AYSSA MOSELLE VIANA CASTRO
(Coautora)
RESUMO: A finalidade precípua deste trabalho reside em analisar como o instituto da atuação estatal no domínio econômico é abalizado diante do Direito Administrativo pátrio e das normas constitucionais, em face da ascensão dos debates na seara política a respeito da desmobilização do Estado no tocante a sua atuação na esfera econômica, promovida por meio de mecanismos que reduzam sua presença em tal processo, como as conhecidas privatizações. Deveras, a Constituição Federal brasileira de 1988 buscou consubstanciar no País o estado de bem-estar social, o welfare state, realidade que nos transloca para uma análise profunda com relação ao aparente choque entre discurso desmobilizador do Estado e fundamentos constitucionais. Para tanto, o presente artigo pretende fazer um exame acerca dos institutos balizadores da atuação do Estado no domínio econômico no Direito Administrativo, passando pela investigação de sua história no contexto jurídico e social pátrio, pela averiguação dos seus princípios basilares e pelo estudo das formas de ação estatal nesse âmbito. Além disso, também é objetivo deste artigo tecer algumas perspectivas atinentes à atuação do Estado brasileiro no domínio econômico, sondando como a dinâmica do atual contexto político poderá influir nos rumos que esse instituto poderá tomar no futuro.
Palavras-chave: Administrativo. Atuação. Estado. Domínio econômico.
Na atual conjuntura de globalização, que proporcionou um contexto de integração social, cultural e, principalmente, econômica, várias nações, em especial as em desenvolvimento, assistem a um verdadeiro boom financeiro. Todavia, em um horizonte de crises intermitentes, com o passar das épocas, a própria economia foi obrigada a ceder a algumas limitações de cunho social.
Em meio aos escombros do pós-Segunda Guerra Mundial, emergiu uma espécie sui generis de Estado interventor, que buscaria a promoção do welfare state (estado de bem-estar social), em substituição ao Estado liberal. Zeloso dizer que este não foi extinto, mas transfigurado, de modo a atender a um princípio que presenciava seu alvorecer: o da dignidade da pessoa humana, estampado na Constituição Federal de 1988 (art. 1°, III).
A intervenção estatal no âmbito econômico deveria, portanto, guiar-se pela promoção de outros “subprincípios”, sempre norteados pela dignidade humana, como a livre iniciativa e a humanidade, especificados no transcorrer deste artigo. Diz-se modelo de Estado interventor sui generis uma vez que aspectos liberais, acertadamente, não foram dizimados ou esquecidos, e sim limitados, condicionados à atenção para com o social. Não por acaso a Norma Fundamental de 1988 tornou transparente que a propriedade deve cumprir seu papel social, sob pena de ser desapropriada. Da mesma forma, pode-se apresentar como justificativa para o termo que o Estado mediador não se prestou a ser um regime arbitrário, que desprezasse as liberdades fundamentais dos cidadãos. Pelo contrário: o Estado atuaria em favor delas.
A atual Constituição brasileira, por sua vez, elenca valores da ordem econômica, que devem se ocupar em observar os ditames da justiça social (art. 170, caput). Ao pregar essa premissa, o Estado acaba por tomar para si o dever de zelar tanto de forma reguladora quanto executora no contexto do domínio econômico. Não obstante, conforme adiantado, a globalização tem imposto uma readaptação em vários âmbitos, inclusive o econômico, aparentando exigir menor presença do Estado no setor executor, área que deveria ser ampliada aos particulares, e não mais aos entes públicos. Eis que surge, por exemplo, o inconstante debate a respeito das privatizações e concessões, levado a cabo por governos brasileiros anteriores, em face da autocontenção da atuação do Estado na seara econômica.
Nesse sentido, diante da ascensão das discussões no âmbito político acerca da desmobilização do Estado no tocante a sua atuação na esfera econômica, o presente artigo busca investigar o instituto da atuação do Estado no referido domínio através de uma perquisição no Direito Administrativo brasileiro, com fulcro igualmente no Direito Constitucional. Para tal fim, este texto busca examinar os institutos balizadores da atuação estatal no domínio econômico, passando pela investigação de sua história no contexto jurídico e social pátrio, pela averiguação dos seus princípios basilares e pelo estudo das formas de ação do Estado nesse âmbito.
Além disso, também é objetivo deste artigo tecer algumas perspectivas atinentes à atuação do Estado brasileiro no domínio econômico, sondando como a dinâmica do atual contexto desmobilizador estatal poderá influir nos rumos que esse instituto poderá tomar no futuro.
Antes de se propor a investigar como a atuação do Estado brasileiro no domínio econômico funciona na contemporaneidade, faz-se de extrema importância que se analise como tal prerrogativa foi regida no País em épocas pretéritas. Para tanto, é mister tomar como base a Constituição vigente nos respectivos períodos e, sobretudo, considerar a configuração social dominante.
Não custa ressaltar que a própria sociedade é que impõe mudanças na conformação e no aparelho do Estado. Cada uma das épocas passadas da História brasileira fez com que o seio social mudasse, afetando seu ordenamento jurídico e, ao mesmo tempo, sendo afetado por ele. Dalmo de Abreu Dallari (2009), sabiamente, destaca que a vida em sociedade traz ao indivíduo inequívocas vantagens, mas, ao mesmo tempo, torna possível que limites venham a ser criados para restringir certos aspectos de sua existência, sendo que tais limitações, em certos momentos, podem ser tão presentes a ponto de possuir o condão de contrair a liberdade individual. Essas ressalvas são bem ilustradas no Direito Administrativo brasileiro ao se vislumbrar a atuação do Estado no domínio econômico que, para promover a observância e o respeito a certos princípios doravante melhor tratados, age impondo limites ao particular. Nesse sentido, uma breve perquisição histórica para se observar como se chegou até o hodierno modelo de welfare state econômico no Brasil se faz de extrema necessidade.
