JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL
(Orientador)[i]
RESUMO: O presente estudo buscou analisar se há violação ao sistema acusatório adotado na Constituição Federal de 1988 pela possibilidade da decretação ex officio da prisão preventiva no curso da ação penal. Para tanto, objetivou-se inicialmente realizar uma análise sobre os sistemas processuais por meio da identificação de seus traços caracterizadores e a partir de então identificar se o sistema processual penal vigente está de acordo com o sistema resguardado pela Constituição Federal. Diante disso, discutiu-se sobre as medidas cautelares pessoais, em especial, a prisão preventiva, e por fim, realiza-se uma análise sobre as garantias do processo penal democrático. Para tanto, o estudo foi desenvolvido por meio de revisão bibliográfica com abordagem dedutiva. É relevante a discussão sobre tal tema com fito de esclarecer a importância do respeito ao sistema acusatório, considerando-se a constante ponderação que se faz entre o direito fundamental à liberdade e o direito punitivo do Estado. Concluiu-se que ao passo que o legislador permite que o juiz possa, no curso da ação penal, decretar de ofício tal medida cautelar, afasta-se do sistema acusatório estabelecido na Constituição Federal, tendo em vista que tal conduta fere o princípio da imparcialidade.
Palavras-chave: medidas cautelares, imparcialidade, prisão preventiva.
ABSTRACT: The study aimed to analyze if there is violation of the accusatory system, established in the Federal Constitution of 1988, by the possible decreetation ex officio of pre-trial detention in the course of criminal proceedings. An analysis of the procedural system came out initially, through the identification of their characterizing traits and from this, whether the current criminal procedural system it was identified in accordance with the system protected by the Federal Constitution. In this regard, the discussion was conducted focusing on personal precautionary measures, especially pre-trial detention, and finally, was made an analysis of the democratic criminal process' guarantees. Thus, with deductive approach through a bibliographic review the study was developed. It is relevant this topic discussion to clarify the importance of respect for the accusatory system, when it is considered the constant relation between the fundamental right to liberty and the punitive right of the state. The conclusionis when the legislature allows the judge to decree such precautionary measure of office, in the course of criminal proceedings, this act then departs far from the accusatory system established in the Federal Constitution, considering that such conduct violates the principle of impartiality.
Keywords: precautionary measures, impartiality, pre-trial detention.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Dos sistemas processuais penais: a gestão da prova como princípio unificador. 2.1 Sistema processual acusatório. 2.2 Sistema processual inquisitório. 2.3 O reducionismo do sistema misto. 2.4 Sistema processual adotado na legislação brasileira. 3 das medidas cautelares pessoais. 3.1 Noções gerais 3.2 Das medidas cautelares pessoais. 3.3 Da prisão preventiva. 4 Da (in) conformidade da decretação da prisão preventiva de ofício no curso da ação penal à luz do sistema acusatório constitucional. 4.1 Das garantias do processo penal em um Estado Democrático de Direito. 4.2 Do papel do juiz no processo penal em face do princípio da imparcialidade. 4.3 Da instrumentalidade do processo penal e o respeito ao sistema acusatório constitucional. 5 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A prisão preventiva é um tipo de medida cautelar pessoal que visa garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. O Código de Processo Penal Brasileiro, com a alteração advinda da Lei nº 12.403/2011, restringiu a atuação de ofício do juiz em relação à decretação de prisão preventiva no curso do inquérito policial, no entanto, permaneceu tal possibilidade quanto no curso do processo, conforme preceituado no artigo 311 do referido código.
Nesta feita, o presente estudo buscou analisar se há violação ao sistema acusatório adotado na Constituição Federal de 1988 pela possibilidade da decretação ex officio da prisão preventiva no curso da ação penal. A discussão sobre o presente tema mostra-se de extrema relevância, considerando-se a necessidade de se esclarecer a importância do respeito ao sistema acusatório estabelecido na Lei Maior, tendo-se em vista a constante ponderação entre o direito fundamental à liberdade e o direito punitivo do Estado.
Inicialmente, fez-se uma análise sobre os sistemas processuais inquisitório e acusatório por meio da identificação de seus traços caracterizadores. A partir de então, buscou-se identificar se o sistema processual penal vigente está de acordo com o sistema resguardado pela Constituição Federal. Diante disso, discutiu-se sobre as medidas cautelares pessoais, em especial, a prisão preventiva, e por fim, foram analisadas as garantias do processo penal democrático.
