KELLY NOGUEIRA DA SILVA
(Orientadora)[1]
RESUMO: O presente artigo traz a possibilidade do registro civil por mais de um pai (ou mãe), por afetividade. Com o decorrer dos anos e mudanças nas famílias brasileiras, houve uma necessidade de adequação da legislação de modo que abrangesse todas as formas de relações, especialmente no que concerne à filiação. A paternidade socioafetiva decorre destas mudanças, passando a aderir a mesma proteção Constitucional que recebe a paternidade biológica, através da valorização jurídica do afeto. A multiparentalidade surgiu para solucionar os conflitos que existiam e privilegiar os interesses das crianças e adolescentes envolvidos, que deixam de ter que optar por uma única singular paternidade. Por fim, a multiparentalidade garante também o princípio da dignidade da pessoa humana de todos os envolvidos, assim como outros direitos garantidos constitucionalmente decorrentes da filiação, nos aspectos pessoais e patrimoniais.
PALAVRAS-CHAVE: Dupla paternidade; Família; Registro Civil; Multiparentalidade; Afetividade
ABSTRACT: This article brings the possibility of civil registration by more than one father (or mother), by affection. Over the years and changes in Brazilian families, there was a need to adapt the legislation to cover all forms of relationships, especially with regard to affiliation. Socio-affective paternity stems from these changes, and now adheres to the same Constitutional protection that biological paternity receives through the legal appreciation of affection. Multiparenting emerged to resolve existing conflicts and to privilege the interests of the children and adolescents involved, who no longer have to choose a single parenthood. Finally, multiparenting also guarantees the principle of the dignity of the human person of all involved, as well as other constitutionally guaranteed rights arising from membership, in personal and patrimonial aspects.
KEYWORDS: Double paternity; Family; Civil Registration; Multiparenting; Affection
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. FAMILIA: CONCEITO E EVOLUÇÃO. 3. FILIAÇÃO. 3.1 Evolução da definição e dos parâmetros da filiação – multiparentalidade. 3.2 A dupla paternidade/maternidade em decorrência das relações socioafetivas. 3.3 Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica. 4. PRINCIPAIS EFEITOS DA DUPLA PATERNIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. 4.1 Pessoais. 4.2 Patrimoniais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS.
Nesta pesquisa foi discutido como o instituto da multiparentalidade é recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro, com foco na dupla paternidade e seus efeitos jurídicos.
Como objetivo geral, foi analisado como o ordenamento jurídico vigente recepciona a lei da multiparentalidade, no que se refere à dupla paternidade, e quais são os efeitos jurídicos: pessoais e patrimoniais.
Além disso, foi apresentado a evolução histórica do conceito de família, além de demonstrar as motivações que propiciaram o surgimento do estatuto da dupla paternidade, e investigar os efeitos jurídicos.
A Constituição Federal de 1988 deixou de reconhecer apenas a família marital como entidade familiar, ampliando o seu rol e consentindo, uma infinidade de arranjos familiares amparado nos princípios constitucionais.
Dentro dessas evoluções das relações familiares, surge a multiparentalidade, instituto que reconhece a filiação socioafetiva simultaneamente com a biológica, resultando em múltiplas filiações.
Na legislação, há previsão expressa do acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta, por requerimento do enteado e assentimento daqueles. A Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009, conhecida popularmente como Lei Clodovil Hernandez (foi assim chamada porque se trata de um projeto apresentado à Câmara dos Deputados pelo então Deputado Federal Clodovil Hernandes), autoriza a alteração da Lei de Registro Públicos para permitir ao enteado ou à enteada adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta. A Lei nº 11.924/09 sancionou essas novas normas ao determinar uma alteração no art. 57, § 8o da Lei nº 6.015/73.
Nesse seguimento, o ordenamento jurídico brasileiro trouxe uma grande revolução para a realidade das famílias contemporâneas, porque é cada vez mais comum encontrar famílias recompostas e, nesses casos, tal lei permite ao enteado ou à enteada usar um nome que reflete sua realidade e sua posse do estado de filho. A lei, em tese, não trata da retirada do nome de família biológica, mas do simples acréscimo de outro nome do padrasto ou da madrasta.
