriqueiramente mais vistos no meio popular (SILVA, 2015).
Há ainda o problema da retroatividade da lei penal mais favorável. As pessoas condenadas por roubo ou furto de animais, seja de grande porte como cavalos ou gado, seja de pequeno porte, como cães, gatos e pássaros, caso aprovado o PL com a atual redação, deverão ser liberados do cumprimento da pena, pois o tipo penal não mais existiria (SILVA, 2015).
Resta saber, portanto, em caso de aprovação do PL, como ficará a interpretação dos tribunais e a aplicação do direito em suas outras ramificações (fora do âmbito civil) para com casos envolvendo estes seres vivos. Em caso de necessidade de adaptação em âmbito penal, tendo em vista a vedação de interpretação por analogia de modo a prejudicar o réu, haveria de surgir novas ferramentas para garantir que o que hoje se considera furto/roubo continue a ser algo passível de punição em âmbito penal.
2.3 O posicionamento civilista
É fato que, desenvolveu-se uma política nacional de descaso e banalização da vida dos animais, abandonando os valores morais e o senso de justiça. O direito brasileiro é comprovadamente antropocêntrico e “especista”, a tutela jurídica dos animais existente evidencia um caráter extremamente egoísta, de cunho econômico, que protege apenas interesses de pequenos grupos privilegiados. Assim, os animais são mantidos como objetos de apropriação humana, sujeitos a diversos tipos de exploração e crueldade (ARDOSO, 2007).
Desse modo, é necessário desconstruir o posicionamento presente no ordenamento jurídico brasileiro, de maneira que os animais possam ser considerados detentores de direitos. À vista disso, o direito brasileiro precisa modificar tal percepção civilista, pois essa é extremamente antagônica aos anseios sociais, e até mesmo a determinadas normas.
Como embasamento deste posicionamento, considera-se o Decreto nº 24.645 de 1934. Este dispositivo determina no seu artigo 2º, parágrafo 3º que os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, o qual atuará como seu representante legal. Há muita discussão quanto à validade deste Decreto, pois existem aqueles que defendem que ele foi revogado pelo Decreto Federal nº 11 de 1991. Contudo, há quem pense o contrário, pois se entende que o Decreto nº 24.645/34 foi criado em período de excepcionalidade política, portanto tem caráter de lei, logo ele não é passível de revogação por um decreto (DIAS, 2009).
Ressalta-se ainda que a Constituição Federal defende que os animais são bem de uso comum do povo, e esta norma é o ápice da pirâmide normativa, portanto, não há outra regra que esteja acima dos seus preceitos e ditames. Dessa maneira, a doutrina trazida pelo Código Civil precisa ser abandonada já que é contrária ao próprio sistema jurídico. Seu posicionamento permite abrir espaço para interpretações errôneas, pois se os animais são coisas e podem estar em juízo, porque os demais bens, que não semoventes, também não podem ? (Reale, 2001).
Os Direitos fundamentais, conforme demonstrado no primeiro capítulo, surgiram para servir de núcleo para a proteção de direitos básicos de preservação da vida, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, baseando-se nos valores morais defendidos pela sociedade. Dispostos nos textos constitucionais, esses direitos tem viés de princípios, servindo de guia para a interpretação das demais regras do ordenamento jurídico (MENDES E BRANCO, 2013).
Tais direitos possuem uma dimensão objetiva de proteção, que afeta a coletividade, pois são considerados como as bases para a ordem jurídica. Também possuem uma dimensão subjetiva, que enseja a defesa do sujeito desses direitos contra abusos à sua autonomia, dignidade e à sua vida, por parte do Estado ou de particulares, e, ao mesmo tempo, proporcionam a garantia prestacional do poder público para a proteção desses valores tão importantes aos indivíduos em uma sociedade (MEDEIROS, 2013).
Desta forma, na relação criada pelos direitos fundamentais, existe obrigatoriamente o titular desse direito, a ação que o direito ordena e o destinatário que cumprirá a ação designada. Porém, como já analisado, o ordenamento jurídico pátrio, apesar de promover certa proteção constitucional aos seres não-humanos, ainda não coloca essas criaturas como portadoras de direitos básicos, pois o direito brasileiro, em se tratando da proteção ambiental, ainda se prende à visão do antropocêntrismo moderado (GONÇALVES, 2012).
