RESUMO: Os direitos humanos dos refugiados são universais e promovidos independentemente de fronteiras. Compreender esta questão de modo diverso implica na ofensa aos direitos originários e no fracasso das relações interestatais, arriscando não apenas a efetividade de direitos fundamentais, mas também a paz mundial. A proteção desses direitos deve ultrapassar fronteiras e nações, não se justificando desrespeitar a dignidade humana sobre o fundamento de ofensa à soberania. Os princípios da dignidade instituídos pelos mecanismos coletivos internacionais, que representam os interesses dos povos e não apenas a economia global deve ser respeitada, pois a proteção aos direitos humanos é a garantia da existência da própria humanidade. A concepção de soberania ainda subsiste, mesmo que flexibilizada. O refugiado perdeu a cidadania por falta de proteção, guerra ou até perseguição de seu Estado. Sendo assim, deixará de ter seus direitos efetivados. A solução deveria ser a busca pela inserção em outro território, porém, na prática, não é tão simples pois, embora existam organizações interestatais para tutelar seus direitos, nenhum outro país, ainda que vinculado por tratados e convenções, o assimilará com facilidade. Sendo assim, é necessário repensar os paradigmas que fundamentam este impasse, pois, por si só, não haverá uma resolução prática e célere que respeite a dignidade humana, porque este é o lado mais vulnerável e não possui forças para efetivar seus direitos.
ABSTRACT: The human rights of refugees are universal and promoted independently of borders. Understanding this in a different way implies a copyright offensive and a failure of inter-state relations, jeopardizing not only the assertiveness of fundamental rights but also world peace. The protection of frontiers and nations is not justified by disrespecting a human dignity on the basis of the offense to sovereignty. The principles of dignity are international leaders who represent the interests of peoples and not just as a global economy. The designation of sovereignty still exists, even if flexibilized. The refugee lost his citizenship for lack of protection, war or even the persecution of his State. As such, you will no longer have your rights enforced. The solution should be a search for insertion in another country, but in practice it is not as simple as, although there are organizations of interest to their rights, which is different, although bound by conventions and conventions, it will assimilate easily. Thus, the paradigmatic journals that underlie this impasse, since in turn, are not a practice and cyberspace that respect human dignity, because they are more vulnerable and disproportionate to protect their rights.
PALAVRAS-CHAVE: Refugiados; Direitos Humanos; Sociedade Internacional.
INTRODUÇÃO
O direito internacional cria relações legais recíprocas no cenário planetário. A maior consequência disso é compreender o mundo como uma sociedade. Desta forma, algumas características podem ser observadas, como a universalidade, igualdade, interestatalidade e descentralidade.
Neste contexto em que a ordem universal se institui, questiona-se a força da soberania dos Estados. Dois são os principais motivos: os direitos dos indivíduos são garantidos independentemente do crivo estatal, por tornarem-se sujeitos de direito internacional, o que desconstitui a ideia do contrato social, tornando-o desnecessário e a globalização homogeneíza os preceitos mundiais.
Todavia, críticas são tecidas frente a estes aspectos, pois os direitos individuais só são efetivados nacionalmente. A globalização possui uma ideologia homogeneizadora, porém não apoia o fracasso do Estado. Primeiro porque é uma política econômica e o Estado é a entidade que efetiva e regula os negócios territorialmente. Segundo porque a integralização não é assimilada uniformemente em todo o mundo, o que acaba aumentando as desigualdades entre as nações.
Faz-se necessário o estudo da sociedade internacional e da soberania para perceber a importância dos direitos individuais na legislação internacional, o grau de aceitação desta, bem como a sua eficácia. Somente assim é possível mensurar como os refugiados e seus direitos são compreendidos no mundo.
1 ANÁLISE ORGANIZACIONAL DA SOCIEADADE INTERNACIONAL
O direito internacional pode ser compreendido de várias formas. Segundo Bull, o direito internacional é um conjunto de regras que conectam os Estados e outros agentes da política mundial em suas relações. Estas regras são consideradas reciprocamente obrigatórias, por isso é possível considerar a existência de uma sociedade internacional. (BULL, 2002, p. 147-149).
