Resumo: O presente estudo propõe-se a traçar um paralelo entre as medidas despenalizadoras instituídas na legislação brasileira a partir da Lei nº 9.099/95 e o instituto do plea bargaining, existente no conjunto normativo jurídico dos Estados Unidos da América, a fim de analisar qual o alcance, os contornos e possibilidades, no Brasil, da justiça penal consensual. A partir da análise de doutrina especializada sobre o tema, tanto nacional quanto estrangeira, procurou-se destrinchar os conceitos que permeiam a noção de justiça penal consensual em detalhes, visando identificar e compreender os pontos de aproximação e distanciamento entre os institutos jurídicos verificáveis na legislação brasileira e na legislação norte-americana.
Palavras-chave: justiça penal consensual, transação penal, direito consensual, plea bargaining.
Abstract: The present study aims at drawing a parallel between the decriminalizing measures established in the Brazilian legislation by Law no. 9.099/95 and the legal institute of plea-bargaining, as set forth in the existing legal framework of the United States of America, in order to analyze the scope, contours and possibilities, in Brazil, of consensual criminal justice. Based on the analysis of specialized doctrine on the subject, both national and foreign, the present paper sought to unravel the concepts that permeate the notion of consensual criminal justice in detail, with the purpose of understanding the points of approximation and distancing between legal institutes verifiable both in Brazilian law and in American law.
Key words: consensual criminal justice, criminal transaction, consensual law, plea-bargaining.
Sumário: 1. Introdução – 2. Conjuntura jurídica que antecedeu a edição da Lei nº 9.099/95 – 3. Medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95– 4. Onde entra o plea bargaining? – 5. Breves reflexões – 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Os cidadãos “marginais”, dito aqueles que se encontram à margem da sociedade – compreendida aqui como as classes trabalhadoras, com acesso a algum nível de educação básica de qualidade e detentora de perspectivas condizentes com o meio social em que vivem –, veem-se desamparados, em sua quase totalidade, de políticas públicas efetivamente implementadas e voltadas à diminuição da disparidade social, por meio de programas educacionais, profissionalizantes e de assistência social.
Não por outro motivo que o surgimento da criminologia e discussões correlatas, desde o século XIX – principalmente a partir do Positivismo e ainda que este não fosse o objetivo principal dos idealizadores de seus principais fundamentos –, encontram-se estritamente vinculadas aos aspectos sociais que permeiam os delitos e impulsionam os indivíduos a cometê-los, sem a análise dos quais não se mostra viável compreender o fenômeno da criminalidade e – muito menos – traçar diagnósticos e prognósticos acerca da eficiência e necessidade da privação da liberdade do agente como resposta estatal à delinquência.
Como é cediço, a doutrina especializada se debruça, há séculos, sobre os fundamentos e finalidades das penas, tendo inúmeros juristas dedicado às sanções penais expressivo tempo de seu virtuoso trabalho, para que pudessem chegar, enfim, a conceitos e definições sobre a natureza da punição criminal estatal e sobre as finalidades que devem ser almejadas quando de sua aplicação, de acordo com a escola a que pertençam ou a teoria a qual se filiam.[1]
Nesse contexto, o presente trabalho procura entender as implicações oriundas da edição da Lei nº 9.099/95, que instituiu no conjunto jurídico normativo brasileiro diversos mecanismos despenalizadores, instrumentos jurídicos estes que inauguram, no Brasil, uma espécie de justiça penal consensual, a exemplo do que já existe na legislação de diversos outros Estados Democráticos de Direito.
De se constatar que o tema ora discutido, ainda que relevante há mais de 300 (trezentos) anos, permanece atual. Isso porque, além de pertinente do ponto de vista acadêmico para a criminologia, a questão do encarceramento no Brasil possui profundos contornos práticos.
Com efeito, conforme censo do Ministério da Justiça,[2] havia no Brasil, no ano base de 2014, 715.592 (setecentas e quinze mil, quinhentas e noventa e duas) pessoas presas, considerando-se tanto os indivíduos custodiados em estabelecimentos prisionais, quanto os sujeitos à prisão domiciliar. Deste universo de mais de 700.00 (setecentos mil) presos, 41% (quarenta e um por cento) eram presos provisórios, ou seja, sem título condenatório transitado em julgado.
Em termos absolutos, significa dizer que o Brasil é o terceiro país no mundo com maior número de presos.
E, o que é ainda mais grave, o déficit de vagas no sistema prisional, de 358.373 (trezentos e cinquenta e oito mil, trezentos e setenta e três), corresponde a aproximadamente metade do número total de presos, sendo superado, em contrapartida, pelo número total de mandados de prisão pendentes de cumprimento, qual seja, de 373.991 (trezentos e setenta e três mil, novecentos e noventa e um) naquela época.[3]
Resta evidente, assim, que o Brasil, a exemplo de tantos outros países, mas quiçá em grau mais intenso, padece de problema grave no que tange à superlotação dos presídios, causada, também, pela resistência dos membros do Ministério Público e da Magistratura em aplicar aos casos concretos sanções alternativas ao cárcere, dentre as quais as penas restritivas de direitos e os mecanismos despenalizadores instituídos pela Lei nº 9.099/95.
A necessidade da incidência do Direito Penal como a ultima ratio é premente e inconteste em face da realidade atual dos presídios brasileiros, na qual se destaca a ininterrupta e praticamente universal violação dos direitos dos presos, precipuamente no que tange à sua dignidade – como é cediço, as condições de alojamento, alimentação, assistência à saúde e segurança às quais são submetidos os condenados custodiados pelo Estado são absolutamente degradantes.