A primeira Carta Magna pátria, datada de 1824, que instituiu a Monarquia como forma de governo e o Unitarismo como forma de Estado (CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 518-519), não tratou de estabelecer diretrizes ou bases na conformação de um Estado social e regulador da economia. Pelo próprio momento histórico, em que se sobressaía o liberalismo econômico e social no plano internacional, não soa estranho que assim tenha se dado em terras brasileiras.
Durante esse período, emergido das ruínas do absolutismo, a sociedade – leia-se burguesia – logrou, através do liberalismo e da intervenção mínima do Estado – que outrora tinha sido, evidentemente, máxima –, alcançar um patamar razoável de liberdade em diversas áreas de sua vida individual.
No que concerne ao liberalismo, Carvalho Filho (2015, p. 943) realça que não caberia ao Estado a possibilidade de ingerência ou regulação dos rumos da economia, limitando-se a “uma postura de mero observador da organização processada pelos indivíduos”.
Retrato desse contexto, a primeira Constituição brasileira, de 1824, destacava que eram invioláveis os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, tendo estes por alicerces a liberdade individual, a propriedade e a segurança (art. 179). A referida Constituição, em nenhum momento, mencionava a função social da propriedade, que só surgiria décadas depois. A única ressalva constitucional expressa dizia respeito ao caso de o “bem público legalmente verificado exigir o uso, e o emprego da Propriedade do Cidadão”, sendo ele previamente indenizado pelo valor dela (art. 179, XXII). O mesmo inciso deixava claro que a lei marcaria os casos em que se sobressairia esta única exceção ao direito de propriedade.
Não obstante a própria Constituição de 1824 seja considerada, em seus moldes, liberal, podem surgir questionamentos acerca desse perfil, considerando a realidade imposta à época. É bem verdade que, durante praticamente todo o período imperial, a manutenção da escravatura deixou lastimáveis consequências na organização social brasileira. É cediço que os escravos eram tidos como meros instrumentos responsáveis por fazer a estacionária economia agrária brasileira girar. As leis abolicionistas, portanto, ao atribuírem direitos aos escravos, até a sua efetiva libertação em 1888, não deixa de configurar uma intervenção do Estado imperial no domínio econômico. Corroboram para essa concepção as palavras de Boris Fausto (2000, p. 236), que, ao tratar da abolição da escravatura, leciona que: “Os fazendeiros do café do Vale do Paraíba desiludiram-se do Império, de quem esperavam uma atitude de defesa de seus interesses”.
Por outra visão, complementar à primeira, diga-se, tais leis protetivas não passariam de concretização da justiça social para com esses indivíduos injustiçados em decorrência, simplesmente, de sua cor. São exemplos de leis abolicionistas a Lei Imperial n° 581, de 4 de setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós), que estabeleceu medidas combativas ao tráfico intercontinental de escravos, e a Lei Imperial 3.353, de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea), que declarou extinta a escravidão no Brasil.
Não obstante, em suma, vigorava a doutrina do chamado laissez faire, assim definida por José dos Santos Carvalho Filho (2015, p. 811):
A doutrina do laissez faire assegurava ampla liberdade aos indivíduos e considerava intangíveis os seus direitos, mas, ao mesmo tempo, permitia que os abismos sociais se tornassem mais profundos, deixando à mostra os inevitáveis conflitos surgidos da desigualdade entre as várias camadas da sociedade. Esse Estado-polícia não conseguiu sobreviver aos novos fatores de ordem política, econômica e social que o mundo contemporâneo passou a enfrentar.
O desmonte do mencionado “Estado-polícia” se deu, tradicionalmente, observando o cenário internacional, por meio da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição alemã de 1919 (Constituição de Weimar), emergindo o constitucionalismo social, “que é a inclusão nas Constituições de preceitos relativos à defesa social da pessoa, de normas de interesse social e de garantia de certos direitos fundamentais (…)” (MARTINS, 2012, p. 9).
Dessa movimentação da ordem constitucional para salvaguardar direitos sociais, concomitante e posteriormente, surgiram efeitos para o próprio Estado que deveria cumprir certos encargos visando exatamente a defesa dessas prerrogativas individuais. Entre tais múnus, o de intervir para resguardar o domínio econômico de abusos, por exemplo.
No entanto, na matriz constitucional brasileira, assim como ocorre com a maioria dos significativos avanços envolvendo os direitos fundamentais, todas essas incontestes mudanças envolvendo o plano social demorariam um pouco mais para ocorrer.
Em 1889, tem fim o império e inicia-se o período republicano.
1.2.1. Primeira República
A Primeira República é representada pela Carta Magna de 1891, que estabeleceu o federalismo, o presidencialismo (art. 41, CF/91) e, logicamente, a República (art. 1°, CF/91). Assim como a Carta Constitucional anterior, esta não tratou de reservar espaço para a regulação do domínio econômico pelo Estado. O direito de propriedade foi mais explicitamente contido pela norma constitucional do artigo 72, § 17, segundo o qual o referido direito “mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.
No tocante à efetiva atuação do Estado brasileiro na economia, embora a Constituição de 1891 se pretendesse liberal, o princípio da República federativa foi, de certa forma, desarticulado, ao se observar que a estrutura do governo federal se curvou diante de dois grandes Estados-membros, produtores de café: Minas Gerais e São Paulo.