Raciocinando analogicamente, a sociedade internacional funcionaria do mesmo modo que as internas de cada Estado-nação. Isto porque haveria uma colaboração mútua entre os envolvidos na relação, todos viveriam em um mesmo tempo e espaço e possuiriam preceitos comuns.
Deste modo é possível deduzir que o conceito de direito internacional está intimamente ligado ao de sociedade internacional, uma vez que são as obrigações recíprocas, constituídas pelo direito internacional, que transformam as relações entre os Estados em sociedade. Esta possui algumas características. São elas: universalidade, igualdade, interestatalidade e descentralidade.
A universalidade é o entendimento de que há um mínimo ético irredutível, como nos direitos humanos, que decorrem da dignidade humana, um valor intrínseco à condição humana (PIOVESAN, 2011, p. 44). A igualdade é a concepção de que os Estados se encontram hierarquicamente no mesmo nível. A interestatalidade é a coexistência entre os Estados. Por último, a descentralidade é a divisão do poder de coerção entre todos os membros da sociedade.
Ao comparar o direito internacional com o interno, divergências foram encontradas, o que causou controvérsia. O status das regras internacionais foram questionados. Alguns doutrinadores chegaram a compreender que não se tratava de leis e esta conclusão seria um grave problema para a efetivação do direito internacional, pois os Estados poderiam decidir por não o adotar ou não o respeitar. Em se tratando da tutela de direitos universais, tais medidas seriam um caos para a sociedade internacional.
A inexistência, na sociedade internacional, de um poder coercitivo advindo de um soberano, característica tradicional das leis internas, levantou a indagação acerca da classificação das regras de direito internacional. Caso fossem consideradas leis, deveriam estar dotadas de coerção, como originalmente sugeriu Hobbes, quando disse que não existe lei quando falta um poder comum; John Austin, quando pregou que a lei seria a ordem de um soberano e Kelsen ao explicar que a lei se distingue das outras ordens sociais por possuir um caráter coercitivo (BULL, 2002, p. 150).
Os estudiosos tradicionais entendem que a característica fundamental da lei é a existência de um poder coercitivo. Entretanto, este raciocínio no direito internacional não é tão simples. No direito nacional o poder coercitivo é observado nas mãos do soberano, porém este não existe no âmbito internacional já que todos os Estados são iguais entre si. Enquanto nacionalmente há um poder coercitivo, que obriga obediência, internacionalmente há um dever de cooperação recíproca.
Ainda que a coercitividade do direto internacional não seja compreendida com clareza, tal fato não pode afastar de suas regras o caráter legal, porque acreditar que elas têm o status de lei torna possível a realização de atividades importantes na sociedade internacional. Disto decorre a necessidade de entender que as regras de direito internacional possuem status legal.
Na busca pela melhor explicação para dar a estas regras o status legal, surgiu uma corrente doutrinária que afirma existir coercitividade no plano internacional através das sanções por meio da força ou da coerção. Para tanto não seria necessária a existência de um governo mundial, acima de todos os Estados (BULL, 2002, p. 150), pois este seria encontrado de outras formas como, por exemplo, através das sanções que usam da força ou da coerção como uma forma de punição por violação legal ou para implementar uma lei.
Segundo Hans Kelsen, a lei é uma ordem coercitiva e possui como característica principal o monopólio da força. No que tange ao âmbito internacional, esta ordem coercitiva é baseada em sanções descentralizadas. Isto ocorre porque elas são aplicadas individualmente por cada Estado que em suas ordens legais exercem o monopólio da força (BULL, 2002, p. 151). Nacionalmente as sanções são consideradas centralizadas porque partem de uma única figura, o soberano e apenas ele é legítimo para aplicá-la. No âmbito internacional mutuamente os participantes da sociedade possuem o poder de sanção, pois a posição hierárquica é igual entre eles. Ante a igualdade, surge a descentralização.
O problema é que embora os Estados utilizem os atos de coerção para garantirem os seus direitos, não é em nome deles que o faz. Não é o desejo de aplicar e manter a lei que leva aos atos de coerção. Os Estados usam a força com objetivos políticos, para ganho material, por medo de outros Estados ou porque almejam impor um credo ou uma doutrina. Sendo assim, dizer que as regras são dotadas de coerção, porque se infringidas levam uso da força, não é totalmente correto. Afinal, não é este o único motivo.