De fato, a própria Constituição Federal promulgada em 1988, em seu artigo 98, caput e inciso I,[4] prestigia a adoção de soluções simplificadoras para o processo penal, exclusivamente no que se refere às infrações de menor potencial ofensivo, em observância aos resultados obtidos em experiências pretéritas bem sucedidas em que a oralidade e instrumentalidade foram favoráveis à resolução das lides, objetivando a amenização do inchaço do sistema carcerário e a introdução de mecanismos da justiça penal consensual, já amplamente regulamentada em outros países e em relação a qual se pode, também, tecer diversas críticas.
Neste contexto, foi editada a Lei nº 9.099/95, que, inspirada em modelos adotados em legislações estrangeiras, introduz no ordenamento jurídico normativo brasileiro mecanismos que priorizam a justiça consensual, conferindo ao sistema maior efetividade, sem que haja ruptura com o princípio do nulla poena sine judicio.
Tais considerações, que enaltecem a pertinência e importância das penas alternativas à prisão, não implicam, contudo, tratamento leniente em relação aos crimes de expressiva gravidade e aos criminosos contumazes e/ou de alta periculosidade pessoal. Isso porque, a aplicação incentivada de sanções mais brandas ou medidas despenalizadoras não se traduz em oposição indiscriminada à pena de prisão, já que aplicáveis apenas a condutas menos graves e a criminosos ocasionais ou de baixa periculosidade pessoal.
2. Conjuntura jurídica que antecedeu a edição da Lei nº 9.099/95
Com a evolução do processo penal brasileiro e a necessidade de se buscar alternativas para garantia da utilidade das decisões judiciais, considerando-se, precipuamente, a explosão do volume de processos em trâmite perante a Justiça Criminal, a efetividade dos processos tornou-se, nas últimas décadas, prioridade para o Estado Brasileiro, sem a qual o cumprimento dos valores políticos e sociais constitucional e legalmente garantidos restariam visivelmente prejudicados, em detrimento também, consequentemente, da confiança depositada pelos jurisdicionados no Poder Judiciário.
A despeito do entendimento de que, nos dias atuais, a prisão não é a melhor resposta estatal ao fenômeno do crime – algo sobre o que há pouca discordância na doutrina especializada –, constituindo-se em um “mal necessário”, tampouco se vislumbra, com clareza, substituto a assegurar proteção suficiente à sociedade e aos bens jurídicos tutelados pelas normas penais e processuais penais contra os criminosos contumazes, em relação aos quais os mecanismos mais brandos da Justiça Penal não se revelam suficientes a ensejar o ajustamento do seu comportamento aos padrões normais de convivência em sociedade.
Àqueles que defendem a aplicação, em maior grau, de medidas despenalizadoras como resposta ao fenômeno do crime alia-se o fato de que a experiência em execução criminal demonstra serem poucas as ocasiões em que os intentos de ressocialização alcançam resultados regenerativos satisfatórios.
Assim, de um lado, ao mesmo tempo em que se defende a imposição, em maior intensidade e abrangência, de medidas despenalizadoras (considerando-se, aqui, os delitos patrimoniais de pequena monta ou cometidos sem o emprego de violência ou grave ameaça) e de penas restritivas de direitos como resposta ao fenômeno do crime, não se ignora, por outro lado, que são igualmente comuns os casos de crimes praticados em circunstâncias de exacerbada gravidade (como, por exemplo, aqueles em que há requintes de crueldade), que se destacam daqueles que diuturnamente aportam no pretório, e em relação aos quais recai a mais severa repugnância social.
Tal preocupação com os limites (necessários e desejáveis do Direito Penal e Processual Penal) fora externada no texto da Constituição Federal de 1998, que previu, em seu artigo 98, caput e inciso I, como já se disse, a obrigação de criação, por parte dos entes federativos, dentro de suas respectivas esferas de competência, de juizados especiais competentes para o processamento de infrações penais de menor potencial ofensivo.
Assim, fez-se necessária a edição de lei federal[5] que disciplinasse a matéria, sendo outorgada aos Estados, no uso de suas competências constitucionalmente conferidas, a atribuição de promover a respectiva organização judiciária e, caso houvesse necessidade, de editar regulamentos específicos necessários à elucidação dos procedimentos a serem adotados.
Neste contexto nasce a Lei nº 9.099/95, que trouxe profundas modificações ao processo penal brasileiro, precipuamente no que tange à simplificação dos procedimentos e instituição de medidas processuais despenalizadoras, razão pela qual, inclusive, muito foi questionada a sua constitucionalidade (principalmente no que tange às garantias prescritas no artigo 5º, incisos LIV e LVII.
O entendimento acerca da inconstitucionalidade de referida lei não encontrou respaldo na doutrina[6] especializada, eis que, por mais que inspirada em modelos adotados em ordenamentos jurídicos estrangeiros, mencionada lei aproveita de mecanismos que priorizam a justiça consensual, conferindo ao sistema maior efetividade, sem que haja ruptura com o princípio do nulla poena sine judicio (expressamente garantido pela Constituição Federal de 1988, por meio do dispositivo retro mencionado).