Por fim, deve ser levada em consideração, na atribuição da paternidade a dignidade das pessoas envolvidas, e, acima destas, a prevalência da observância dos interesses da criança, do adolescente e do jovem, previsto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e reafirmada legislativamente através do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
Este artigo foi desenvolvido pelo método dedutivo, que é um método racionalista, que pressupõe a razão com a única forma de chegar ao conhecimento verdadeiro; utiliza uma cadeia de raciocínio descendente, da análise geral para a particular, até a conclusão; utiliza o silogismo: de duas premissas retira-se uma terceira logicamente decorrente. Com a leitura de doutrinas, legislação e jurisprudências. As citações serão efetuadas a partir do sistema autor/data.
2. FAMILIA: CONCEITO E EVOLUÇÃO
O conceito de família, segundo a doutrina majoritária, é definido como sendo um conjunto de pessoas que convivem em uma mesma casa e que possuem um grau de parentesco entre si, estabelecendo um lar. Esse papel que a família exerce para no desenvolvimento dos filhos é de suma importância. Pois, é nesse elo familiar que são repassados os valores morais e sociais que servirão de base para eles quando tiverem em sociedade, como também levar adiante as tradições e os costumes trazidos em suas gerações. Além de serem responsáveis por tutelarem os direitos da criança e do adolescente.
Conforme estabelece o artigo 227 da Constituição Federal de 1988:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A Constituição Federal, vem esclarecer que é dever de todos os cidadãos juntamente com o Estado, independente do grau de parentesco, proteger e resguardar os direitos fundamentais e sociais da criança e do adolescente.
Assim, define Isabella Henriques (2013):
Ao determinar com exatidão o dever “da família, da sociedade e do Estado”, realiza com veemência um chamamento normativo a todos os atores sociais para uma ação constante na defesa e promoção dos direitos das crianças; e não somente da criança diretamente ligada às nossas vidas, da criança filha, da criança sobrinha, da criança neta ou da criança conhecida.
Ainda segundo a Carta Magna (1988) art. 226, para exercer esse poder, a família é protegida pelo Estado: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Esse conceito de família tem início na Roma Antiga, onde a família era originada mais pela autoridade que o “pater famílias” (pai de família), exercia sobre esta, e não por laços de sangue nem de afetividade.
Após grandes evoluções nesse instituto o código de 1916 ainda vinculava família ao casamento formal e aos laços sanguíneos. Pois as famílias só eram formadas através da procriação após o enlace matrimonial, o que estivesse fora dessa produção matrimonializada e biológica não era reconhecido como entidade familiar.
Já a Carta Magna de 1988 trouxe mudanças nesses modelos originários, por meio do art. 226, existem três modelos de entidades familiares: casamento (§ 1º e § 2º), união estável (§ 3º) e família monoparental (§ 4º), porém a realidade social traz mais alguns modelos que não estão explícitos na nossa constituição, mas que são amparadas pelos seus princípios, podendo então surgir uma infinidade de arranjos familiares, tais como as famílias socioafetivas que são baseadas em princípios como o amor, afeto e carinho. Possibilitando assim a afiliação multiparental, que reconhece a afiliação biológica simultaneamente com a socioafetiva.
Nesse diapasão, o instituto família, ainda está em constante evolução, assim os nossos institutos jurídicos estão buscando formas de se adequar as demandas que vão surgindo nesta nova realidade.
3.1 Evolução da definição e dos parâmetros da filiação – multiparentalidade
A família do século XX era patriarcal, patrimonial, hierarquizada e matrimonializada. Formada pelo o pater, pai, o provedor da família com soberania e poder de decisão sobre a vida e morte dos filhos, e só posteriormente vinha os filhos e a mulher, em um caráter inferior. O patrimônio da família era a forma de sustento de todos.
Segundo Maria Berenice Dias “a família constituída pelo casamento era a única a merecer reconhecimento e proteção estatal, tanto que sempre recebeu o nome de família legítima.” (DIAS, 2013, p. 360). Portanto, os filhos somente eram reconhecidos como tal, com efeitos pessoais e patrimoniais se fossem concebidos dentro do matrimônio com laços consanguíneos.