Tal situação fragiliza o argumento de que as normas de direito internacional são dotadas de coerção. Isto porque não é em nome da lei, embora a favor dela, que tais atos são praticados. Neste caso, um modo alternativo seria desconstruir a ideia clássica de que só há lei quando houver coercitividade.
Na busca pela defesa do status legal do direito internacional, melhor seria questionar a doutrina de Hobbes e seus sucessores, que acreditavam que a lei implicaria obrigatoriamente em sanções com o uso da força ou da coerção (BULL, 2002, p. 153). Noções de regras legais baseadas em sanções derivam do direito nacional, porém não são uma característica obrigatória, o que retira a necessidade de estar presente no direito internacional. A ideia não é retirar o status legal do direito internacional, mas sim questionar a necessidade da coerção. Um exemplo é a resolução da Organização das Nações Unidas, que possui status legal, mas não é dotada de coerção.
As resoluções da Organização das Nações Unidas têm status legal, principalmente as da assembleia geral, quando aprovadas de forma reiterada pela maioria; quando revestidas de solenidade especial; quando apoiadas pelos Estados dos dois principais sistemas socioeconômicos ou dos três principais grupos políticos. Ao serem tomadas em conjunto, as resoluções da assembleia geral proporcionam uma fonte rica de evidência do desenvolvimento da lei consuetudinária. (BULL, 2002, p. 172).
O direito internacional deve ser compreendido como uma realidade social. A obediência dos Estados ocorre em parte por hábito e outra por inércia. O respeito ao direito se dá não pelo fato de que os membros da sociedade pretendem seguir os princípios em detrimento de seus interesses, mas sim pelo fato de que estes princípios se adequam aos seus interesses. Sendo assim, a função primordial do direito internacional é identificar os princípios e proclamar as suas supremacias. Além disso, deve expressar regras básicas de coexistência entre os membros da sociedade internacional. Entretanto, quando as obrigações legais conflitarem com os interesses dos Estados correram o risco de serem desrespeitadas.
A atuação em conformidade com a norma possui três motivações. Em primeiro lugar, a obediência pode se dar porque há uma exigência legal e a ação ordenada legalmente é considerada valiosa, mandatória ou obrigatória, com um fim em si mesmo, como meio de realizar valores. Estas normas são conhecidas como direito internacional da comunidade. Em segundo lugar, a obediência pode advir da coerção ou da ameaça. Estas normas são reconhecidas como direito internacional do poder. Em terceiro lugar, a obediência pode surgir em decorrência do interesse de um Estado na reciprocidade com os outros. Estes acordos e princípios são reconhecidos como o direito internacional da reciprocidade (BULL, 2002, p. 161).
O direito internacional não é condição necessária a ordem internacional, as suas funções são essenciais mais podem ser exercidas de outras formas. Além disso, o direito internacional não é suficiente para manter a ordem internacional e algumas de suas medidas até a prejudicam como, por exemplo, a discussão sobre os direitos humanos, que é causa de tensão entre os Estados. O direito internacional é instrumento para outros objetivos que não a ordem internacional, propósitos políticos e a promoção a ordem são um deles.
Os Estados eram os únicos sujeitos de direito internacional, contemporaneamente os indivíduos também são, como é possível observar na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Ademais, as organizações internacionais interestatais também fazem parte desses sujeitos de direito. Esta mudança transformou o direito em mundialmente comunitário. Phillip Jessup diz que houve uma modificação do direito internacional para o transnacional e explica que este regula todos os eventos e ações que transcendem as fronteiras nacionais. De acordo com C. Wilfred trata-se de um direito comum da humanidade. Já Percy Corbertt pregou que o direito internacional se transformou em direito mundial (BULL, 2002, p.168).
Se os direitos do indivíduo são confirmados internacionalmente, ainda que contra os interesses dos seus Estados e se estes direitos são proclamados independentemente de sua situação como cidadão, então a soberania estatal sobre os cidadãos, que implica dever de obediência, é contestada e a estrutura da sociedade dos Estados soberanos é posta em perigo. Uma vez que o indivíduo não precisa da condição de cidadão para ter seus direitos efetivados, o dever de obediência torna-se desnecessário.