Boris Fausto (2000, p. 266) ensina que
A política de valorização do café constitui um dos exemplos mais nítidos do papel de São Paulo na Federação e das relações entre os vários Estados. A partir da década de 1890, a produção cafeeira de São Paulo cresceu enormemente, causando problemas para a renda da cafeicultura. Esses problemas tinham duas fontes básicas: a grande oferta do produto fazia o preço baixar no mercado internacional; a valorização da moeda brasileira, a partir do governo Campos Sales, impedia a compensação da queda de preços internacionais por uma receita maior em moeda nacional. (…) Se, em números imaginários, o preço da saca de café caísse de trinta para vinte libras esterlinas e a moeda brasileira se desvalorizasse na mesma proporção, os cafeicultores receberiam, em moeda nacional, o mesmo valor que obtinham antes da queda de preço no mercado internacional (…).
Tal atitude intervencionista do governo federal no trato com ambos os Estados supracitados acabou por favorecer o desenvolvimento maciço destes, em detrimento dos demais. A República oligárquica, enfim, foi desmantelada em 1930, quando Getúlio Vargas, que havia perdido as eleições naquele ano para o paulista Júlio Prestes, lidera o movimento conhecido como Revolução de 30 e toma o poder, fazendo nascer um “novo tipo de Estado” (FAUSTO, 2000, p. 327), pautado, dentre outras matérias, pela maior atuação social do Estado em diversos âmbitos da vida política, cultural e, sobretudo, societária.
1.2.2. CONTEXTO PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1934
Após quatro anos de governo provisório varguista, estabelece-se uma nova ordem constitucional, substituindo aquela notadamente liberal iniciada em 1891. Essa nova fase constitucional, nas palavras de Bonavides (2009, p. 366):
Com a Constituição de 1934 chega-se à fase que mais perto nos interessa, porquanto nela se insere a penetração de uma nova corrente de princípios, até então ignorados do direito constitucional positivo vigente no País. Esses princípios consagravam um pensamento diferente em matéria de direitos fundamentais da pessoa, a saber, faziam ressaltar o aspecto social, sem dúvida grandemente descurado pelas Constituições precedentes. O social aí assinalava a presença e a influência do modelo de Weimar numa variação substancial de orientação e de rumos para o constitucionalismo brasileiro.
A partir de 1937, tem início uma sucessão de três golpes de Estado no Brasil: em 1937, em 1945 e outro em 1964. Nesse interstício temporal, a Constituição de 1934 foi pioneira nos direitos sociais e, como ressaltado acima, consagrou uma verdadeira mudança de paradigma no tocante aos direitos fundamentais. A Carta de 1937, sua sucessora, estabeleceu um regime autoritário e centralizador no País, chegando ao ponto de definir o Presidente da República como “autoridade suprema do Estado” (art. 73, CF/37) e dissolver todos os órgãos legislativos (art. 178, CF/37).
Por sua vez, o golpe de 1945, promovido no contexto pós-Segunda Guerra, curiosamente, estabeleceu as bases para a retomada da democracia e a convocação de uma Assembleia Constituinte. A Norma Fundamental dela resultante foi promulgada em 1946 e, representando um salto em aspectos sociais se comparadas às Cartas Magnas anteriores, definiu que o uso da propriedade seria condicionado ao “bem-estar social” (ar. 147, CF/46). Em 1964, outro golpe, seguido de uma nova ordem constitucional, em 1967, inaugurando no Brasil anos marcados pela censura, restrição de liberdades individuais e de frequente estado de emergência.
Enfim, em 1988, fruto de uma intensa mobilização social, saindo do regime militar, foi promulgada a novel Constituição Federal brasileira, que acaba, inclusive, de completar 30 anos (5 de outubro de 1988). A mais extensa das Cartas Magnas brasileiras, o atual texto constitucional conta com nada menos do que 250 artigos em sua parte permanente e mais 114 nas disposições constitucionais transitórias (acrescidas pela EC 95/2016 – Teto dos Gastos Públicos).
Independentemente de quaisquer críticas que possam-se fazer a seu respeito, a Lei Maior de 1988, de modo evidente, foi responsável por inaugurar um novo pensar constitucional no País. Não obstante sua regulação alcance diversas temáticas, como o Título VIII, Capítulo VII, que trata “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, nos restringiremos ao Título VII, Capítulo I, que trata da Ordem Econômica e Financeira. A atual Constituição brasileira optou por, além de assegurar um amplíssimo rol de direitos fundamentais (aqui incluídos os individuais, sociais e políticos), tratar da proteção e da tutela do domínio econômico, cuidando, para tanto, de estabelecer mecanismos fundados em certos princípios, doravante devidamente analisados.
Feita a devida perquirição da historicidade da atuação do Estado no domínio econômico e observada a relevante evolução histórica, política e jurídica desse tema nas Constituições brasileiras, é válida nesse momento a análise acerca dos princípios e fundamentos da ordem econômica presentes na Carta Magna em vigor atualmente. Desse modo, serão analisados neste tópico seus dois postulados básicos: a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano.
Os princípios da livre iniciativa e valorização do trabalho humano estão expressos nos artigos 1°, inciso IV, e 170, caput, da Constituição, e tem o objetivo de garantir a todos os indivíduos uma existência digna, conforme os preceitos da justiça social. Tais princípios, enquanto fundamentos vinculantes de conduta, subordinam as ações do Estado e de seus agentes, assim como a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais (BARROSO, 2001). Dessa forma, toda a ordem econômica está vinculada a esses dois bens, de modo que as condutas que não o observarem serão consideradas ilegais.
2.1. PRINCÍPIO DA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO
A valorização do trabalho humano, enquanto instrumentalizador da dignidade da pessoa humana passou por evoluções no decorrer da história. Nesse sentido, cabe aqui relembrar, embora de forma perfunctória, o desenvolvimento da proteção e valorização do trabalho até a noção que temos hoje.