Para obter os resultados e respostas acerca do problema de pesquisa apresentado, foirealizada uma pesquisa bibliográfica utilizando-se livros, pesquisas, monografias, teses e artigos científicos impressos ou eletrônicos. Objetivou-se no estudo definir os contornos do sistema processual penal preconizado pela Constituição Federal, a partir de um sistema de garantias, com o intuito de demonstrar a invalidade do artigo 311 do Código de Processo Penal frente à Lei Maior.
2 DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS: A GESTÃO DA PROVA COMO PRINCÍPIO UNIFICADOR
Goldschmidt (1935, p.67, apud, LOPES JR., 2019, p. 42) compreende que a estrutura do processo penal de um país funciona como um termômetro dos elementos democráticos e autoritários da sua Constituição. Isso porque o sistema processual penal mantém ligação com o modelo constitucional que dele deriva. Ademais, é a partir da análise do Código de Processo Penal de um país que se pode identificar se ele é utilizado como meio de resguardar os direitos individuais ou como subterfúgio de resguardo da ordem e consequente violação de garantias individuais.
Nesse sentido, Machado Cruz (2006) afirma que é a partir da observância do Código de Processo Penal de uma nação que é possível entender como se relacionam o Estado e o indivíduo, e que essa relação não pode ser entendida como de adversários, já que ao mesmo tempo que o Estado visa garantir a ordem e a segurança deve também resguardar a liberdade do indivíduo.
Nesse aspecto, Carvalho (2006) propõe que o Direito Processual Penal sintetiza esse conflito entre o ius puniendi e o ius libertatis e exterioriza a forma que o sistema jurídico-político resolve tal conflito. Diante disso, percebe-se a importância do processo penal de um Estado, pois é a partir dele que é possível identificar como o sistema lida com a colisão entre liberdade individual e segurança pública e com isso se pode identificar quais os preceitos daquela sociedade, se autoritários ou libertários. Ao realizar tal análise é possível constatar qual o sistema processual adotado por tal Estado, se é o acusatório ou o inquisitório, esses sistemas possuem peculiaridades que os distinguem, principalmente, no que diz respeito à garantia das liberdades individuais frente ao poder de punir do Estado.
Quanto à distinção entre os referidos sistemas, observa-se que o sistema acusatório é predominante em países que prezam pela liberdade individual, ao passo que o sistema inquisitório predomina de forma histórica em países caracteristicamente fundados no autoritarismo ou totalitarismo, em que se busca uma soberania do Estado em face das liberdades individuais (LOPES, 2019).
Sob o mesmo ponto de vista, Thums (2006) afirma que a compreensão dos sistemas processuais é essencial para o estudo do Direito Processual Penal, por representar a ideologia política na estrutura da ordem jurídica, sendo que o sistema inquisitório é coadunável em Estados autoritários, enquanto que o sistema acusatório preconiza o Direito Penal mínimo e os direitos fundamentais maximizados.
Para realizar a distinção entre tais sistemas, Jacinto Coutinho (2015, p.02, apud LOPES JR, 2019, p. 96) preceitua que tendo em vista que o processo tem como uma das finalidades a reconstituição de um fato histórico, que é o crime, por meio da instrução probatória, a gestão da prova é o princípio unificador por meio do qual é possível identificar se o sistema é inquisitório ou acusatório. Então, para identificar o sistema processual é necessário observar a quem compete à produção probatória, se às partes ou se ao juiz.
Portanto, é a partir da gestão da prova, como núcleo do sistema processual, que se pode definir qual o princípio informativo do sistema, se é o dispositivo ou o inquisitivo e, assim, diferenciar os sistemas processuais penais, que são subdivididos pela doutrina em acusatório, inquisitório e misto. Cabe destacar que o presente estudo não tem o intuito de esvair o tema sobre os sistemas processuais, visto que é de muita complexidade, mas sim o de apresentaras principais características que os distinguem e os seus respectivos princípios informadores.
Prado (2006) ao distinguir os sistemas processuais, afirma que o sistema inquisitório tem o objetivo de realizar o direito penal material, enquanto que o sistema acusatório objetiva a defesa dos direitos fundamentais do acusado frente ao poder que tem o Estado que, além de punir, estabelece o processo pelo qual o fará. Ressalta que é essencial identificar os sujeitos processuais e os atos que realizam, pois isso vai diferenciar os modelos processuais, ao passo que o processo não se concretiza sem a interferência desses sujeitos participantes do processo.