Tal fato quebra com a proposta de Hobbes do contrato social, que prega a mitigação da liberdade pessoal em prol do soberano para que este garanta os direitos dos cidadãos. Tal afirmação retira o Estado-nação do cenário principal do direito internacional e o substitui pela sociedade internacional, trocando assim a soberania pela universalização, que é o direito internacional pertencente a todos os povos, com preceitos comuns.
Corroborando com os preceitos de universalização está o direito cosmopolita, que se limita a hospitalidade universal e se estabelece diante do princípio de que todos tem o mesmo direito originário sobre o solo. Sendo assim, nenhum ser humano possui mais direito do que outro na terra. O direito sobre o solo é decorrente do direito à liberdade sobre o corpo, que precisa de espaço e da propriedade coletiva originária sobre o solo. Entretanto este não é um direito adquirido.
Todo cidadão da terra possui o direito de tentar a comunidade com todos, de modo que para isto visite os diversos lugares da terra e não seja tratado como inimigo. Sendo assim, haverá uma lesão a este direito quando os que chegam não são suportados por aqueles que ali estão.
Neste sentido, critica-se a noção de “nações civilizadas”, que se refere eufemisticamente à conquista de outros povos. Os Estados civilizados são inospitaleiros e ao visitarem os países e povos estrangeiros encaram como um ato de conquista, o que aumenta a injustiça. De acordo com Kant, este ato reduz o outro a nulidade, tornando impossíveis as relações pessoais (NOUR, 2004).
Diante disso, percebe-se que os direitos humanos dos refugiados são universais e devem ser promovidos independentemente de fronteiras. Compreender esta questão de modo diverso implica na ofensa aos direitos originários e no fracasso das relações interestatais. Tal fato não colocaria em risco apenas a efetividade de direitos fundamentais, mas também a paz mundial.
2 O ESTADO-NAÇÃO E A SUA SOBERANIA FLEXIBILIZADA
No direito romano, o instituto similar ao da soberania clássica era o poder de império. Através dele, os romanos acabavam por impor suas vontades aos povos vencidos, possuíam autoridade suprema sob a população e o território e o único limite eram as suas próprias leis (PESSÔA, 2011, p. 560).
As navegações modificaram a distribuição de poder no mundo. A criação do Estado moderno, soberano, estabeleceu relações diferentes das que ocorriam na idade média. Jean Bodin definiu a soberania como um poder estatal absoluto, perpetuo, inalienável, uno e indivisível, limitado apenas pelo direito natural e a igreja. (BARROS, 2011).
A modificação conceitual da soberania demonstra que esta não pode possuir um conceito rígido. Inicialmente foi compreendida como o domínio dos povos e a supremacia do território, posteriormente transformou-se em um poder absoluto e arbitrário, que motivou lutas sociais para sua limitação.
Na busca por critérios de delimitação e diferenciação a soberania foi dividida em duas: interna e externa. A primeira diz respeito ao domínio do Estado frente ao seu território, sua população e sua ordem jurídica interna. A segunda representa o poder do Estado de celebrar pactos e tratados internacionais.
A maior transformação da soberania ocorreu ao passo em que a política de proteção aos direitos humanos se desenvolvia. De acordo com Falk, o surgimento dos direitos humanos acentuou a diferença entre a soberania interna e a externa (FALK, 2000).
Ao passar dos anos a soberania se tornou um pilar da ordem mundial. Ao analisá-la é possível perceber as características da sociedade internacional, por trata-se de um critério medidor de envolvimento dos Estados. O poder soberano não pode mais ser atrelado apenas ao território. Contemporaneamente, ele está ligado a ideia de cooperação internacional, que age em busca de finalidades comuns. O Estado não é visto como um ente isolado, supremo e independente, mas sim como membro da sociedade internacional.
Ainda que culturalmente diferentes, socialmente os Estados se encontram atrelados por relações recíprocas, que são regidas por preceitos comuns, mínimos éticos, como os direitos humanos, intrínsecos a todos os indivíduos. Por isso, um ato de soberania internacional também será um ato de respeito aos direitos humanos, que parte da premissa de que as nações devem respeitar os direitos do homem e vigiar os atos que os transgrida (PESSÔA, 2011).