Historicamente, o trabalho objeto do Direito do Trabalho surgiu apenas com a consolidação do modo de produção capitalista, no século XVIII. Dessa forma, a intervenção do Estado, ao estabelecer normas de observância obrigatória nas relações laborais, surgiu em função do empregado ser sujeito hipossuficiente na relação de emprego. Sendo, portanto, necessária a intervenção estatal na ordem econômica e social a fim de proteger o trabalhador das injustiças do capitalismo desenfreado (ROMAR, 2018).
Em apertada síntese, ressalta-se que as conquistas sociais em relação ao trabalho no Brasil foram tardias, entretanto, a partir da Carta de 1934 os direitos trabalhistas foram evoluindo notadamente – salvo alguns retrocessos pontuais. Na contemporaneidade, com a Constituição de 1988, o homem tornou-se a figura principal a ser protegida, abandonando o conceito individualista e privatista e priorizando o coletivo, o social e a dignidade da pessoa humana.
A Lei Fundamental vigente concretizou o princípio da valorização do trabalho humano no seu artigo 7°, onde dispõe um rol de direitos assegurados aos trabalhadores, além disso, traz também os valores sociais do trabalho como um dos sustentáculos da República (art. 1°, IV, CF/88). É válido ressaltar que tais direitos não excluem outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores (BARROSO, 2001).
O trabalho humano é responsável por produzir riqueza e desenvolver a economia e consequentemente a sociedade. Sendo assim, percebe-se que devido ao seu grau de importância no crescimento da coletividade – bem como do próprio indivíduo – o trabalho humano é encarado há muito tempo como algo que merece ser protegido e valorizado.
Conforme Bocorny (2003, p. 71 apud VASCONCELOS; GENOVEZ, 2013, p. 3):
Dessa maneira, o trabalho ganha importância (social, econômica, política) e, por isso, precisa das garantias jurídicas necessárias. Nas sociedades democráticas, é possível a existência de tais garantias, na medida em que se elejam princípios os quais os cidadãos entendem como importantes para o seu desenvolvimento (…).
Entretanto, o trabalho humano não deve ser visto apenas como mais um fator gerador de riqueza, mas também como um elemento diretamente ligado à dignidade da pessoa humana “por isso não deve ser analisado somente sob a ótica material, mas, sobretudo, deve estar em pauta o seu caráter humanitário. Não é o homem que deve servir à economia, e sim a economia que deve servir ao bem-estar do homem” (MORAES; OLIVEIRA, 2008, p. 84).
Seguindo esse raciocínio, Moraes e Oliveira (2008, p. 84) complementam:
A valorização do trabalho humano significa proporcionar ao ser humano um trabalho que lhe dê orgulho em desempenhá-lo, lhe dê prazer, de forma que o trabalhador realmente se sinta feliz ao iniciar uma jornada de trabalho. E que, desta forma, não tenha o trabalho apenas como meio de sobrevivência, porque desta forma retira do ser humano qualquer resquício de dignidade.
Ademais, é interessante ressaltar que no art. 170, caput, o princípio da valorização do trabalho vem disposto juntamente com o princípio da livre iniciativa. O legislador tratou de conciliar dois fundamentos que podem parecer antagônicos, mas que visam promover a devida liberdade dos agentes econômicos para atuarem no mercado, ao mesmo tempo em que determina a valorização do trabalho humano.
Entende-se, nesse sentido, que os valores sociais do trabalho devem ter prioridade em relação ao princípio da livre iniciativa, de modo a limitá-lo. Conforme Lemos (2015) acertadamente leciona, “a livre iniciativa deve adequar-se aos valores sociais do trabalho e à dignidade do trabalhador, pois a valorização do trabalho humano é o primeiro dos fundamentos da ordem econômica”.
De acordo com Marques (2007), o princípio da liberdade de iniciativa deve ser seguido levando em consideração a valorização de todo o trabalho da pessoa humana, buscando efetivar também os princípios da ordem econômica ligados a ele, a citar o princípio do pleno emprego e a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII e VIII, CF/88).
Dialogando com Lemos (2015), tem-se:
Portanto, a valorização do trabalho humano não significa apenas criar medidas de proteção ao trabalhador que limitem, dentre outros princípios, a livre iniciativa, mas sim admitir o trabalho e o trabalhador como principal agente de transformação da economia e meio de inserção social. De outra forma, estaríamos sempre buscando a valorização do direito “do trabalho”, sem valorizar o direito “ao trabalho”, e tentando alterar a ideia que o mercado faz do trabalho humano, de ser este apenas um fator de produção.
2.2. PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA
Assim como o princípio da valorização do trabalho humano, a Constituição de 1988 tratou de esculpir o postulado da liberdade de iniciativa como um princípio fundamental, através do artigo 1º, inciso IV e artigo 170, caput, in verbis: “Art. 1°. A República Federativa do Brasil (…) tem como fundamentos: IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (…)”.
Este princípio fundamental assegura a todos a liberdade de ingressar no mercado de produção de bens e serviços, bem como de organizar os fatores de sua atividade, visando à obtenção de lucro. (CARVALHO, 2018) Ademais, conforme o parágrafo único do art. 170, a todos é assegurado o livre exercício de qualquer atividade econômica, sem necessidade de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Na lição de Barroso (2001, p. 189-190):
O princípio da livre iniciativa, por sua vez, pode ser decomposto em alguns elementos que lhe dão conteúdo, todos eles desdobrados no texto constitucional. Pressupõe ele, em primeiro lugar, a existência de propriedade privada, isto é, de apropriação particular dos bens e dos meios de produção (CF, arts. 5º, XXII e 170, II). De parte isto, integra, igualmente, o núcleo da idéia de livre iniciativa a liberdade de empresa, conceito materializado no parágrafo único do artigo 170, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização, salvo nos casos previstos em lei. Em terceiro lugar situa-se a livre concorrência, lastro para a faculdade de o empreendedor estabelecer os preços, que ão de ser determinados pelo mercado, em ambiente competitivo (CF, art. 170, IV). Por fim, é da essência do regime de livre iniciativa a liberdade de contratar, decorrência lógica do princípio da legalidade, fundamento das demais liberdades, pelo qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II).