2.1 Sistema processual acusatório
O sistema acusatório remonta a sua origem ao Direito grego, o qual se desenvolveu referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Nessa época, os delitos mais graves podiam ser acusados por qualquer pessoa, enquanto que os menos gravosos seriam por meio de acusação privada. No direito romano da Alta República havia dois tipos de processo penal, o que cedia maiores poderes ao magistrado, o cognitio, e o que permitia uma conduta ativa do cidadão, a accusatio. Ocorre que, na época do Império tal sistema passou a se mostrar insuficiente, visto a pretensão de vingança que fez com que cada vez mais os juízes passassem a tomar para si as funções dos acusadores, ao ponto de unir em um mesmo órgão as funções de acusar e julgar (LOPES JR., 2019).
Prado (2006) compreende sistema acusatório como normas e princípios fundamentais dispostos e orientados a partir de um princípio principal denominado acusatório, que tem como características um processo de partes com funções designadas aos três sujeitos do processo, outra característica importante diz respeito às relações recíprocas desses sujeitos no processo que têm direitos, deveres, ônus e faculdades. Nesse aspecto, é importante fazer uma análise entre o que o autor denomina de “visão estática” que tem relação com o que foi determinado pelo ordenamento a tais sujeitos e o que de fato eles praticam.
Percebe-se, assim, que é possível identificar tal sistema quando se verifica a rigorosa separação entre as funções de acusar, defender e julgar encarregadas em pessoas distintas, pois assim mantém-se o devido afastamento do juiz em relação à gestão da prova o que permite o respeito ao princípio da imparcialidade.
Dessa forma, conclui-se que um dos elementos caracterizados do sistema acusatório é a atribuição das funções de acusar e julgar a órgãos diferentes. Destaca-se que conforme defende Lopes Jr. (2019) só essa separação inicial não é suficiente, é necessário que ao longo do processo mantenha-se o juiz afastado da produção probatória para que a imparcialidade seja resguardada.
O sistema acusatório predominou até meados do século XII, e foi paulatinamente, substituído ao passo que o juiz obteve atribuições acusatórias, o que resultou em um latente conflito de interesses, que cominou no surgimento de um novo modelo de sistema, o sistema inquisitório.
Percebe-se, assim, que o sistema acusatório se delineou na antiguidade grega, tendo sido fortalecido no direito romano e transitado pelo direito germânico e desde então seguido na Europa continental uma trajetória ascendente até o século XIII, quando quase desapareceu, devido ao incremento de outro sistema da administração da justiça penal: o sistema inquisitivo (ABADE, 2005).
2.2. Sistema processual inquisitório
Ao longo do século XII, o sistema inquisitório passa a substituir o sistema acusatório, tendo predominado até finais do século XVIII ao início do XIX. Sendo tal substituição advinda da inércia das partes no processo, o que fez com que o Estado tomasse a frente do processo em vista de combater a criminalidade. Com isso, paulatinamente, o Estado passou a cada vez mais invadir a esfera do órgão acusador, até chegar ao ponto de unir as funções de acusador e julgador, passando assim a atuar como se parte no processo fosse, ao passo que investiga, acusa e julga (LOPES JR., 2014).
O processo inquisitivo assumiu rapidamente caráter ordinário, difundindo-se, principalmente, a partir do Século XIV, em todo o continente europeu, generalizando-se para todo tipo de delito. De espectador impassível que era, o juiz passou a dirigir o sistema. Mudaram as técnicas: não havia contraditório; os atos processuais ocorriam secretamente; o acusado, passivo, culpado ou não, era obrigado a dizer tudo o que sabia (ABADE, 2005, p. 117-118).
O processo inquisitório difundiu-se rapidamente, tendo o juiz passado da figura de espectador parar condutor do sistema.
Na síntese de Cordero (1998, p. 299 e 365, apud ABADE, p. 134, 2005), o mecanismo inquisitório clássico, onde um mesmo órgão procede sem impulso alheio, investigando, instruindo e julgando, “ignora” a idéia de ação – que implica necessariamente em duas partes. Isso porque o processo é uma máquina verbal, que implica em disputa – o que só pode ser conseguido no sistema acusatório, no qual os atores dispõem da ação e instruem a demanda; o juiz situa-se entre as partes, espectador imóvel.
Nesse sistema, pode-se notar como característica a gestão da prova nas mãos do juiz e a sua parcialidade, principalmente, em relação ao ofício na instrução do processo. Tal sistema se mostra violador dos direitos individuais ao passo que dá mais poder ao Estado para exercer o direito de punir. Esse sistema tem como fundamento a atribuição de poderes de instrução ao órgão julgador, nesse passo não é possível tratar de imparcialidade, haja vista que o juiz ao tempo que instrui o processo também o julga (LOPES, 2019).