Segundo Bobbio,
[...] posta na base de uma nova concepção de Estado- que não é mais absoluto e sim limitado, que não é mais um fim em si mesmo e sim meio para alcançar fins que são postos antes e fora de sua própria existência – a afirmação dos direitos do homem não é amis expressão de uma nobre exigência, mas o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos (BOBBIO, 1992)
Desde os primórdios os diretos humanos foram considerados uma preocupação do direto internacional. Entretanto após os horrores da segunda guerra houve uma necessidade de a sociedade internacional repensá-lo e redefini-lo. Duas grandes consequências surgiram. O conceito de soberania absoluta foi modificado e o indivíduo foi incluído como sujeito de direito internacional, o que trouxe o fortalecimento dos direitos humanos.
Ao ser incluído como sujeito de direito internacional o indivíduo passou a possuir mecanismos processuais para garantir sua proteção. O conceito de soberania estatal absoluta – Estado como único sujeito de direito internacional - foi abandonado em prol da proteção e do amparo dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, nacional e internacionalmente. Entre outras medidas tomadas para fortalecer os direitos do homem duas foram mais importantes: a busca pela salvaguarda de uma existência minimamente digna e a diminuição das distinções ou ofensas existentes, sejam nacionais, sociais ou raciais (FRENEDA, 2011).
Estes ideais foram aceitos com facilidade pela sociedade internacional que ainda estava sobre os efeitos dos horrores da guerra. Entretanto, apenas a declaração formal da existência desse direito não seria suficiente, por isso criou-se instrumentos de consolidação, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ao passo que os Estados assumem compromissos mútuos através de convenções e tratados, que mitigam seus poderes discricionários, reduzem a sua soberania. Internamente, esta redução é demonstrada ao reconhecer o indivíduo como sujeito de direito internacional. Externamente, a redução se mostra ao reconhecer que outros Estados também são dotados de soberania.
Quando um Estado reconhece um compromisso, impõe-se restrições e limites, pois deve respeitá-lo, não podendo, posteriormente, alegar juridicamente apenas a sua vontade para se excluir das obrigações que escolheu se impor (MAZZUOLI, 2004). O Estado, quando aceita a posição de colaborador ao lado dos demais membros da sociedade, torna pleno o conceito contemporâneo de soberania compartilhada, que nada mais é que o respeito mútuo entre os Estados em prol os objetivos comuns, respeitando as normas pactuadas e os direitos humanos (FRENEDA, 2011).
A proteção aos direitos humanos deve ultrapassar fronteiras e nações, não se justificando desrespeitar internamente a dignidade humana sobre o fundamento de que a soberania nacional estaria sendo ofendida ou suplantada. Deve-se observar os princípios da dignidade instituídos pelos mecanismos coletivos internacionais, que representam os interesses dos povos e não apenas a economia global, pois a proteção aos direitos humanos é a garantia da existência da própria humanidade.
O novo entendimento que superou o conceito tradicional de soberania levou alguns autores a questionar o seu plano existencial. Entretanto, a concepção de soberania ainda subsiste, mesmo que flexibilizada.
3 CONSEQUÊNCIAS DA GLOBALIZAÇÃO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL
A compreensão do mundo como sociedade, a inserção dos indivíduos como sujeitos de direito internacional, a efetivação dos seus direitos sem o crivo do Estado e o reconhecimento de uma ordem legal sem coerção, levaram ao enfraquecimento da figura do Estado-nação. Alguns doutrinadores chegaram a acreditar que este estaria fadado ao fracasso por falta de finalidade. Todavia, esta dedução é precoce, pois um outro fenômeno deve ser considerado: a globalização.
Em um contexto de globalização, dois entendimentos importantes acerca dos Estados são apresentados. O primeiro o interpreta como um soberano fragilizado, que só possui como função garantir os negócios globais. O segundo o concebe como um soberano forte, que controla os negócios internos, mas que ao assimilar os preceitos comuns de um mundo globalizado, aumenta as desigualdades internas.