É importante ressaltar, entretanto, que essa livre iniciativa não deve ser vista como absoluta. A Lei Fundamental assegura e garante a liberdade de iniciativa empresarial, no entanto, concomitantemente determina que a atuação esteja em conformidade com o bem-estar social. Nesse sentido, embora seja o Estado liberal, esse age impondo limites ao particular a fim “evitar condutas abusivas e atentatórias à dignidade coletiva.” (VASCONCELOS; GENOVEZ, 2013, p. 5).
Observa-se que a intervenção do Estado no domínio econômico não tem por finalidade reprimir o crescimento do setor privado, mas sim de impor limites quando esse obstar ou contrariar o bem-estar e o interesse social. Dessa forma, o princípio traduz a natureza capitalista da sociedade, ao mesmo tempo em que busca uma proteção social.
Deve-se atentar que via de regra prevalece a liberdade de iniciativa, devendo o Estado intervir somente quando necessário. Além disso, o princípio em questão só deverá ser restringido por expressa previsão constitucional. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2001, p. 190) leciona:
As exceções ao princípio da livre iniciativa, portanto, haverão de estar autorizadas pelo próprio texto da Constituição de 1988 que o consagra. Não se admite que o legislador ordinário possa livremente excluí-la, salvo se agir fundamentado em outra norma constitucional específica.
Fundada em princípios acima descritos, os quais, repise-se, não excluem outros “subprincípios” daqueles derivados, a atuação do Estado brasileiro encontra, basicamente, duas formas tratadas pela melhor doutrina nacional. Com a adoção cada vez mais evidente do modelo neoliberal de mercado, tem-se que uma das formas de ingerência do Estado no domínio econômico acaba por se sobrepôr a outra: o modo regulador sobre o executor.
Todavia, ambas as formas ainda existem no âmbito da atuação estatal sobre a esfera econômica, aqui captada lato sensu, sendo extremamente importantes para o regular e justo funcionamento da própria economia. Esse pensamento é referendado pela Suprema Corte brasileira, quando esta proclama que a intervenção estatal na economia deve funcionar como instrumento de regulação das esferas econômicas, sendo inclusive tal posição defendida pela Magna Carta de 1988, porém
(…) a intervenção deve ser exercida com respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão resta plasmada no art. 170 da Constituição Federal, de modo a não malferir o princípio da livre iniciativa, um dos pilares da República (art. 1º da CF/1988). Nesse sentido, confira-se abalizada doutrina: as atividades econômicas surgem e se desenvolvem por força de suas próprias leis, decorrentes da livre empresa, da livre concorrência e do livre jogo dos mercados. Essa ordem, no entanto, pode ser quebrada ou distorcida em razão de monopólios, oligopólios, cartéis, trustes e outras deformações que caracterizam a concentração do poder econômico nas mãos de um ou de poucos. Essas deformações da ordem econômica acabam, de um lado, por aniquilar qualquer iniciativa, sufocar toda a concorrência e por dominar, em consequência, os mercados e, de outro, por desestimular a produção, a pesquisa e o aperfeiçoamento. Em suma, desafiam o próprio Estado, que se vê obrigado a intervir para proteger aqueles valores, consubstanciados nos regimes da livre empresa, da livre concorrência e do livre embate dos mercados, e para manter constante a compatibilização, característica da economia atual, da liberdade de iniciativa e do ganho ou lucro com o interesse social. A intervenção está, substancialmente, consagrada na CF nos arts. 173 e 174. Nesse sentido ensina Duciran Van Marsen Farena (RPGE, 32:71) que “O instituto da intervenção, em todas suas modalidades encontra previsão abstrata nos artigos 173 e 174, da Lei Maior. O primeiro desses dispositivos permite ao Estado explorar diretamente a atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. O segundo outorga ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, o poder para exercer, na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo esse determinante para o setor público e indicativo para o privado” (…) (RE 422.941, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ de 24.03.2006) [RE 632.644 AgR, rel. Min Luiz Fux, j. 10.04.2012, 1ª Turma, DJE de 10.05.2012].
Longe de configurar uma regulação extremamente restritiva, o que desaguaria em uma verdadeira afronta à livre iniciativa, a atuação do Estado, como adiantado, deve ser pautada no dogma da mínima intervenção, isto é, na ingerência residual. O Estado apenas deve agir quando os interesses transindividuais estiverem, inequivocadamente, sendo atingidos, ou na iminência de assim o serem.
Nessa esteira, a seguir, serão tratadas mais especificamente das formas de intervenção do Estado acima mencionadas no julgado: a forma executora e a forma reguladora.
3.1. O ESTADO EXECUTOR
Para preservar o espírito capitalista na sociedade brasileira e incentivar a atuação da inciativa privada, o constituinte de 1988 considerou por bem destacar que, ressalvados os casos previstos expressamente no texto magno, a exploração direta de atividade econômica por parte do Estado brasileiro apenas seria permitida quando necessária aos ditames da relevância dos interesses metaindividuais e da segurança nacional, casos estes definidos em lei (art. 173, CF/1988). Consoante Carvalho Filho (2015, p. 963), a “exploração de atividades econômicas cabe, como regra, à iniciativa privada”, e, portanto, excepcionalmente, ao Poder Público.