Com as mudanças e evoluções da sociedade houve uma transformação do instituto família, passando para o plural: famílias. Uma grande diversidade de formas e composições, onde os laços afetivos se igualam aos biológicos. Isso trouxe a necessidade de alterações na lei, o que ocorreu apenas em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, neste período ocorreram então as maiores e mais importantes mudanças no direito de família.
Ademais, desde o Código Civil de 2002 houve uma consagração desse feito constitucional. Como podemos verificar no disposto no art.1.593, “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Nesse sentido, observando a realidade das famílias da atualidade, a multiparentalidade, o ordenamento jurídico se adequou aos novos arranjos familiares, amparando as diversas formas de parentescos, sejam eles consanguíneos ou por afetividade, dando a todos os mesmos direitos pessoais e patrimoniais, como veremos no decorrer desta pesquisa.
3.2 A dupla paternidade/maternidade em decorrência das relações socioafetivas
O instituto da multiparentalidade começou a ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro através desta consagração do princípio da igualdade entre todos os filhos e da dignidade da pessoa humana, pois foi extinta qualquer forma de discriminação e diferenciação entre os filhos consanguíneos e os por afetividade, que até então existiam. E o afeto, elemento identificador das entidades familiares, passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. Uma vez que para comprovar a paternidade biológica é necessário comprovação de vinculo sanguíneo entre pais e filho, ou seja, ambos devem ter o mesmo material genético. Já na paternidade socioafetivo, os laços entre eles decorrem da afetividade, convivência, amor, carinho, onde ambos optam por tal reconhecimento.
Para a paternidade socioafetiva, pai não é apenas aquele que possui vínculo genético com a criança, mas acima de tudo, é aquele que cria, educa, ampara, fornece amor, carinho, compreensão, dignidade, enfim, que exerce a função de pai em atendimento ao melhor interesse do menor. (CYSNE, 2008, P. 214)
Após esse reconhecimento, o filho socioafetivo passa a ter os mesmos direitos dos consanguíneos, sem distinção.
De modo especial, no que tange à igualdade dos direitos dos filhos, o § 6º do art. 227 da CF/88 implica numa única resposta à pergunta sobre a categoria dos filhos, hoje. Assim, a lei reconhece apenas duas categorias, ao sabor da análise do assunto filiação, isto é, aqueles que são filhos, e aqueles que não o são... De tal sorte que, em face da proibição constitucional no que concerne às designações discriminatórias, perde completamente o sentido, sob o prisma do Direito, os adjetivos legítimos, legitimados, ilegítimos, incestuosos, adulterinos, naturais, espúrios e adotivos. (HIRONAKA, 2000)
Neste contexto, “a Constituição provoca assim uma revolução não apenas normativa, mas uma revolução da mentalidade humana” (HIRONAKA, 2000), uma vez que o afeto passa a ser a principal ligação nas relações familiares.
3.3 Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica
A Constituição Federal de 1988 veio amparar e equiparar os filhos de origem não biológica, colocando-os no mesmo patamar dos consanguíneos, em seu artigo 227, parágrafo 6º traz tal ascensão, quando profere que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Nesse sentido Carlos Roberto Gonçalves traz:
A Constituição de 1988 (art. 227, §6º) estabeleceu absoluta igualdade entre todos os filhos, não admitindo mais a retrógrada distinção entre filiação legítima e ilegítima, segundo os pais fossem casados ou não, e adotiva, que existia no Código Civil de 1916. (2014, p.320)
Destarte, todas as modalidades de filiação, independentemente da origem são igualmente amparadas pelo o ordenamento jurídico em todos os aspectos e de forma igualitária.
A Lei n. 6.015/73, que disciplina sobre os registros públicos, em 2009, sofreu alteração em seu art. 57 por meio da Lei n. 11.924, onde foi inserido o parágrafo 8°, que dispõe: “O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2° e 7° deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família”.
Deve-se lembrar também, que, nenhuma filiação se sobrepõe a outra. Ou seja, mesmo que o indivíduo tenha uma filiação socioafetiva, registrada ou não civilmente, não lhe é afastado nenhum direito à paternidade biológica.
Não é outro o entendimento pacificado da Suprema Corte, que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante com o de origem biológica. (Tese de Repercussão Geral n. 622, 21/09/2016, Recurso Extraordinário n. 898060 AgR/SC)
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBRE PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3º, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES.