A flexibilização da soberania levou a compreensão de que os Estados se encontravam fragilizados. A globalização, como fenômeno de integração social internacional, em tese, deveria contribuir para o fortalecimento desde pensamento. Entretanto, por também se tratar de um acontecimento econômico, corrobora com a função primária estatal, ou seja, com o controle dos povos e do território.
Por um lado, este controle poderá ser percebido como a única função do Estado, existente apenas como meio para manter a ordem e eficácia dos negócios globais, sem interferir neles. Por outro, como forma de selecionar quais os negócios aptos para ingressar no território nacional. Todavia, será um ponto de intercessão nessas duas vertentes afirmar que o Estado está inserido na sociedade internacional e é por ela influenciado.
Os que são adeptos da primeira corrente explicam que os ideais de uma ordem universal vão de encontro aos negócios mundiais. A universalização transmitia a esperança, a intenção e a determinação de se produzir a ordem universal. Este termo se refere aos efeitos globais, que notadamente não são pretendidos, nem previstos pelas iniciativas empreendimento globais (BAUMAN, 1999). Isto porque o Estado funcionaria como garantidor dos negócios e a substituição dele por algum tipo de potência global prejudicaria os interesses do mercado internacional.
Historicamente é característica do Estado possuir recursos para se estabelecer e impor normas, inclusive de negociações, em um território, bem como ser uma entidade hierarquicamente organizada, dotada de soberania. Todavia, contemporaneamente não é bem assim. Diante de todas as mudanças já expostas, a soberania se tornou enfraquecida. A nova concepção apresenta, para a primeira corrente, um Estado fraco e impotente.
O Estado possui apenas a necessidade básica, ou seja, a repressão. De base material destruída, soberania e independência anuladas, classe política apagada, o Estado-nação se torna apenas um serviço de segurança. Ele seria reduzido ao papel de policial local, com a função de garantir o nível necessário de ordem para realização dos negócios (BAUMAN, 1999). Entretanto, seria fraco para impor freios às empresas globais, incapaz de ser temido. Diferentemente da ideia anterior de que a ordem global resultaria da cooperação entre os membros da sociedade internacional, nesta visão crítica ela seria a reunião de ordens locais. Cada Estado cuidaria de seus interesses locais.
Uma crítica mais branda a respeito dos efeitos da globalização é a apresentada pela segunda corrente, que parte do pressuposto de que a globalização pretende homogeneizar os membros integrantes da sociedade internacional, mas o efeito colateral disto é aumento das desigualdades internas de cada nação, pois as assimilações dos preceitos internacionais não acontecem com igualdade no mundo.
A globalização exige a eliminação das fronteiras geográficas nacionais e difunde a modernização, expansão econômica, política, militar e territorial, fundindo e destruindo identidades nacionais pela imposição de governos e modos de produção, enquanto mundializa a cultura (GUERRA, 2004, p. 336). Porém, não ocorre desta forma. O mercado global se apresenta como capaz de homogeneizar o planeta, enquanto, na verdade, as diferenças locais são profundas. Busca-se a uniformidade, mas o mundo se torna menos unido, o que torna distante a ideia de uma cidadania universal, ao passo que o consumo é estimulado (SANTOS, 2001, p. 9).
A universalização busca um mundo igualitário, uniforme, com ideais similares. Embora a globalização esteja impregnada dessa ideologia, por ser um processo de aprofundamento internacional de integração econômica, social, cultural e política, quando é assimilada de formas diferentes dentro de cada Estado o efeito é reverso. Sendo assim, o que deveria unir as regiões do mundo as distancias.
Deste modo, o Estado é fortalecido para atender a economia e garantir os interesses internacionais, em detrimento das populações, cuja vida se torna mais difícil. A fome e o desabrigo são gerais em todos os continentes. Somente é possível pensar na construção de um novo mundo através de uma globalização mais humana. (SANTOS, 2001, p. 10). Humanizar a globalização seria buscar uma integração que respeitasse o tempo de assimilação de cada Estado e os direitos humanos, não apenas que visasse os lucros.