2.3 O reducionismo do sistema misto
Majoritariamente a doutrina classifica o sistema processual brasileiro como um “sistema misto”, isso quer dizer que engloba tanto características do sistema acusatório quanto do sistema inquisitorial. Nesse sentido é o que defende Távora (2017) ao afirmar ser possível a existência de um sistema misto devido o processo penal estar dividido em duas fases, o que possibilitaria o predomínio do sistema inquisitivo na fase de investigação, caracterizado pela ausência de contraditório, com rito instrutório secreto e prevalência da palavra escrita e o acusatório na fase processual, caracterizado pela garantia de contraditório, publicidade, oralidade.
Contudo, Lopes Jr. (2014) entende que tal classificação é insuficiente, visto que não identifica qual o núcleo fundante dos sistemas processuais, que seria a gestão da prova atribuída às partes no processo, sendo isso que permite a imparcialidade do juiz. Então, se cabe às partes a produção de provas, isso garante a imparcialidade do juiz e se tem um sistema acusatório, no entanto, se a iniciativa probatória cabe ao juiz, o sistema processual penal é inquisitivo.
2.4 O sistema processual adotado na legislação brasileira
Para entender qual o sistema processual resguardado pelo Código de Processo Penal, é essencial destacar o contexto histórico em que este foi elaborado, haja vista que de acordo com o dito anteriormente, o sistema processual penal mantém ligação com a Carta Constitucional da qual deriva. Diante disso, Souza e Silva (2008) ao tratarem sobre o contexto histórico em que foi criado o Código de Processo Penal em vigor, destacam que ele teve como base a Constituição de 1937, conhecida como “polaca”, que refletia o momento peculiar por qual o Brasil passava, no caso, a ditadura militar, onde se percebe um rompimento com a democracia, diante de uma ideologia que defendia a garantia social em detrimento das garantias protetoras do réu.
Pode-se perceber a primazia do interesse do Estado em face do interesse do indivíduo, como se pode constatar pela leitura da própria exposição de motivos do referido Código que no seu item II traz como objetivo a maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. Ocorre que tal contexto foi totalmente alterado com o advento da Constituição Federal de 1988, pois ela prevê diversos princípios garantidores de um processo penal que respeita a dignidade e estabelece limites bem definidos da intervenção estatal na liberdade do indivíduo.
Nesse sentido, Carvalho (2008) afirma que diante das muitas mudanças ocorridas entre o Código de 1941 e a Carta Constitucional de 1988, ocasionou-se uma ruptura descomunal, o que faz com que seja necessária uma reforma radical no Código de Processo Penal para que a matriz constitucional possa se impor de forma plena. Diante dessa nova perspectiva, o processo penal passa a ter um novo enfoque, de tal forma que muitos autores passaram a denominá-lo de processo penal constitucional, se considerados os relevos dos princípios constitucionais que envolvem a prestação jurisdicional penal (THUMS, 2006).
Nesse contexto, pode-se então discutir qual o sistema processual adotado no Brasil. Uma pretensa parte da doutrina o classifica como misto, por entender ser ele inquisitorial na fase pré-processual, e acusatório na fase processual, esse posicionamento foi desconstruído no tópico anterior quando tratamos sobre o reducionismo do sistema misto. Em seguida, há doutrinadores que defendem que o sistema processual penal brasileiro é inquisitivo.
Percebe-se que as dificuldades em torno da ideia de sistema processual são intensificadas no Brasil devido à coexistência de leis que estabelecem regras processuais tanto anteriores como posteriores à Constituição Federal de 1988, diante de uma doutrina conservadora e de tribunais que não querem alterar a conjuntura (THUMS, 2006).
Lopes Jr. (2017) defende que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou como ele denomina “neoinquisitório”, tendo em vista que não existe um sistema puro. Para tal autor, ao contrário do que a doutrina dominante entende, nem mesmo a fase processual é acusatória, à medida que endente que apenas uma separação inicial entre as funções de acusar e julgar é insuficiente para caracterizar o sistema como acusatório, se ao longo do processo o juiz assume um papel ativo na produção probatória, assumindo um papel claramente inquisitorial. Sendo assim, o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova continua nas mãos do juiz.
Nesse sentido, Thums (2006) dispõe que apesar de haver órgãos distintos para exercer as funções de acusar e julgar, quando o órgão julgador continua a ter domínio da prova tal sistema processual é inquisitivo, diante disso, tal autor exemplifica que no Brasil o aspecto mais notável de sistema inquisitório se encontra disposto no art. 156 do Código de Processo Penal, ao passo que autoriza o juiz a buscar provas que as partes não foram capazes de produzir.