Nas palavras de ADA PELLEGRINI GRINOVER, uma das principais responsáveis pelo conteúdo de referida lei, a Lei nº 9.099/95 “não se contentou em importar soluções de outros ordenamentos, mas – conquanto por eles inspirado – cunhou um sistema próprio de Justiça penal consensual que não encontra paralelo no direito comparado".[7]
Com a edição da Lei nº 9.099/95 e a criação dos Juizados Especiais Criminais, a tradicional jurisdição de conflito (citada anteriormente) perde relevância, abrindo caminho para uma jurisdição de consenso, baseada no acordo entre as partes, na reparação voluntária dos danos causados à vítima e na aplicação pré-processual de pena não privativa de liberdade.
3. Medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95
Quatro são as medidas despenalizadoras previstas pela novel legislação, quais sejam: (i) a composição dos danos civis; (ii) a necessidade de representação nos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas; e (iii) a suspensão condicional do processo, e (iv) a transação penal.
No que tange à possibilidade de composição dos danos civis, em breves linhas, esta possui como pressuposto processual a etapa de conciliação entre as partes, sem a qual elas não conseguem pôr fim à controvérsia consensualmente. Quanto aos efeitos processuais penais da composição dos danos civis pelas partes, tem-se que a homologação do acordo implica, consequentemente, a renúncia (tácita) ao direito da vítima de queixa ou representação contra o autor da infração penal, ainda que o valor a ser reparado possa ainda vir a ser rediscutido no juízo civil.
A segunda medida despenalizadora instituída pela Lei nº 9.099/95 consiste na imposição da obrigatoriedade de a vítima representar criminalmente contra o acusado para fins de persecução penal. Referida transformação da ação penal, que antes era pública incondicionada, em ação pública condicionada à representação incorre em verdadeira despenalização, eis que, embora não retire o caráter ilícito do fato (ou seja, não há abolitio criminis), passa o ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena privativa de liberdade.
De acordo com o artigo 88 da Lei, além das hipóteses já estipuladas no Código Penal e na legislação especial, “dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. Em se tratando de regra que extrapola o âmbito processual penal, consistindo em questão de direito penal material[8], a aplicabilidade do artigo 88 da Lei nº 9.099/95 é retroativa. Isso porque, ao exigir representação do ofendido nos crimes de lesões corporais de natureza leve e culposas, a Lei nº 9.099/95 relegou a iniciativa da ação integralmente à vítima, a quem cabe, a partir de então, decidir sobre a conveniência ou oportunidade de se iniciar o processo.
De outra parte, o artigo 89 da Lei nº 9.099/95 trouxe a possibilidade do Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia, propor a suspensão do procedimento criminal, desde que o acusado preencha os requisitos elencados na norma. Apesar de sua evidente importância para o direito processual penal, já que instituiu notável medida despenalizadora indireta, conforme mais bem tratado a seguir, tal instituto jurídico e todos os seus contornos são tratados apenas neste único artigo.
Ainda que se aproxime, em nomenclatura, ao sursis previsto no artigo 77 do Código Penal, que dispõe sobre a “suspensão condicional da pena”, tais institutos não se confundem. Na suspensão condicional do processo, prevista pela Lei nº 9.099/95, o que se suspende é o próprio processo, ab initio, enquanto no sursis o objeto da suspensão é a própria pena aplicada, decorrente de um título condenatório, ou seja, de instrução finda.
Não se trata, igualmente, de probation, instituto encontrado no direito estadunidense, ainda que seu conceito tenha nele sido inspirado. O probation, a exemplo do sursis, pressupõe sentença condenatória. Para que possa ocorrer, portanto, é necessário que o acusado seja considerado culpado.
De outra parte, ainda que verificáveis algumas semelhanças, a suspensão condicional do processo (ou sursis processual) não corresponde ao conceito jurídico do guilty plea, eis que, ao contrário deste, não pressupõe a admissão de culpa pelo agente, não se constituindo em espécie de defesa. Em outras palavras, ao concordar com a suspensão condicional do processo, nos termos convencionados com o Ministério Público, o agente não abre mão de seu direito constitucionalmente garantido à presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal), eis que tal instituto não incorre em admissão de culpa ou qualquer espécie de autoincriminação.
É dizer: caso violados os termos da suspensão, o processo volta ao seu usual trâmite, não podendo a sua suspensão anterior que fora revogada ser considerada em prejuízo do réu. Permanece, assim, o ônus da acusação em provar os fatos criminosos, eis que a aceitação da suspensão não causa qualquer abalo à presunção de inocência do indivíduo.
De igual modo, a suspensão condicional do processo não pode ser confundida com o instituto do plea bargaining, em razão de cruciais diferenças conceituais entre eles. Como será mais bem explorado em tópico posterior do presente artigo, o plea bargaining prevê ampla possibilidade de transação entre as partes. Os termos do acordo, nestes casos, transcendem a esfera processual, podendo recair sobre a qualificação jurídica da conduta, sobre as circunstâncias do fato criminoso e até mesmo sobre as consequências penais deles decorrentes.
Além disso, o plea bargaining, ao inverso do que ocorre com a suspensão condicional do processo, pode ser levado a cabo extrajudicialmente, eis que se trata de mecanismo integralmente disponível e aplicável pela acusação, prescindindo-se da intermediação do juízo competente. A suspensão condicional do processo, em contrapartida, conforme estipulado no § 1º do artigo 89, retro mencionado, deve ocorrer, obrigatoriamente, “na presença do juiz”.
Sua natureza jurídica, portanto, é de nolo contendere, desprovida de qualquer espécie de contestação da acusação. Em casos que tais, assim como não há qualquer confissão de culpa pelo agente, igualmente não há proclamação de inocência.