Não há dúvidas de que a noção de soberania foi revista. Entretanto, para esta segunda corrente, o Estado continua forte e a maior prova disso é que as empresas transnacionais e as instituições supranacionais não possuem força normativa para impor, dentro de cada território, sua vontade econômica ou política, uma vez que cabe ao Estado nacional regular o mundo financeiro e construir infraestruturas, atribuindo às empresas escolhidas a condição de viabilidade. O mesmo ocorre com as instituições supranacionais, cujas recomendações precisam de decisões internas de cada país para que possuam efetividade (SANTOS, 2001, p. 38).
A função do Estado não será apenas de manter a ordem e de efetivar os negócios impostos pela globalização, como dito pela primeira corrente, posto que só é efetivado nacionalmente o que for aprovado por ele, através de seu poder legislativo, constitucional, que ratifica as leis internacionais e permite o funcionamento de empreendimentos estrangeiros no país. Ademais, a cessão da soberania não é natural e automática, uma vez que depende da forma como o governo de cada país decide se inserir na globalização (SANTOS, 2001, p. 38). Ou seja, o Estado regulará seu nível de inserção na globalização e na sociedade internacional, o que automaticamente determinará o grau de flexibilização da sua soberania.
Outra questão importante diz respeito aos direitos humanos individuais. Ainda que o indivíduo tenha se tornado sujeito de direito internacional e tenha garantido a sua proteção para além do Estado, seus direitos só podem ser efetivados por este e o motivo é simples: os organismos de proteção interestatais, que garantem estes direitos internacionalmente, não possuem território e os outros Estados não assimilam facilmente estrangeiros. Sendo assim, a única forma de tutela e garantia desses direitos é pelo Estado, como cidadão.
O cidadão de um lugar pretende também se tornar do mundo, porém este não regula lugares. O cidadão do mundo é uma promessa distante. Os atores globais eficazes são antihomens e anticidadãos, sendo as realidades nacionais as únicas condicionantes para a existência de um cidadão. Assim, o cidadão só o é como cidadão de um país. A cidadania plena depende de soluções locais (SANTOS, 2001, p. 55).
A história elucida porque o estrangeiro não é uma figura interpretada positivamente. Tal esclarecimento repousa na evolução do conceito de humanidade. Primordialmente, os homens não eram aqueles que pertenciam a espécie humana. Em Roma, no período republicano, a palavra ‘humanitas’ era utilizada para distinguir o homo humanus, o romano educado, do homo barbarus, aquele que não era um cidadão romano (DOUZINAS, 2011, p. 4). Ou seja, só era considerado homem, correto, educado, aquele que pertencesse a Roma, caso contrário, não era tido como um.
Posteriormente, com a expansão da igreja católica, compreendeu-se que todos são iguais perante Deus, iniciando-se o universalismo, pois todos os povos seriam igualmente parte da humanidade. Entretanto, aqueles que eram considerados pagãos somente deveriam ser reconhecidos como iguais se aceitassem o catolicismo. Já aos não-católicos, assumidamente de outras religiões, não haveria possibilidade deste reconhecimento.
A separação clássica entre grego (ou humano) e bárbaro era baseada em fronteiras territoriais claramente demarcadas. No império cristão, a fronteira foi internalizada e dividiu o globo conhecido diagonalmente entre o fiel e o pagão (DOUZINAS, 2011, p. 4).
No final do século XVIII, a noção de humanidade foi revista, passando a ser empregada no sentido que conhecemos hoje. Neste período, a ideia de humanidade foi transferida de Deus para a natureza. O conceito de ‘homem’ foi criado e transformado em um valor absoluto e inalienável, em torno do qual todo o mundo girava. (DOUZINAS, 2011, p. 5). A inalienabilidade foi atrelada aos direitos naturais porque eles existiam independentemente de um governo para efetivá-los e eram a representação dos eternos direitos dos homens, inextinguíveis.
Ainda que o entendimento acerca dos direitos do homem tivesse mudado, possuía raízes dos entendimentos anteriores. A Declaração francesa é uma prova disso. Neste instrumento o homem era tido como universal, social, mas precisava de um ato que assim o declarasse, através da associação política nacional e estatal. Além disso, o homem particular, indivíduo, era o cidadão nacional e somente ele possuía direitos.