No Brasil, para que a pessoa natural adquira a personalidade e assim a titularidade de direitos e deveres, basta que nasça com vida, mesmo que venha a morrer logo em seguida. Sendo assim, pela doutrina nacional clássica, antes do nascimento com vida não há personalidade jurídica. Por outro lado, a pessoa jurídica, tutelada pelos artigos 40 e seguintes do Código Civil de 2002, não representa um ser orgânico, como é o caso da pessoa natural, porém usufrui da personalidade para exercer suas funções (GORDILHO, 2008).
A regra geral para que se tenha a titularidade de direitos no Brasil seria a qualidade da personalidade jurídica, o que, ainda, não está ao alcance dos animais não humanos. Contudo, o próprio ordenamento pátrio abre algumas exceções para que entes despersonalizados sejam detentores de diretos básicos. O artigo 2° do Código Civil de 2002 deixa claro que a personalidade é adquirida através do nascimento com vida, mas deixam-se resguardados os direitos do nascituro.
Segundo Nader (2003) ainda, no Direito brasileiro existem os chamados "entes despersonalizados". São ficções assim como a pessoa jurídica, porém desprovidos de personalidade. Entes como a massa falida, o condomínio, heranças, sociedades irregulares e o espólio não possuem características que ensejem o atributo da personalidade, porém, ainda sim são considerados detentores de direitos como a capacidade processual e a legitimidade passiva ou ativa em processos judiciais.
No ordenamento brasileiro, não há disposição legal que vede expressamente que esses entes sejam detentores, inclusive, de direitos fundamentais. Parece perfeitamente plausível admitir que uma pessoa jurídica exerça os direitos dispostos no artigo 5° da Constituição Federal de 1988, desde que compatíveis com a sua natureza, como por exemplo os direitos à igualdade, à propriedade, à ampla defesa, ao sigilo de correspondência e ao direito adquirido. No entanto, considerando a situação atual do tratamento dispensado às demais espécies de nossa fauna, não parece justo que, enquanto uma entidade que nem é um ser vivo pode gozar de uma gama de direitos fundamentais para a sua proteção (MEDEIROS, 2013).
Nesse contexto, nota-se que, apesar de os animais não-humanos serem destituídos de personalidade jurídica e não serem titulares de direitos, o próprio ordenamento brasileiro abre uma brecha para que essas criaturas possam, um dia, vir a ser sujeitos de direitos básicos, pois já admite tal possibilidade a determinados seres e entidades despersonalizadas, a exemplo do espólio, da massa falida e do condomínio.
Com inspiração no ordenamento jurídico de países como Suíça, Portugal e França, Daniel Braga Lourenço, propõe alguns caminhos para que a ideia aqui defendida se torne possível. A primeira alternativa seria conceder aos animais não humanos o status de "pessoa", para que venham a exercer direitos na mesma categoria dos absolutamente incapazes.
Cabe lembrar que, apesar de necessária para exercer determinados direitos, a capacidade para a vida civil não se confunde com a personalidade. Então, da mesma maneira que um bebê humano ou uma pessoa com sérios problemas mentais, os animais entrariam na categoria dos juridicamente incapazes, pois mesmo não possuindo discernimento para o exercício de atos civis, estariam resguardados por uma série de direitos fundamentais.
A segunda possibilidade é enquadrar os animais na categoria dos entes despersonalizados. Mesmo não possuindo personalidade, os seres não humanos seriam detentores de direitos específicos, determinados pelo Poder Legislativo.
A terceira e última proposta seria criar uma categoria nova para se enquadrar os animais não-humanos, algo intermediário entre o regime das coisas e o das pessoas, proporcionando uma atribuição de direitos voltados exclusivamente para esses seres, de tal sorte que eles deixariam de ser considerados meros objetos de direito, e ganhariam a qualidade de sujeitos.
Mesmo que o Brasil ainda esteja longe de concretizar qualquer uma dessas ideais de maneira efetiva, acredita-se que das opções sugeridas, a mais interessante para o nosso ordenamento seria a terceira. O animal deixaria de ser considerado como um bem e passaria a ter um status de sujeitos de direitos voltados aos seus interesses básicos. Já a primeira opção envolveria um complexo processo de conscientização da sociedade para que seja aceita a ideia do animal como detentor do mesmo status jurídico de um ser humano. E a segunda opção se torna pouco eficaz na prática, pois estaria sujeito à discricionariedade do legislador brasileiro, que até o presente momento, ainda não conseguiu se desvincular dos ideias antropocêntricos (SARLET, 2014).