É bem verdade que, em atenção ao atual cenário global, tal forma tem sido minguada, haja vista o crescente interesse do capital internacional em investir sobretudo em países emergentes, caso do Brasil. Ilustre-se com o caso de que, em 1988, o constituinte brasileiro tratou de regular pesadamente o sistema financeiro nacional no próprio texto constitucional. Em 2003, porém, sobreveio uma emenda constitucional que suprimiu boa parte do descrito no artigo 192 da Constituição Federal e atribuiu o tratamento da matéria à regulação de lei complementar, restringindo-se o caput do mencionado artigo a cuidar de disposições principiológicas, caso do interesse da coletividade.
Outro claro exemplo de que o Estado executor encontra-se sendo encolhido se nota ao observar alguns processos em trâmite no País, como as privatizações no âmbito do setor elétrico (Eletrobras) [1], afetada pelo período eleitoral, e a imposição de limites aos gastos públicos federais, por meio de medidas adicionadas ao ADCT pela Emenda Constitucional 95, de 2016.
Uma posição abstencionista por parte do Estado viceja posicionamentos favoráveis na doutrina, caso de José dos Santos Carvalho Filho (2015, p. 964), que destaca que
(…) o Estado não deve mesmo exercer a função de explorar atividades econômicas. papel que deve desempenhar é realmente o de Estado-Regulador, controlador e fiscal, mas deixando o desempenho às empresas da iniciativa privada.
O mesmo doutrinador cuida, também, de diferenciar os “serviços públicos econômicos” das atividades “eminentemente econômicas” (CARVALHO FILHO, 2015, p. 964). A nosso ver, a referida Emenda 95 – novo regime fiscal – afetou, sobretudo, os primeiros, e, secundariamente, abrangendo as atividades econômicas. Para ilustrar, não resta dúvidas que a vedação à concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de ordem tributária, em caso de eventual descumprimento dos limites impostos pelo Novo Regime Fiscal (art. 109, § 2°, II, ADCT), impõe perturbações na ordem econômica, embora não seja o fito deste trabalho adentrar no mérito destas.
Sob outra ótica, na realidade brasileira, observa-se alguns casos de monopólio estatal no domínio econômico. Constantes do artigo 177 da Lei Maior, são eles:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal (BRASIL, 1988).
As atividades descritas nos incisos I a IV são exercidas, desde 1953, pela Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras).
Em síntese, tem-se que a atuação do Estado no domínio econômico sob a ótica executória apenas será legítima se atender aos pressupostos da segurança nacional ou do interesse coletivo ou houver expressa disposição constitucional no sentido da atuação.
3.2. O ESTADO REGULADOR
Cada vez mais presente em nossos dias, na forma meramente reguladora, conforme aduz a própria expressão, o Estado não intervém diretamente no processo econômico, e sim impõe balizas obrigatórias e vinculantes a serem observadas. Carvalho Filho (2015, p. 949) faz menção a regras disciplinadoras dos “ditames da justiça social”, o que está em perfeita consonância com os dispositivos principiológicos do artigo 170 da Norma Fundamental de 1988.
A propósito, a Carta Magna dispõe a respeito do Estado executor, em seu artigo 174, verbis: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
Para se ter uma breve noção da importância do Estado regulador em nossos dias, tome-se como nota que, em fins do século XIX,
Rockfeller controlava noventa por cento de todo o petróleo refinado nos Estados Unidos. Como o único grande fornecedor restante, ele obteve um monopólio e pôde aumentar os preços sem se preocupar em perder o negócio para um concorrente que cobrasse menos. Praticamente todo mundo que queria derivados do petróleo tinha que negociar com ele. E outras grandes corporações seguiram seus passos, tentando eliminar os concorrentes e construir monopólios (DAVIDSON, 2016, p. 181).
São situações como a supracitada que o Estado regulador deve buscar sempre combater, por meio de ações fiscalizatórias. Chega a ser um contrassenso que o mesmo ente a quem cabe combater os monopólios privados os detenha, mas na forma pública. Todavia, deve-se atentar para o fato de que, em tese, tais monopólios públicos servem ao interesse nacional, enquanto os privados apenas importam aos seus proprietários ou sócios.
Em consonância com a Lei Maior de 1988, tem-se que cabe ao Estado reprimir o abuso do poder econômico com o fito de dominar os mercados e eliminar a concorrência, desaguando em aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4°). O abuso do poder econômico pode se materializar, principalmente, em dois institutos: o truste e o cartel. No truste, há uma fusão de empresas de dado setor, que passam a formar um monopólio, com consequente eliminação da concorrência. No cartel, as empresas continuam a existir separadamente, mas têm seus interesses conjugados para esmagar a concorrência (CARVALHO FILHO, 2015).
A Lei Federal 12.529, de 30 de novembro de 2011, é responsável por estruturar o sistema brasileiro de defesa da concorrência, possuindo, inclusive, disposições sobre a repressão de infrações contra a ordem econômica. A propósito, a competência para legislar sobre tais matérias é privativa da União, conforme o mandamento do artigo 22, incisos I, V e VI. Importante autarquia reguladora, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), criado via Lei 12.529, constitui mecanismo importante para frear os abusos econômicos e identificar infratores, aplicando-lhes penas, sendo a mais comum a multa (CARVALHO FILHO, 2015).
Outras disposições legais partem da forma reguladora do Estado no domínio econômico, como a proteção dos próprios indivíduos contra abusos de partes técnica e financeiramente mais poderosas. Tais regulações encontram respaldo na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que, ao fixar parâmetros mínimos de condições de trabalho aos obreiros, acaba por, invariavelmente, intervir no domínio econômico, impondo certos ônus aos empregadores, flexibilizados, é verdade, com o advento da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. No mesmo sentido protetivo, encontra-se o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que também configura, a nosso ver, intervenção do Estado no domínio econômico, ainda que de forma subsidiária.