1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem.
2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou- se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo.
3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobre princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade.
4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).
5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobre princípio da dignidade humana.
6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.
7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.
8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226,
§ 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).
9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil (ADI nº. 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).
10 A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade.
11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser.
12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio).
13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.
14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina.
15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).
16 Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (STJ, 2016)
(RE 898060, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017)
Nessa perspectiva, Cristiano Chaves de Farias e Thiago Felipe Vargas Simões elucidam:
Após a obtenção da declaração da origem genética, inexiste supremacia da relação biológica sobre a relação já existente (seja adotiva, seja socioafetiva), estando tal situação plenamente albergada pela Carta Constitucional de 1988 [...] (FARIAS; SIMÕES, 2010, p.169).
Sob este prisma, a filiação afetiva e a biológica, podem ser reconhecidas concomitantemente, e sem soberania uma para com a outra, dando a origem do instituto da dupla paternidade.
4. PRINCIPAIS EFEITOS DA DUPLA PATERNIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No ordenamento jurídico brasileiro a dupla paternidade atinge os todos os efeitos pessoais do cidadão como a constituição de parentesco, nome, direitos sucessórios e alimentos em relação à ambos os pais. Esse direito à identidade será inclusive com dois sobrenomes no documento de identificação, assim como os nomes dos dois pais (biológico e afetivo) e dos quatro avós.
Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald doutrinam:
A decorrência da admissibilidade desta tese seria a multi-hereditariedade, na medida em que seria possível reclamar herança de todos os seus pais e de todas as suas mães. Isto sem esquecer a possibilidade de pleitear alimentos, acréscimo de sobrenome, vínculos de parentesco... (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 672)
Deste modo, todos os efeitos resultantes de qualquer paternidade também alcançam o instituto da dupla paternidade.
Os efeitos patrimoniais da dupla paternidade atinem todos os âmbitos, inclusive os direitos sucessório, como alimentos e heranças de ambos os pais, e consequentemente de todos os avós.
Segundo Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, dispõe que os direitos sucessórios, como herança e pensão, têm sido motivo de debates. “A multiparentalidade traz consigo todos os efeitos, mas o princípio da igualdade é a diretriz. O filho tem direito de receber duas pensões, três heranças. Foi uma circunstância da vida dele que permitiu”, alega.
Nesse seguimento, Monalisa Marques, assim discorre:
É que uma pessoa pode ter no seu registro de nascimento dois sobrenomes, oriundos dos seus dois pais, cujos nomes também constarão no documento de identificação, e, por isso, pode ter quatro avós paternos, refletindo, assim, ipsis litteris sua história de vida, podendo, ainda, vir a ser beneficiado com duas heranças. (Marques, 2019)
Desse modo, pode acontecer da herança de um filho com dois pais e uma mãe ter que ser dividida entre eles, caso o filho morra e não tenha deixe herdeiros descendentes. De acordo com o disposto no caput do art. 1.836 do Código Civil de 2002: “Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. ”
A dupla paternidade vem regularizar juridicamente, as situações que já são vivenciadas cotidianamente, para que os direitos da criança sejam preservados. Sempre buscando a primazia do melhor interesse da criança e do adolescente e o seu direito à personalidade.
No que diz respeito a prestação de alimentos os efeitos da multiparentalidade atinge a todos os pais, ou seja, afetivo e biológico, podendo ser pleiteado esse direito aos dois, pois a obrigação recai sobre ambos.
Assim como, consoante garante o art. 229 da Constituição de 1988: “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”, podendo então todos os pais prestar alimentos aos filhos, bem como, estes poderão prestar alimentos a todos os pais, caso necessitarem.
Ainda nesse seguimento, dispõe o art. 1.696 do Código Civil de 2002 “O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”, observando o binômio necessidade e possibilidade descrito no §1º do art. 1.694, desse mesmo código.