Há apenas conformidade processual, uma vez que o acusado abre mão de seu direito constitucionalmente garantido de ampla defesa, ou seja, de ver-se ao final absolvido da acusação, em troca da expectativa de ver extinta a punibilidade pelo fato ao término do período estipulado, sem que se faça necessário o desgaste físico, psíquico e financeiro ocasionado pelo regular trâmite do processo.
Também a transação penal, assim como ocorre com a suspensão condicional do processo, não pressupõe a assunção de culpa. Inversamente, é medida despenalizadora que toma corpo antes mesmo do início da ação. Ao contrário do que ocorre com a suspensão condicional do processo, quando da propositura da transação penal ao autor do fato sequer foi apresentada denúncia.
Assim como os demais mecanismos da justiça penal consensual, a transação penal é voluntária e tem como princípio fundamental a autonomia da vontade do indivíduo. Para ser homologada pelo juiz, portanto, deve mandatoriamente partir da vontade esclarecida e desimpedida do autor do fato, bem como deve contar com a anuência de seu defensor.
Não se pode impor, por razões óbvias, a medida despenalizadora ao autor do fato. É preciso que ele escolha expressamente esta alternativa. Isso porque se revela plenamente possível que ele, seguro de sua inocência, busque a absolvição ao cabo do processo criminal correspondente, aceitando passar pelos efeitos desgastantes do processo por confiar em suas chances de sair absolvido.
4.Onde entra o plea bargaining?
O instituto jurídico do plea bargaining, cuja conceituação se traduz por “negociação da declaração de culpabilidade”, consiste, em linhas gerais, em acordos celebrados entre acusação e réus. Na maioria dos casos, tal negociação culmina na assunção de culpa por parte do réu, que se declara culpado em busca de sentenças mais brandas, determinando-se, de comum acordo, as condições de cumprimento de pena que serão estabelecidas na sentença, sem que, para tanto, tenha de se recorrer a longo e dispendioso processo de julgamento.
Uma noção comum das plea bargains é a de que tal instituto jurídico consiste em mútua avaliação das fraquezas e vantagens de cada uma das partes, que, ao se somarem, chegam a um meio termo aceitável tanto pela defesa quanto pela acusação. Em relação a este aspecto específico, é imperioso ressaltar que, também por esse viés, há muitas críticas no sentido de que tal espécie de negociação de condenação e pena não honram o sentido estrito de “justiça” – fim principal que deveria ser almejado e perseguido pelos Tribunais.
Tal instituto jurídico tem origem e vige, principalmente, em países que utilizam o sistema jurídico do common law, tendo os Estados Unidos da América crucial influência na evolução de seu conceito e contornos, principalmente em razão de sua utilização em larga escala. Muitos são os estudos e trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre a matéria. E não é para menos: de acordo com dados estatísticos daquele país, quase a totalidade dos procedimentos criminais instaurados no país se resolvem (têm sua conclusão) com a negociação de um plea deal (ou acordo) entre a acusação e os réus.
De acordo com o autor GEORGE FISCHER,[9] a frequência de utilização do instituto pelas Cortes de Justiça norte-americanas teve crescimento expressivo nas últimas décadas, eis que, enquanto a resolução das lides criminais, por meio de plea deals, correspondia a 84% (oitenta e quatro por cento) dos casos no ano de 1984, esse número subiu para 94% (noventa e quatro por cento) por casos menos de 20 (vinte) anos depois, em 2001.
A utilização do mencionado mecanismo de justiça penal consensual na quase totalidade dos casos processados no país levantou, perante a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos da América, órgão colegiado competente para o julgamento de causas questionando a constitucionalidade de normas naquele país, séria discussão sobre a constitucionalidade do instituto, sob alegação de afronta aos princípios norteadores do processo penal, principalmente no que tange a paridade de armas entre acusação e defesa, devido processo legal e presunção de inocência.
O leading case (ou caso precedente) para a matéria, no qual restou declarada a constitucionalidade do instrumento de negociação, foi o Brady v. United States,[10] julgado em 1970. Neste julgamento, a Suprema Corte norte-americana, apesar de reafirmar a compatibilidade entre o plea bargaining e os direitos constitucionalmente assegurados aos acusados, deixou claro que a medida só será lícita quando a acusação não se valer de meios coercitivos para a negociação, ou quando os incentivos oferecidos pelos promotores não forem tão expressivos ao ponto de tolherem do sujeito acusado sua capacidade de autodeterminação – , de maneira a convencer, para além dos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, significativo número de inocentes a preferirem declararem-se culpados à alternativa constitucionalmente assegurada de direito a julgamento.
Frise-se que em julgamento anterior (United States v. Jackson),[11] a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucional, no que tange aos meios coercitivos para obtenção de acordo, a imposição, pela acusação, de medo infundado ao acusado. Neste caso, conforme restou exposto no Acórdão de mencionado julgamento, o medo infundado (no caso específico analisado, à morte), desencorajou, ilegalmente, o acusado de exercer seu direito constitucional por um julgamento pelo Tribunal do Júri (conforme assegurado pela 6ª Emenda à Constituição daquele país). Nesta mesma decisão, restou consignado que também é ilícita a exigência de que o acusado, em vias de aceitar o acordo, seja coagido a testemunhar contra si mesmo, em violação ao seu direito constitucional a não autoincriminação (5ª Emenda).
Por meio deste mecanismo, é conferida aos réus a alternativa de optarem por sentenças reduzidas (em comparação aos resultados eventualmente obtidos ao final de um julgamento do qual culmine condenação), enquanto os promotores se beneficiam da economia processual obtida com a ausência de um demorado processo, dando-lhes mais tempo hábil para investigar e processar outros crimes, além de se assegurar que aquela conduta não restará impune. Mais importante, a sociedade também vê resolvida a necessidade de punição aos transgressores das normas sociais, beneficiando-se de um sistema judiciário eficiente e econômico.