Percebe-se que tais posicionamentos entendem a prova como princípio unificador, pois se o juiz mantém um papel ativo na instrução probatória ele age como parte, e assim, há violação frontal ao princípio da imparcialidade, o que caracteriza o sistema processual inquisitório.
Quanto ao sistema processual resguardado pela Constituição Federal, a doutrina é uníssona em defender que é o sistema acusatório. Em conformidade com tal afirmação, Lopes Jr. (2019) ao tratar sobre princípio acusatório, destaca que apesar da Constituição Federal não prever de forma expressa a sua adoção pelo sistema acusatório, não há dúvidas de sua consagração, tendo em vista uma análise sistemática da Constituição, que possibilita identificar diversos dispositivos que caracterizam tal sistema, tais como: a titularidade exclusiva ação penal pública parte do Ministério Público (art. 129, I), o devido processo legal (ar. 5º, LIV), o princípio da presunção de inocência, os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV) dentre outros.
Ademais, destaca-se que o próprio Superior Tribunal Federal em 21/05/2014 no julgamento da Medida cautelar na ADI nº 5104 em que tratava sobre a possível inconstitucionalidade da Resolução nº 23.396/2013, esclareceu que:
(...) A Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal (...)
Dessa forma, podemos compreender que de fato a Constituição Federal resguarda um sistema acusatório, que, no entanto, é violado pelos resquícios de um sistema inquisitório presentes no Código de Processo Penal. Para que então pudesse de fato vigorar de forma plena o sistema resguardado constitucionalmente, faz-se necessário realizar uma filtragem constitucional, expurgando do sistema normas de caráter eminentemente inconstitucionais.
Sob o mesmo ponto de vista Abade (2005) defende que com a Constituição Federal de 1988, consubstanciada em princípios democráticos de direito, houve a necessidade de um sistema persecutório que se coadunasse com essa nova ordem, dessa forma, não há dúvidas de que com o advento de tal Constituição foi imposto um sistema processual penal de caráter acusatório, adotando assim, todas as elementares do princípio acusatório, ao passo que conferiu ao Ministério Público a privacidade do exercício da ação penal pública, consagrou o devido processo legal e o julgamento dos feitos por um juiz competente e imparcial. Sendo possível constatar tal fato em vista da análise do artigo 5º da Constituição que abarca institutos tais como: a previsão da titularidade da ação penal pública para o Ministério Público, o resguardo ao contraditório e a ampla defesa, juiz natural, igualdade e presunção de inocência.
Diante disso, entende-se que o sistema processual penal brasileiro adotado pela Constituição Federal de 1988 é indiscutivelmente o acusatório, contudo, por existirem dispositivos no Código de Processo Penal, evidentemente, informados por um princípio inquisitivo, há colisão frontal com o sistema processual adotado pela Lei Maior.
Dessa maneira, nota-se que a dificuldade em se definir no Brasil qual o sistema processual adotado se deve a existência de leis anteriores à Constituição Federal que mesmo em desconformidade com esta permanecem vigorando, o que causa um contraste entre o sistema processual acusatório que é o resguardado pela Carta Magna e os resquícios de um sistema processual inquisitório, infelizmente, ainda muito presente no Código de Processo Penal em voga.
3 DAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS
3.1 Noções gerais
No decorrer do trâmite procedimental podem ocorrer alterações que venham a comprometer o resultado do processo. Diante disso, foram previstas medidas cautelares capazes de permitir que a processo ao final seja útil, com o intuito de se proteger e acautelar, durante o processo, bens jurídicos contra os perigos do tempo e, especialmente, contra a ação do investigado ou do réu. Tais medidas cautelares podem ser reais, relativas à prova e pessoais (MENDONÇA, 2011).
As medidas reais, também conhecidas como assecuratórias, servem segundo Távora (2017) para reparação de dano ou perdimento de bens, são: o sequestro, a hipoteca legal e o arresto. Já as medidas cautelares relativas à prova são aquelas que objetivam proteger e evitar a sua destruição ou perecimento ao longo do procedimento, por exemplo, a busca e apreensão de documentos. Por fim, as medidas cautelares pessoais que dizem respeito à restrição de liberdade do investigado ou acusado, sendo essas últimas as que interessam ao presente estudo.
3.2 Das medidas cautelares pessoais
Antes de tratar sobre as medidas cautelares pessoais, é de extrema importância destacar a forma como a Constituição Federal de 1988, principalmente, nas disposições do seu artigo 5º, resguarda o direito à liberdade. Isso se faz necessário para que possamos compreender o caráter excepcional da prisão, haja vista que é a ultima racio.