O ordenamento jurídico brasileiro, apesar de possuir legislação voltada para a proteção dos animais não-humanos, ainda não proporciona uma defesa efetiva desses seres, pois ainda os considera como bens. Por isso a importância de se pensar na possibilidade dos animais como sujeitos de direitos fundamentais. Se essa proposta se tornasse realidade, haveria uma mudança de paradigma com relação ao modo de tratamento dispensado ao seres não humanos, que passariam a ser sujeitos de uma proteção garantida constitucionalmente.
Em termos práticos, é possível traçar exemplos de como essa proteção se concretizaria de maneira muito mais efetiva. Levando em conta as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, os animais sencientes passariam a ter o seu direito à vida e à integridade física respeitados, em face do Estado e de particulares. Para efeitos de fiscalização e defesa dos animais, o Ministério Público e a sociedade civil uniriam forças, inclusive para a representação em juízo dos animais, contra abusos e violações aos seus direitos (CASTRO, 2006).
Em suma, os animais não-humanos teriam suas necessidades básicas atendidas pelo Estado, para o exercício de uma vida saudável e digna, e não mais teriam de depender da benevolência do homem para ter seu valor próprio respeitado, deixando de ocupar o lugar secundário de objetos da vontade humana, e passariam a exercer sua condição natural de seres vivos, dotados de valor em si mesmo, dignos de proteção e essenciais para a continuidade da vida na Terra.
CONCLUSÃO
Ao longo do presente trabalho buscou-se apresentar fundamentos que pudessem agregar valor ao tema proposto, cuja ponto central é a possibilidade dos animais não-humanos serem detentores de direitos fundamentais básicos e de dignidade, implicando, com isso, a necessidade de o Estado brasileiro reconhecer, a exemplo de outros países, a sua condição de sujeitos de direitos.
Na legislação infraconstitucional há a relativização do conceito de crueldade, a fim de atender as necessidades do ser humano, pois, ao mesmo tempo em que se criminaliza os maus tratos aos animais, o ordenamento permite e regula práticas como a manutenção de rodeios, vaquejadas, jardins zoológicos, testes científicos em animais e a criação extensiva para o abate, acabando por instrumentalizar a defesa dos interesses animais para atender aos interesses do homem.
Além disso, há uma notória incongruência entre o tratamento dispensado a esses seres no texto constitucional e nos Códigos Civil e Penal atualmente em vigor, já que nos mencionados diplomas normativos, os animais não-humanos ainda ocupam a categoria de bens patrimoniais, o que permite que a sociedade ainda os trate como meras mercadorias, esvaziando ainda mais a tentativa de proteção exposta na Constituição de 1988 e na Lei de Crimes Ambientais.
Essa latente ineficácia das atuais leis de proteção animal se explica pela forte tendência antropocêntrica na formação de nosso ordenamento jurídico. Por isso é urgente a necessidade de se buscar formas para garantir uma proteção mais efetiva a estes seres vivos, e isso implica no reconhecimento da qualidade de sujeitos de direitos e titulares de dignidade.
No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos fundamentais estão dispostos dentro do texto constitucional, o que quer dizer que, mais do que regras, são princípios que servem como base para a interpretação e aplicação das demais normas do direito infraconstitucional. Já a qualidade da dignidade tem a função primordial de ressaltar o valor próprio do indivíduo que a possui.
Desta forma, conclui-se que para que se tenha uma efetiva proteção da vida digna dos animais não-humanos, muito além de uma reforma no Direito, é necessária uma mudança de paradigma no modo como os seres humanos enxergam os demais seres vivos.
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[1] Prof. Orientador do Curso de Direito do Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas - CIESA.
Bacharelanda do curso de Direito do Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas - CIESA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Gabriella Valente. Animais não humanos como titulares de direitos no ordenamento jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2019, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53576/animais-no-humanos-como-titulares-de-direitos-no-ordenamento-jurdico. Acesso em: 23 dez 2024.
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