As controvérsias acerca da utilização e incentivo na aplicação do instituto, porém, não esmoreceram, permanecendo a dúvida sobre o real benefício, sob uma perspectiva da finalidade da pena, do plea bargaining para o direito processual penal.
Um exemplo notável de combate a referido mecanismo foi o banimento, no Estado norte-americano do Alaska, do plea bargaining na década de 1970. Capitaneado pelo Procurador-Geral do Estado do Alaska, em 1975, especificamente, referido Estado baniu a utilização do plea bargaining em processos penais, clamando pelos malefícios do instituto aos valores do processo penal constitucional e ao seu efeito deletério na busca pela satisfação da justiça.
Na contramão da crença geral de que tal medida afetaria irremediavelmente o volume de processos em trâmite perante o judiciário do Estado, afetando sua eficiência e saturação, um estudo estatístico[12] concluiu que a proibição, naquele Estado, do plea bargaining, reforçou o senso de responsabilidade de cada uma das peças atuantes nos processos (advogados, promotores e juízes), que passaram a se debruçar em maior profundidade sobre as causas, bem como não resultou na saturação das Varas criminais, eis que não significou aumento no número dos processos além da capacidade de absorção dos juízos.
Concluiu-se, assim, que ao menos naquele Estado a eficiência da persecução penal não dependia, em sua maior parte, dos acordos celebrados entre a acusação e a defesa.
No que tange aos aspectos mais técnicos de mencionado instituto jurídico, a doutrina norte-americana, inclusive o trabalho de DOUGLAS MAYNARD,[13] possui o entendimento de que muitas são as possibilidades de obtenção de um plea deal, que poderá envolver, também, diferentes contornos jurídicos.
De acordo com os ensinamentos de referido autos, a negociação pode assumir a forma de charge bargaining, quando o acusado adere à proposta da acusação de se declarar culpado pela prática de crime menos grave em relação àquele que lhe era inicialmente imputado, de natureza mais grave. Há, nesta hipótese, negociação acerca da capitulação jurídica do delito. Exemplificativamente, menciona-se o caso de uma imputação inicial de tentativa de homicídio para a desclassificação para lesões corporais de natureza grave.
Por outro lado, poder-se-á acordar por um count bargaining, que merece destaque exatamente por retratar situação jurídica impensável no Brasil, tendo em vista os princípios da indisponibilidade e indivisibilidade da acusação, os quais regem a atuação do Ministério Público.
De acordo com esta espécie de plea bargaining, o acusado deve se declarar culpado em relação a apenas parte dos crimes que lhe forem imputados pela acusação, enquanto o Ministério Público, em contrapartida, descarta as demais imputações, retirando-as da exordial acusatória.
De outro lado, há também o sentence bargaining, no qual o acordo determina as consequências penais às quais estará o acusado sujeito ao final do processo. Dentre todas as espécies de plea bargaining aqui dispostas, esta é a que mais se aproxima da realidade processual penal vigente nos dias de hoje do Brasil. Conforme será visto, tal espécie de plea deal possui evidentes semelhanças com o instituto da colaboração premiada instituída pela Lei nº 12.850/2013. Nessa hipótese, o acusado declara-se culpado ou declara uma no contest plea (correspondente ao nolo contendere), ou seja, abre mão de seu direito de contestar a acusação, após entrar em acordo com o Ministério Público acerca das consequências penais que advirão de eventual sentença condenatória (modalidade e duração da pena a ser cumprida).
Por fim, há que se falar, ainda, do fact bargaining, que, de acordo com a doutrina de MAYNARD, é a espécie mais rara de plea bargaining nos Estados Unidos da América. Nestes casos, o acordo entre defesa e acusação recai sobre os fatos sobre os quais se debruça a denúncia, e não sobre a capitulação jurídica da conduta ou diretamente sobre as consequências penais. Neste caso, a acusação adere à versão mais benéfica dos fatos alegada pelo acusado, ainda que haja omissão de certos fatos conhecidos por ambas as partes, em troca da confissão (declaração de culpa) do acusado.
Ainda no que tange aos contornos técnicos do plea bargaining, cabe ressaltar que esta negociação entre acusação e defesa pode ocorrer em praticamente todas as fases do processo criminal, na maior parte das jurisdições. Cabe frisar, aqui, que, em razão da competência legislativa para versar sobre matérias penais e processuais penais, nos Estados Unidos, ser concorrente entre União e Estados, o instituto do plea bargaining pode assumir diferentes formas e versões a depender do Estado norte-americano objeto da discussão. Pode-se dizer, não obstante, que, em geral, admite-se a utilização do plea bargaining na quase totalidade do processo, desde que o acordo ocorra antes da prolação de sentença ou de atingido veredicto pelo corpo de jurados.
Assim, os acordos (ou plea deals) podem ocorrer antes mesmo do oferecimento da denúncia, como também nos momentos finais do procedimento criminal.
Deve-se ressaltar, também, que, conforme mencionado acima, quando se abordou as espécies de negociação da culpa (plea bargainings), que os plea deals não envolvem apenas a declaração de culpa pelo acusado, mas podem recair, igualmente, sobre declarações de no contest, em que o indivíduo não se declara culpado, porém abre mão de seu direito de contestar a acusação e proclamar sua inocência. Estes casos, de nolo contendere, igualmente implicam, para o acusado, condenação criminal nos termos em que acordado com o Ministério Público.