Nesse sentido, Queiroz (2002) ao tratar sobre liberdade e Constituição observa que é necessário se ter bem delimitada a intervenção do jus puniendi estatal, para evitar que o Estado sob o subterfúgio de proteger a liberdade acabe por suprimi-la. Pois é através de tal delimitação que se pode observar quando é ou não legítima a intervenção penal.
Diante disso, a Constituição Federal estabelece diversos dispositivos a fim de resguardar o direito à liberdade, como por exemplo, o seu artigo 5º, inciso LXI: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
Outro dispositivo relevante é o art. 5º, inciso LVII da Lei Maior que dispõe: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Quanto a esse ponto é importante diferenciar a prisão penal da prisão cautelar, aquela diz respeito à prisão que decorre da culpa que é formada somente após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, conforme expressamente dispõe o texto constitucional no art. 5º, inciso LVII, ao passo que a prisão cautelar é excepcional exatamente pelo fato de não ter caráter de sanção/aplicação de pena, contudo mesmo assim restringir a liberdade antes de se ter o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Nesse ponto, deve-se frisar que antes da decisão penal condenatória irrecorrível, a prisão cautelar se restringe aos casos previstos na Constituição Federal e aos casos em que a lei excepcionalmente estabelecer, sendo que a prisão preventiva é a mais grave das constrições que pode ser impor a alguém (BARROS, 2019).
Uma importante questão relacionada diretamente à privação de liberdade antes do trânsito em julgado é o agravamento na superlotação dos presídios. Nessa senda, Duarte (2019) traz que a prisão cautelar que deveria ser caso excepcional, torna-se a norma.
O Código Penal estabelece três modalidades de prisões cautelares: a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva. Sendo esta última a que tem uma maior relevância para o presente estudo e se encontra prevista entre os artigos 311 e 316 do referido diploma legal.
3.3 Da prisão preventiva
“A prisão preventiva revela a sua cautelaridade na tutela da persecução penal, objetivando impedir que eventuais condutas praticadas pelo alegado autor e/ou por terceiros possam colocar em risco a efetividade da fase de investigação e processo” (PACCELLI, 2014, p. 549). Tem-se, assim, que a prisão preventiva é um tipo de medida cautelar pessoal destinada à tutela do processo e encontra respaldo legal entre os artigos 311 e 316 do Código de Processo Penal.
Antes de tratar sobre os pressupostos fundamentais para aplicação de tal medida, faz-se necessário destacar que em 2011 por meio da Lei nº 12.403 foram modificados diversos dispositivos do código processual penal relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares, com o objetivo de tornar a destacar ainda mais o caráter excepcional da prisão cautelar.
Nesse sentido, alterou o art. 311 do CPP de forma a impossibilitar a atuação de ofício do juiz em relação à decretação de prisão preventiva no curso do inquérito policial. Ocorreu, contudo, que manteve tal possibilidade quanto ao curso da ação penal. Diante dessa insistência do legislador, percebe-se a sua dificuldade em entender as regras próprias do sistema acusatório constitucional e da garantia de imparcialidade (LOPES, 2019).
A redação atual do artigo 311 do referido diploma legal estabelece que: “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.
Pela leitura do dispositivo é possível compreender que a prisão preventiva poderá ser decretada, tanto no curso do inquérito policial quanto da ação penal, sendo que no inquérito é imprescindível que haja requerimento (Ministério Público, querelante ou assistente) ou representação policial, enquanto que no curso da ação penal esse requerimento pode ser suprido, haja vista que o juiz pode de ofício determinar a decretação de tal restrição à liberdade. Esse é o ponto central do presente estudo, mas antes de ser devidamente esclarecido, é essencial demonstrar o caráter excepcional da prisão preventiva, devendo-se analisar os pressupostos essenciais para a sua aplicação.
Diante desse caráter excepcional da prisão preventiva, é que Távora (2017) em análise aos dispositivos do CPP traz que para a sua decretação é essencial o preenchimento dos pressupostos legais, quais sejam: a demonstração de prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria que juntos formam a justa causa. Tais pressupostos materializam o fumus commissi delicti.O art. 312estabelece as hipóteses de decretação, que seriam situações que representam o perigo da liberdade do agente (periculum libertatis), só com o preenchimento desses dois pressupostos é que se justifica a possibilidade do encarceramento. O artigo 312 do referido diploma legal prevê as hipóteses em que poderá ser decretada a prisão preventiva:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).