Nesse sentido, Marisa Schimitt e Yuri Augusto explicam:
Na tripla filiação multiparental o menor necessitado poderá requerer alimentos de qualquer um dos pais, atendendo o princípio do melhor interesse da criança, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Resta claro que a possibilidade de uma tripla filiação teria muito mais condições de contribuir para o adequado desenvolvimento do menor. Nos casos onde os magistrados decidissem por reconhecer a tripla filiação, sempre haverá a prévia relação familiar de fato, restando apenas reconhecer uma regulamentação de direito. (Schimitt, Augusto, 2013)
Na linha do exposto, tem-se que, é dever de um pai prestar alimentos aos filhos, na multiparentalidade acontece da mesma maneira, e os filhos deverão prover a todos os pais os alimentos necessários, caso estes necessitem.
Tendo em vista as constantes modificações que vem sofrendo o instituto familiar tradicional, deixando de lado as intervenções patriarcais, onde os matrimônios eram baseados em interesses patrimoniais e passando para um novo seguimento de famílias eudemonista, que buscam se pautarem nos princípios garantidos constitucionalmente, como o principio da dignidade humana, principio da afetividade, o qual atribui afeto aos vínculos familiares, sendo esse um dos principais aspectos a serem observados no instituto da multiparentalidade, uma vez que o que se sobressai são os interesses da criança e do adolescente.
Dessume-se, pois que, a multiparentalidade veio regulamentar e dar ciência dos direitos e deveres das situações que já estão sendo vividas no cotidiano dos lares, buscando preservar a paternidade biológica, mas não deixando de lado a paternidade afetiva, criando assim o instituto da dupla paternidade, onde ambas as paternidades andam juntas e nenhuma se sobrepõe a outra, buscando sempre o bem estar do menor.
Portanto, quando se trata da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro, podemos afirmar que recepciona todos os efeitos jurídicos do registro civil comum, como sobrenome, familiares, heranças, prestações de alimentos. E no que tange ao instituto da dupla paternidade o registro ainda pode ocorrer concomitantemente, biológico e afetivo, sem domínio de um sobre o outro.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 25ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
CYSNE, Renata Nepomuceno e. Os laços afetivos como valor jurídico: na questão da paternidade socioafetiva. Família e jurisdição II. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 189-223.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo, SP: Revista Tribunais, 2013.
FARIAS, Cristiano Chaves de; SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. Reconhecimento de filhos e a Ação de investigação de paternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 169.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 672.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Dos filhos havidos fora do casamento. in Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/528/dos-filhos-havidos-fora-do-casamento/1> Acesso em: 14 out. 2019
HENRIQUES, Isabella. O Direito novo do artigo 227. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI191102,91041O+Direito+novo+do+art+227> Acesso em: 27 out. 2019.
MARQUES, M. (28 de 02 de 2019). Da dupla paternidade e dos efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais dela decorrentes. JusBrasil., Disponível em: <https://monalisacmp.jusbrasil.com.br/artigos/681176094/da-dupla-paternidade-e-dos-efeitos- patrimoniais-e-extrapatrimoniais-dela-decorrentes> Acesso em 17. out. 2019
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo regimental no recurso extraordinário de repercussão geral reconhecida, que negou a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. AgR RE 898060. Santa Catarina . Relator: Ministro Luiz Fux. DJ: 15/03/2016, Disponível em:
<https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/322135949/agreg-no-recurso-extraordinario-agr-re-898060-sc-santa-catarina> Acesso em: 15. Out. 2019.
SCHIMITT, Marisa; AUGUSTO, Yuri. A tripla filiação e o direito civil: Alimento, a guarda e sucessão. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/26265/a-tripla-filiacao-e-o- direito-civil-alimentos-guarda-e-sucessao>. Acesso em: 27. Out. 2019.
[1] Especialista em Direito Civil. Professora de Direito da Faculdade Serra do Carmo. E-mail: [email protected]
Acadêmica do Curso de Direito pela Faculdade Serra do Carmo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Kállita Ribeiro da. A multiparentalidade sob a ótica do ordenamento jurídico nos novos arranjos familiares, com enfoque na dupla paternidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2019, 05:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53735/a-multiparentalidade-sob-a-tica-do-ordenamento-jurdico-nos-novos-arranjos-familiares-com-enfoque-na-dupla-paternidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
Por: isabella maria rabelo gontijo
Por: Sandra Karla Silva de Castro
Por: MARIA CLARA MADUREIRO QUEIROZ NETO
Precisa estar logado para fazer comentários.