Ambos os casos, de guilty plea, em que o acusado se declara culpado, e de no contest, ou seja, de nolo contendere, implicarão anotações nos registros criminais do acusado quando sentenciada a respectiva condenação. A declaração de no contest, assim, não impede que sejam produzidos todos os efeitos da sentença criminal condenatória. Nestes casos, como em qualquer condenação, o acusado é sujeito aos efeitos primários e secundários do processo, com a perda temporária de seus direitos políticos, entre outros.
As diferenças dos casos de no contest para os casos de guilty plea residem no fato de que a declaração de no contest impede que a condenação criminal possa ser utilizada pela vítima como prova para fins de reparação civil pelo ilícito. Isso porque, no caso da guilty plea, a confissão no processo criminal pode ser utilizada, em tribunais cíveis, como prova de admissão de culpa pelo dano causado pelo ilícito pelo acusado, enquanto as declarações de no contest não poderão ser utilizadas pelo mesmo fim, eis que não houve confissão expressa dos fatos pelo réu.
Muitas são as proclamadas vantagens deste sistema, bem como as críticas ferrenhas à sua utilização como política criminal. Dentre as vantagens comumente declaradas entre os defensores da política, merecem destaque os argumentos de que a utilização do plea bargaining como política criminal contribui para a eficiência do sistema de justiça criminal como um todo; bem como que sua utilização ajuda a reduzir a carga laboral dos membros do Ministério Público responsáveis pela investigação e processamento dos delitos.
Diz-se, ainda, que tal mecanismo negocial, que pressupõe a autonomia de vontade das partes, traz segurança jurídica no que tange à concordância de ambas as partes ao resultado do processo, impedindo, assim, futuros recursos; assim como que a resolução do processo, sem que haja necessidade de longa e complexa instrução criminal, evita que testemunhas e vítimas traumatizadas tenham de passar pelo abalo psíquico e físico que eventualmente tenha origem na obrigação de depor em juízo na presença do réu.
Em contrapartida, também são muitas as críticas a esse mecanismo processual penal. Dentre os pontos negativos mais citados e que merecem destaque por sua contundência e verossimilhança estão, dentre outros, os fatos de que a utilização do plea bargaining como política de resolução de conflitos criminais pode levar à manipulação do sistema judicial criminal e ao consequente comprometimento de princípios e direitos legais e constitucionais dos réus, como, por exemplo, os da individualização das penas e ampla defesa.
Argumenta-se contra o instituto, também, que ele pode encorajar o abuso de poder por parte de juízes e promotores, comprometendo a paridade de armas entre acusação e defesa, eis que os meios coercitivos para obtenção de confissões não são facilmente detectáveis, principalmente em negociações ocorridas ainda na fase policial do processo.
Outrossim, é possível que a larga utilização de tal mecanismo crie situações em que os defensores do acusado, por despreparo, ausência de comprometimento com a causa e/ou ganância, sobreponham seus interesse pessoais àqueles do autor do crime, incentivando a aceitação de acordos prejudiciais ao acusado, quando consideradas suas circunstâncias pessoais e provas angariadas ao processo em seu desfavor; podendo aumentar, por outro lado, o número de condenações indevidas, eis que estimula o acusado, mesmo que inocente, a aceitar acordo em que declara sua culpa, para evitar o potencial recebimento de reprimenda mais gravosa.
Em síntese, algumas das críticas voltadas ao uso do plea bargaining se referem aos efeitos que a justiça penal consensual traz à efetividade da justiça criminal, no que tange à finalidade preventiva positiva especial das penas. Isso porque, argui-se com alguma frequência que os criminosos recalcitrantes, já acostumados às particularidades do sistema processual penal, são os que mais se beneficiam da justiça penal consensual, pois têm condições de negociar sentenças penais mais favoráveis em comparação àqueles que, esmorecidos pelo temor de punição mais severa do que a ofertada pelo promotor e desconhecedores da realidade prática, têm mais chances de aceitar punições tidas como “injustas”.
Adeptos desta crítica ao plea bargaining veem o mecanismo como indesejado, pois acreditam que ele enfraquece a eficácia da lei, ao permitir que o criminoso tenha a possibilidade de negociar os termos de sua punição. Sob esta ótica, o plea bargaining permite aos acusados, principalmente aos de fato culpados, se beneficiar indevidamente de penas mais brandas, eis que, para se atingir o acordo almejado, a acusação também terá de fazer concessões.
Ataques adicionais ao sistema de plea bargaining enaltecem a alegada coerção verificada no processo negocial. Essa perspectiva dá enfoque à possibilidade da acusação de se utilizar de inúmeros meios coercitivos para obtenção de acordos, relativos a possíveis ameaças ou, até mesmo, a falsas promessas, induzindo os acusados a declararem-se culpados e a abrir mão de direitos processuais a eles constitucionalmente garantidos.
Como mencionado, contudo, nem todas as perspectivas e diagnósticos sobre o plea bargaining são negativos ao instituto. Em favor de sua utilização como instrumento processual penal da justiça penal consensual, pode-se mencionar o argumento de que, nos Estados Unidos da América, os limites mínimos e máximos abstratamente cominados nos preceitos secundários dos delitos correspondem a pontos extremos dentro da possibilidade de fixação de penas, eis que, usualmente, significativamente distantes um do outro.