Dessa forma, além da demonstração de prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria que juntos formam a justa causa (fumus commissi delicti) é fundamental preencher pelo menos uma das hipóteses do art. 312, quais sejam: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução penal; c) garantia da aplicação penal; d) garantia da ordem econômica e e) descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.
Por fim, ainda é necessário analisar quais infrações comportam tal medida de acordo com o art. 313, CPP, sendo cabível em regra, (I) para apuração de crimes dolosos, cuja pena, via de regra, seja superior a quatro anos, e terá cabimento em crimes com pena menor a quatro anos: (II) quando o réu já foi condenado por crime dolosos mais graves, (III) se o crime envolver violência doméstica, para garantir a execução de medidas protetivas e (parágrafo único) quanto existir dúvida sobre a identidade civil da pessoa.
Assim, para a decretação da prisão preventiva é essencial que, se no caso de inquérito policial, haja requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou representação da autoridade policial, se no curso da ação penal, pode ser por requerimento ou de ofício pelo juiz, que sejam preenchidos os pressupostos de existência do crime e indício suficiente de autoria (art. 312, CPP) (fumus comissi delicti), seja preenchida alguma das hipóteses de decretação (art. 312, CPP) (periculum libertatis) e que se observe se a infração comporta tal medida (art.313, CPP).
4 DA (IN) CONFORMIDADE DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO NO CURSO DA AÇÃO PENAL À LUZ DO SISTEMA ACUSATÓRIO CONSTITUCIONAL
4.1 Das garantias do processo penal em um Estado Democrático de Direito
O processo penal em um Estado democrático não deve ser desenvolvido da mesma forma em que um regime autoritário. Isso porque de acordo com Thums (2006) a consolidação de um Estado Democrático de Direito propiciou conquistas no tocante ao garantismo e essas devem ser resguardadas tanto pelo sistema penal quanto pelo processual.
Conforme Abade (2005) a evolução do devido processo penal teve como ponto de partida a busca da proteção do indivíduo, em face do Estado opressor. Nesse aspecto, destaca que a partir do momento que se entende que os interesses do indivíduo e da sociedade não são divergentes é possível transpor a visão que contrapõe “Estado versus indivíduo”, e assim, é possível entender os direitos individuais a partir de uma concepção social. Ademais, afirma que a noção de devido processo legal em uma sociedade contemporânea acarreta necessariamente na ideia de um sistema acusatório. Isso quer dizer que ao passo que o Estado tem o direito de punir, este deve ser devidamente delimitado e para tal se deve estabelecer regras e princípios com o objetivo de proteger o indivíduo sujeito a ele, resguardando-o os seus direitos individuais.
Quando se trata em garantia das liberdades individuais logo se faz um paralelo entre elas e o poder do Estado do punir. De modo que o processo penal deve ser visto como limitador do poder do Estado e garantidor do indivíduo a ele submetido, com respeito assim às garantias constitucionais. Segundo Barros (2019) todo processo penal válido deve, rigorosamente, atender, respeitar e aplicar os preceitos fundamentais de natureza processual inscritos na Lei Maior.
Nesse aspecto, cabe destacar a importância do respeito ao estabelecido na Constituição Federal, haja vista a sua supremacia, que de acordo com Nalini (1997) significa entender a Lei Maior como fundamento de validade das demais normas, sendo que as normas incompatíveis com ela não devem ter lugar no sistema jurídico.
4.2. Do papel do juiz no processo penal em face do princípio da imparcialidade
A noção contemporânea de devido processo penal pressupõe a ideia de processo acusatório, já que este é o que melhor pode acolher as garantias inerentes à cláusula. Com efeito, mostra-se evidente que, sendo o processo de tipo inquisitório (juiz-acusador e imputado), torna-se difícil sustentar-se nele a presunção de imparcialidade do juiz (ABADE, 2005).
O princípio da imparcialidade é decorrência imediata da CF/1988 e representa exigência indeclinável no Estado Democrático de Direito. Como bem observa Prado(2006) em um Estado Constitucional Democrático a jurisdição está condicionada às regras de impessoalidade. Nesse sentido, Calamandrei (1995) destaca a inércia como sendo um importante elemento para a garantia da imparcialidade, tendo em vista que agir significa tomar partido, devendo dessa forma, a parte que não teme ser parcial, no caso o advogado, ser o propulsor do processo.