No entanto, ao prever, por exemplo, ser direito do consumidor a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços (art. 6°, IV), decorrentes, sem dúvidas, do abuso do poder econômico, o Código Consumerista não deixa dúvidas de que se trata de um instrumento indireto do Estado para regular o domínio econômico sob a égide dos ditames da justiça social (art. 170, CF/1988).
4. PERSPECTIVAS
Na conjuntura contemporânea, uma série de decisões governamentais aponta para a redução do papel do Estado na economia brasileira, a citar mudanças relacionadas às privatizações, teto de gastos, taxa de juros e legislação trabalhista. Tais medidas não foram criadas atualmente como um escape para a situação conjuntural que o país atravessa com a crise econômica, as medidas supracitadas seguem a doutrina do século XVI que se convencionou chamar de “liberalismo econômico”, que considera que o Estado deve interferir o mínimo possível nas relações de mercado.
No Brasil, o reflexo do neoliberalismo econômico foi sentido com mais intensidade, primeiramente, no início da década de 1990 (VILLARES, 2003). Os neoliberais desconfiam da capacidade de organização do Estado e defendem que a economia deve ser baseada no jogo livre das forças de mercado.
Conforme Villares (2003, p. 272):
[sic] Sua desconfiança quanto à capacidade de organização do Estado abre espaço ao individualismo e à crença irrefletida na capacidade dos agentes privados se auto-organizarem, o postulado do livre-mercado organizado exclusivamente por suas próprias leis. Nasce a idéia da retirada do Estado do domínio econômico.
As ciências sociais se debruçaram sobre essa doutrina e como era de se esperar, influenciou o Direito. Desse modo, a Lei n° 8.031/90 (Programa Nacional de Desestatização) foi responsável por fazer a transformação dessa política econômica em norma jurídica no Brasil. Ademais, essa lei também continha o Programa Nacional de Privatização, promovida, ainda que timidamente e abafada pelo governo pautado por polêmicas, durante o mandato de Collor.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, a lei supracitada foi revogada e substituída pela Lei n° 9.491/97, a qual planejou a política de privatização realizada pela União Federal, que contribuiu para a entrada do capital internacional na aquisição das antigas empresas estatais.
Mais recentemente em 2015, os princípios liberais foram inseridos ao documento intitulado “Uma Ponte Para o Futuro”. O documento contém uma série de medidas do MDB – partido do Presidente Michel Temer – para o Brasil, sendo que algumas delas vêm sendo implementadas durante o mandato do atual Presidente, principalmente em relação às privatizações e a outras modalidades de participação da iniciativa privada em negócios que, anteriormente, eram de exploração do Estado.
Sabendo disso, compreende-se que a crise econômica e política no Brasil, abriu espaço para uma mudança na agenda econômica nacional, através da propagação do pensamento neoliberal, com menos presença do Estado e aposta mais firme no protagonismo do investimento privado.
Entende-se, portanto, que a atuação do Estado na economia está intimamente relacionada aos anseios e necessidades sociais, através das imposições políticas, assim como das imposições econômicas do mercado, o que demonstra a ligação entre política e economia. Desse modo, conforme a análise da dinâmica do contexto político atual, a tendência observada leva a crer na redução da atividade do Estado no domínio econômico, de modo a prevalecer o Estado Regulador em detrimento do Estado Executor.
Concernente à seara trabalhista, a recente Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) em muito impactou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 1 de maio de 1943. Embora se trate de legislação tradicionalmente associada ao âmbito privado, o Direito do Trabalho não deixa de configurar uma interferência do Estado no domínio econômico. De acordo com pesquisa realizada por José Dari Krein, Ludmila Abílio, Paula Freitas, Pietro Borsari e Reginaldo Cruz, em obra publicada sob a organização de José Dari Krein, Denis Maracci Gimenez e Anselmo Luís dos Santos, tem-se que a presente reforma da sistemática laboral brasileira
(…) procura ampliar a liberdade das empresas manejar o trabalho de acordo com as suas necessidades, fundamentalmente buscando eliminar eventuais entraves ou obstáculos oriundos das instituições públicas. Assim, ela tem a finalidade de “legalizar” práticas de flexibilização e de redução de custos e ampliar ainda mais o cardápio de opções de manejo da força de trabalho.
Essa flexibilização mencionada pelos autores em muito guarda relação com o atual cenário brasileiro, marcado pelo desemprego e pelo trabalho informal. Por meio da referida lei federal, o Estado brasileiro por bem achou reduzir sua presença no âmbito trabalhista como forma de fomentar o setor. Tomando-se a tutela estatal ao indivíduo por intermédio do Direito Laboral como um “avanço social”, há uma série de críticas a respeito.
Finalizando, note-se que a desmobilização do Estado no âmbito de sua atuação no domínio econômico não pode se pretender ser integral, vez que a Constituição de 1988 fez questão de primar pelo Estado Social no Brasil, fruto de décadas de evolução e aprimoramento.
Diante do exposto, percebeu-se que o Estado brasileiro é, desde sua gênese, tendente à intervenção no domínio econômico. Durante o Império, apesar de a Constituição de 1824 se pretender bastante liberal, abriu-se margem para questionamentos acerca da inércia ou não do Estado no domínio econômico. Já no período republicano, a Carta Magna de 1891 impôs as primeiras limitações à propriedade privada, símbolo máximo do domínio econômico nacional, expressando que esta poderia ser desapropriada, caso necessário ou essencial à utilidade pública (art. 72, § 17, CF/1891). Porém, somente a partir de 1930 o Estado passa a tomar contornos mais notadamente intervencionistas, inaugurando o estado de “bem-estar social”, elevado à sua condição culminante com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.