É dizer, tendo em vista que os limites mínimos e máximos das penas correspondentes a determinado delito podem distanciar-se décadas em relação um ao outro – eis que naquele país não há qualquer vedação, inclusive, a penas de caráter perpétuo –, é possível argumentar que os acordos propostos pela acusação possuem poder de barganha quase coercitivo, já que o temor em ser apenado com as penas mais graves dá outra perspectiva e peso à negociação, alçando a acusação a posição injustamente privilegiada.
Por outro lado, considerando que os limites legais das penas trazem incerteza praticamente invencível aos acusados, o plea bargaining lhes é favorável na medida em que viabiliza a aplicação mais individualizada das penas possíveis, em observância ao princípio da individualização das reprimendas, possibilitando a defesa que negocie condições de cumprimento mais adequadas ao caso concreto, eis que, na hipótese de acordo com a acusação, participa ativamente da decisão sobre a matéria.
Importante concluir, contudo, que o sistema do plea bargaining não questiona, na maior parte das vezes, a inevitável questão acerca do número de inocentes conduzidos a aceitar guilty pleas, mas examina o sistema exclusivamente sobre uma ótica técnica, referente às suas vantagens do ponto de vista de política processual penal.
5. Breves reflexões
De todo o exposto no presente artigo extrai-se a conclusão de que importantes foram as inovações trazidas pela Lei nº 9.099/95 no que tange à justiça penal consensual no Brasil. Os mecanismos despenalizadores, conforme visto ao longo do presente trabalho, vêm contribuindo, desde sua instituição, à resolução célere, econômica e menos traumática, para todas as partes, de conflitos penais envolvendo crimes de menor potencial ofensivo.
Esses novos instrumentos processuais penais alçaram a vítima a papel de destaque na justiça criminal brasileira, conferindo-lhe maior proteção no que diz respeito ao direito de ver o dano sofrido com o ilícito integralmente reparado. De outra parte, tais mecanismos estão alinhados com o entendimento de que o cárcere é solução a ser destinada apenas aos casos mais graves, evitando-se, assim, que autores de crimes de menor potencial ofensivo entrem em contato com criminosos de mais alta periculosidade, nesta definição incluídos os criminosos reincidentes e aqueles que praticaram crimes sobre os quais recai mais severa repugnância social.
Ainda que a constitucionalidade da lei tenha sido questionada em diversos aspectos e, no que tange à matéria penal, principalmente em relação às garantias prescritas no artigo 5º, incisos LIV e LVII – segundo as quais ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e nem será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória –, o entendimento acerca de sua inconstitucionalidade não encontrou respaldo na doutrina e na jurisprudência, eis que a própria Constituição Federal, em seu art. 98, I, determina a criação dos Juizados Especiais Criminais, com competência para o processo e julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, admitindo também, nas hipóteses nela previstas, a transação penal.
É possível concluir que, com a edição da mencionada lei, que culminou na criação dos Juizados Especiais Criminais, a tradicional jurisdição de conflito perde relevância, abrindo caminho para uma jurisdição de consenso, baseada no acordo entre as partes, na reparação voluntária dos danos causados à vítima e na aplicação pré-processual de pena não privativa de liberdade.
No que se refere, especificamente, aos institutos jurídicos despenalizadores estudados ao longo deste artigo e sua eventual aproximação com o plea bargaining, conclui-se que, ainda que verificáveis algumas semelhanças, diferem substancialmente entre si.
A suspensão condicional do processo (ou sursis processual), por exemplo, não pressupõe a admissão de culpa pelo agente, não se constituindo em espécie de defesa, ao contrário do conceito jurídico do guilty plea. Em outras palavras, ao concordar com a suspensão condicional do processo, nos termos convencionados com o Ministério Público, o agente não abre mão de seu direito constitucionalmente garantido à presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal), eis que a adesão à suspensão condicional do processo – inversamente do que ocorre nas modalidades de plea bargaining – não incorre em admissão de culpa ou qualquer espécie de autoincriminação.
De igual modo, a suspensão condicional do processo não pode ser confundida com o plea bargaining em razão da impossibilidade de transação entre as partes. Os termos do acordo, nos casos de plea bargaining, transcendem a esfera processual. O mesmo seja dito acerca da transação penal. Inversamente do que possa a nomenclatura sugerir, a transação penal ocorre em fase pré-processual, em que não há qualquer juízo de culpa formado e não implica a presunção de culpabilidade por parte do acusado, traduzindo-se em hipótese de mera conformação processual, conforme explorado em detalhes em tópico próprio do presente trabalho.
De outra parte, a espécie de plea bargaining que mais se aproxima a instituto jurídico vigente no Brasil é a sentence bargaining, em que o acordo entre acusação e defesa estipula de forma clara as consequências penais às quais estará o acusado sujeito ao final do processo. Isso porque, esta espécie de plea deal possui evidentes semelhanças com o instituto da colaboração premiada instituída pela Lei nº 12.850/2013, em que o acusado declara-se culpado e abre mão de seu direito de contestar a acusação, após entrar em acordo com o Ministério Público acerca das sanções que advirão de eventual sentença condenatória (modalidade e duração da pena a ser cumprida).
De se mencionar, por evidente importância para discussão da matéria, que as demais espécies de plea bargaining estudadas, a princípio, se chocam com o princípio constitucional do nulla poena sine judicio, eis que pressupõem a assunção de culpa, e posterior cumprimento de pena privativa de liberdade, sem que o acusado tenha sido condenado ao cabo do devido processo legal e por juiz competente.