A humanidade era obtida através da aquisição dos direitos políticos. Desta forma, o estrangeiro, por não ser cidadão, não integrava o Estado, não possuía direitos e era considerado menos humano. Relacionando às épocas anteriores, o estrangeiro moderno é o bárbaro ou o pagão, o inumano ou o subumano. Sendo assim, a humanidade estaria atrelada à cidadania. Hodiernamente estes conceitos ainda estão vinculados. Em um mundo globalizado, não possuir cidadania, ser um refugiado é ser um representante histórico da inumanidade. A solidariedade e a compaixão são sentimentos vinculados a empatia, porém só existe capacidade de identificação com semelhantes. Ou seja, não há uma interpretação positiva do estrangeiro, nem o desejo de amparo aos refugiados porque, historicamente, eles não são tidos como semelhantes aos nacionais, nem sequer aos “humanos”.
Deste modo, a única forma de garantir os direitos de um indivíduo será na figura de cidadão, integrante de uma nação. Trata-se de uma construção de baixo para cima e o principal é a existência de individualidades e de garantias jurídicas para elas. A base geográfica para isso será o lugar, que é considerado como espaço para o exercício da existência plena (SANTOS, 2001, p. 55).
A questão é que o refugiado perdeu a cidadania por falta de proteção, guerra ou até perseguição de seu Estado. Sendo assim, deixará de ter seus direitos efetivados. A solução seria a busca pela inserção em outro território, porém na prática esta lógica não é tão simples pois, embora existam organizações interestatais para tutelar seus direitos, nenhum outro país, ainda que obrigado por tratados e convenções, o assimilará com facilidade.
CONCLUSÃO
Os direitos humanos dos refugiados são universais e devem ser promovidos independentemente de fronteiras e ideologias nacionalistas. Compreender esta questão de modo diverso implica na ofensa aos direitos originários e no fracasso das relações interestatais, arriscando não apenas a efetividade de direitos fundamentais humanos, mas também a paz mundial.
A proteção desses direitos deve ultrapassar fronteiras e nações, não se justificando desrespeitar a dignidade humana sobre o fundamento de ofensa à soberania, a homogeneidade nacional, a segurança interna ou estabilidade econômica, pois tais argumentos possuem uma carga estigmatória e preconceituosa. O refugiado, quando acolhido, beneficia a sociedade interna com seus predicados culturais e individuais. A violação de direitos fundamentais com base em afirmações que beiram o cego idealismo e sem comprovações práticas deve ser inadmitida no âmbito do direito internacional. Os princípios da dignidade instituídos pelos mecanismos coletivos internacionais, que representam os interesses dos povos e não apenas a economia global deve ser respeitada, uma vez que a proteção aos direitos humanos é garantia da existência da própria humanidade.
A concepção de soberania, como forma de imposição da vontade maior do Estado, ainda subsiste, mesmo que flexibilizada por organismos de direito internacional que determinaram o indivíduo como sujeito de direitos neste arcabouço protetivo. Ainda que para uma eficácia plena seja necessária uma atuação territorial.
O refugiado perdeu a cidadania por falta de proteção, guerra ou até perseguição de seu Estado. Sendo assim, deixará de ter seus direitos efetivados. A solução natural deveria ser a busca pela inserção em outro território, porém, na prática, como foi observado, não ocorre facilmente pois, embora existam organizações interestatais para tutelar seus direitos, nenhum outro país, ainda que vinculado por tratados e convenções, o assimilará rapidamente.
Sendo assim, é necessário repensar os paradigmas que fundamentam este impasse na ceara do direito internacional, pois, por si só, não haverá uma resolução prática e célere que respeite a dignidade humana, porque este é o lado mais vulnerável e não possui forças para efetivar e impor seus direitos.
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Bacharela em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã, Advogada, Mestra em Historicidade dos Direitos Fundamentais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Especialista em direito público pela Ebradi. Docente pela Uninassau Boa Viagem.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTE, LAURA GALVAO MARQUES. Sociedade internacional: os impactos da soberania e da globalização ao direito internacional de refúgio. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2019, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53685/sociedade-internacional-os-impactos-da-soberania-e-da-globalizao-ao-direito-internacional-de-refgio. Acesso em: 23 dez 2024.
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