Essa intervenção no domínio econômico inaugurada via Norma Fundamental de 88 encontra-se, obviamente, respaldada em certos fundamentos e bases principiológicas, como os princípios da livre iniciativa e valorização do trabalho humano (arts. 1°, IV, e 170, caput, CF/1988).
No tocante às formas de atuação, tem-se a executora e a reguladora, cabendo aqui destacar que esta última tem sido, particularmente, aumentado sua importância sobre aquela. No âmbito de um Estado – e, portanto, de uma sociedade – cada vez mais tendente ao liberalismo – que não se confunde com o libertarianismo –, a forma reguladora tem como axiomas a proteção das próprias pessoas contra abusos técnicos e financeiros das partes hipersuficientes, financeiramente mais poderosas. Exemplo de medidas nesse sentido é a existência de um Código de Defesa do Consumidor (CDC) no Brasil, que se trata, conforme destacado anteriormente, de instrumento indireto do Estado para regular o domínio econômico, tendo por base os ditames da justiça social, constantes do artigo 170 da Constituição.
Por fim, quanto às perspectivas, conclui-se que, desde a década de 1990, com o Estado cada vez menos atuante no âmbito executor, a tendência é que à seara reguladora seja dada maiores atenções, não obstante haja até mesmo flexibilizações recentes desta, como por meio da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017).
As eleições de 2018, por exemplo, por meio de uma verdadeira guinada à direita por parte da sociedade, reafirmaram a tendência de reforço de um governo menos atuante no domínio econômico, com forte programa de privatizações e concessões e de desregulamentação de certos “entraves” na economia.
Contudo, não se pode perder de vista o Estado Social tão caro ao texto constitucional brasileiro, que consagra determinados limites à indiferença do Estado no domínio econômico. Não obstante hajam até mesmo emendas constitucionais ao Título VII da Constituição Federal (como a emenda n° 6, de 1995), artigo 170 da Lei Maior, do presente Título, é prova cabal disso. Configurando-se um objetivo em letras mais claras e mais distante do artigo 3°, o legislador constituinte transpareceu, no artigo 170, que a ordem econômica seria fundada na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, tendo por fim “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social” (grifamos). E da Constituição Federal, independentemente da ideologia da gestão, governo algum pode olvidar.
BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, pp. 187-212, v. 226, out./dez., 2001. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47240/44652>. Acesso em 16 out. 2018.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24.ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2009.
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Politica do Imperio do Brazil de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 1 out. 2018.
______. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em 22 out. 2018.
______. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. Acesso em: 22 out. 2018.
______. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 22 out. 2018.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 26 out. 2018.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5.ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2018.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28.ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015.
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 6.ª Edição. Salvador: Editora JusPodvum, 2012.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
DAVIDSON, James West. Uma Breve História dos Estados Unidos. Tradução por Janaína Marcoantonio. 1.ª Edição. Porto Alegre: Editora L&PM, 2016.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 1.ª Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 2000.
KREIN, José Dari; ABÍLIO, Ludmila; FREITAS, Paula; BORSARI, Pietro; CRUZ, Reginaldo. Flexibilização das relações de trabalho: insegurança para os trabalhadores. In: KREIN, José Dari; GIMENEZ, Denis Maracci; SANTOS, Anselmo Luís dos. Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2018. Cap. 3. p. 95-122. Disponível em: <https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/LIVRODimensoes-Criticas-da-Reforma-Trabalhista-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2018.
LEMOS, Rafael Severo de. A valorização do trabalho humano: fundamento da república, da ordem econômica e da ordem social na constituição brasileira de 1988. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 15, nº 1261, 25 de junho de 2015. Disponível em <https://www.paginasdedireito.com.br/index.php/artigos/306-artigos-jun-2015/7243-a-valorizacao-do-trabalho-humano-fundamento-da-republica-da-ordem-economica-e-da-ordem-social-na-constituicao-brasileira-de-1988>. Acesso em 15 out. 2018.
MARQUES, Rafael da Silva. Valor social do trabalho, na ordem econômica, na constituição brasileira de 1988. São Paulo: LTr, 2007.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 28.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MORAES, Débora Brito; OLIVEIRA, Lourival José de. Aspectos sobre a valorização do trabalho humano. Argumentum (UNIMAR), v. 07, p. 71-86, 2007.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 11.ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016.
ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do Trabalho. Coord. Pedro Lenza. 5.ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2018.
VASCONCELOS, Débora Camargo; GENOVEZ, Simone. Análise dos princípios constitucionais econômicos à luz da Iniciativa Privada. In: XXII Congresso Nacional CONPEDI, 2013, São Paulo.
VILLARES, Luiz Fernando; Privatização: a gota d'água. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 1, n.234, p. 261-276, 2003. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45158/44811>. Acesso em 4 nov. 2018.
NOTAS
[1] BNDES publica novo cronograma de privatização de distribuidoras da Eletrobras. 17 ago. 2018, G1 Globo. <https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/17/bndes-publica-novo-cronograma-de-privatizacao-da-eletrobras.ghtml>. Acesso em 20 out. 2018.
Bacharelando do curso de Direito na Universidade Estadual do Piauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, João Pedro Martins de. A atuação do Estado no domínio econômico: fundamentos e perspectivas à luz da Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2019, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53706/a-atuao-do-estado-no-domnio-econmico-fundamentos-e-perspectivas-luz-da-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Luis Carlos Donizeti Esprita Junior
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Roberto Carlyle Gonçalves Lopes
Precisa estar logado para fazer comentários.