De se concluir, portanto, que apesar de evidentes os avanços ocorridos na legislação processual penal em relação à justiça penal consensual, pouco pode ser atribuído ao empréstimo, sem alterações, do instituto do plea bargaining. Em outras palavras, apesar de ser flagrante que as medidas despenalizadoras instituídas pela Lei nº 9.099/95 foram inspiradas em conceitos comuns à legislação norte-americana, ocuparam, no Brasil, espaço e importâncias paralelas àquele instituto, tomando corpo e forma próprios e absolutamente distintos.
6. Referências Bibliográficas
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[1] Ainda que seja inegável que parte das teorias sobre os fundamentos e finalidades da pena se dedicassem ao estudo do crime como fenômeno fático e jurídico, divorciado de seus contornos sociológicos – como é o caso, por exemplo, da Escola Clássica.
[2] Conforme informações constantes do site oficial do Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”), disponíveis em http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios (último acesso em 25/10/2017).
[3] Dados obtidos no site do Conselho Nacional de Justiça, por meio do link http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf (último acesso em 25/10/17).
[4] Tal dispositivo prevê a obrigatoriedade da criação, por parte dos entes federativos, dentro de suas respectivas esferas de competência, de “juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de [...] infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.
[5] A necessidade de edição de lei federal para disciplina da matéria decorre da previsão expressa do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, que atribuiu competência privativa à União para legislar sobre matéria penal. Acerca do tema, destaque-se o seguinte trecho da Exposição de Motivos da Lei nº 9.099/95, disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9099-26-setembro-1995-348608-exposicaodemotivos-149770-pl.html (último acesso em 24/02/2017): “Deve-se ressaltar que, na falta de lei federal, a competência legislativa dos Estados poderia - embora inconvenientemente - ser plena para as normas de procedimento e, eventualmente, de processo (art. 24, X e XI e § 3º, Constituição Federal), mas não teria o condão de suprir à inexistência de norma federal em matéria de transação e de seus efeitos civis e penais, bem como em outros aspectos correlatos inseridos no presente Projeto, como v.g., a ampliação dos casos de ação penal condicionada à representação, a suspensão condicional do processo e outros. E, de qualquer modo, em matéria nova e delicada como esta, é mais que oportuno que a lei federal, observada a autonomia dos Estados, trace as regras gerais que deverão reger processo e procedimento renovados”.
[6] Inúmeros são os argumentos pela (in)constitucionalidade de referida lei. No que tange aos contornos e implicações da transação penal, cabe destacar o entendimento doutrinário de que “A aceitação da proposta de transação, pelo autuado (necessariamente assistido pelo defensor), longe de figurar afronta ao devido processo legal, representa técnica de defesa, a qual pode consubstanciar-se em diversas atividades defensivas: a) aguardar a acusação, para exercer oportunamente o direito de defesa, em contraditório, visando à absolvição ou, de qualquer modo, a situação mais favorável do que a atingível pela transação penal; ou b) aceitar a proposta de imediata aplicação da pena, para evitar o processo e o risco de uma condenação, tudo em benefício do próprio exercício de defesa”. PELLEGRINI GRINOVER, Ada, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, SCARANCE FERNANDES, Antonio e FLÁVIO GOMES, Luiz, Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: RT, 4a ed., 2002, pág. 39.
[7] PELLEGRINI GRINOVER, Ada, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, SCARANCE FERNANDES, Antonio e FLÁVIO GOMES, Luiz, Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: RT, 4a ed., 2002, pág. 37.
[8] A natureza penal material da norma é evidente, eis que pode causar a extinção da punibilidade pela renúncia ou decadência. Nesse sentido: “A representação, como vimos, é instituto de Direito processual (não se nega), mas também de Direito penal (porque leva à extinção da punibilidade, pela renúncia ou pela decadência). É de natureza mista, em consequência. Isso é suficiente para a incidência da regra da retroatividade benéfica constitucional (CF, art. 5.º, XL). Logo, todos os processos não encerrados definitivamente (é dizer, sem trânsito em julgado), não importando sua fase (de instrução ou já com sentença ou no tribunal, em grau de recurso), estão sujeitos à aplicação da regra de transição do art. 91: antes da prática de qualquer ato processual novo, deve-se dar oportunidade para a vítima representar ou não”. PELLEGRINI GRINOVER, Ada, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, SCARANCE FERNANDES, Antonio e FLÁVIO GOMES, Luiz, Op. Cit., pág. 223.
[9] Plea Bargaining’s Triumph. “A History of Plea Bargaining in America”. Stanford: Stanford University Press, 2003.
[10] Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/397/742/#annotation (último acesso em 20/02/2018).
[11] Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/390/570/case.html (último acesso em 20/02/2018).
[12] Disponível em http://www.ajc.state.ak.us/reports/plea91Exec.pdf (último acesso em 20/02/2018).
[13] Inside Plea Bargaining. “The language of Negotiation”. Nova Iorque: Plenum Press, 1984.
Mestranda em Direito Penal pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Atualmente é advogada associada no escritório Podval, Antun, Indalecio, Raffaini e Beraldo Advogados. Tem experiência em Direito Penal, Processual Penal e Administrativo. Assistente Jurídico de Desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo de 2015 a 2017. Advogou no escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAOLA ROSSI PANTALEãO, . Justiça Penal Consensual: um paralelo entre a Lei 9.099/95 e o instituto jurídico do plea bargaining Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2019, 05:02. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53730/justia-penal-consensual-um-paralelo-entre-a-lei-9-099-95-e-o-instituto-jurdico-do-plea-bargaining. Acesso em: 23 dez 2024.
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