Prado (2006) ao tratar sobre os sujeitos do processo, em especial, sobre o juiz, afirma que para se verificar a real natureza acusatória não basta que haja apenas uma acusação, mas que esta revele uma alternativa de resolução de conflitos oposta à apresentada pela defesa e para tal é essencial que o juiz não esteja psicologicamente envolvido com nenhuma das versões em jogo. Ademais, observa que acusatoriedade real depende da imparcialidade do órgão julgador.
Em suma, no processo penal, os poderes cautelares do juiz estão limitados pelo princípio da legalidade estrita, pelo princípio do processo acusatório e pelo respeito às liberdades públicas fundamentais. Nesse sentido é que Machado traz que o juiz não pode decretar de ofício medidas cautelares sob pena de violação ao devido processo legal (2014, p. 583) visto que:
(...) Iniciativas como essas por parte do juiz, sem provocação da parte interessada (Ministério Público, querelante ou autoridade policial), conferem a ele (juiz) um papel inquisitivo que não se compatibiliza com o princípio do processo acusatório. Logo, muito embora autorizadas expressamente pelo CPP, a decretação de medidas cautelares de ofício serão sempre providências potencialmente inconstitucionais, exatamente porque elas implicam uma clara violação ao princípio acusatório consagrado de maneira expressa na Constituição Federal.
Por certo que o princípio acusatório é um dos alicerces do devido processo legal, à medida que garante um processo de partes e põe o réu na posição de sujeito de direito. Visto que a concentração das funções de acusar e julgar numa única pessoa configura o processo inquisitivo, que é a própria negação da ideia de processo e uma verdadeira antítese do princípio acusatório. Por força desse princípio, as provas são incumbidas às partes do processo e o juiz penal deve permanecer numa posição de imparcialidade, distante da atividade probatória, sem nenhum interesse no resultado da demanda. Tal princípio não apenas garante a imparcialidade do julgador, como também afasta a posição do réu de simples objeto no processo penal, constituindo-o na condição de sujeito de direito.
De acordo com Lopes Jr. (2019) o papel do juiz no processo penal é atuar como garantidor dos direitos do acusado. Nessa senda, é relevante enfatizar o papel do juiz criminal sob a vigência de um Estado Democrático de Direito, tal papel conforme defende Queiroz (2002) está muito além de ser apenas aplicador da lei, pois ao aplicá-la deve ser crítico e pautar-se nos princípios constitucionais fundamentais ao ponto de recusar a validade de normas que colidam com o preceituado constitucionalmente.
Diante disso, percebe-se a importância de se manter o juiz afastado de papeis que cabem ao órgão acusador, como por exemplo, no presente caso, decretar prisão preventiva de ofício, com o fito de resguardar as características do sistema processual acusatório que é o preconizado na Constituição Federal de 1988.
4.3 Da instrumentalidade do processo penal e o respeito ao sistema acusatório constitucional
Inicialmente, deve-se tratar sobre a instrumentalidade do processo penal, sendo que este além de ser um instrumento a serviço da satisfação de uma pretensão acusatória, segundo Prado (2006) tem uma função constitucional, ao passo que é um instrumento para a realização do projeto democrático. Desse modo, tem-se o processo penal como meio de se garantir que os direitos e garantias sejam respeitados, principalmente no que se diz respeito ao direito à liberdade.
É nesse sentido, que Lopes Jr. (2014) destaca que o processo penal tem o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Desse modo, o processo penal deve ser lido como um instrumento limitador do poder de punir do Estado e assim garantidor dos direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, Prado (2006) entende que tanto a Constituição quanto o Processo Penal têm em comum a proteção aos direitos fundamentais e a separação de poderes.
Importante destacar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC nº 73.338-7 RJ, em que ressalta o papel do processo penal como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais, sendo este um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal.
Percebe-se que tal decisão teve como fito enfatizar o processo penal como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais, é fato que ele deve ser vinculado a padrões normativos consagrados pela Constituição Federal. Desse modo, não é possível instituir pena em um processo penal que não esteja em conformidade com o preceituado na Constituição, até porque processo penal deve ser lido à luz da Constituição, e não o contrário.
Tal decisão ainda trata do conflito entre o poder de punir do Estado e a liberdade individual. O poder público (Estado) ao exercer sua pretensão punitiva encontra no próprio processo penal limitação para aplicação da pena, então, o processo penal serve como instrumento de proteção das garantias individuais em face da pretensão punitiva do Estado, e em um Estado Democrático de Direito. Para que as liberdades individuais possam ser resguardadas é necessário que o processo penal esteja respaldo na Constituição Federal.
Por isso Goldschmidt (1935) afirma que o processo penal de um país serve como termômetro dos elementos democráticos ou autoritários de sua Constituição, pois é analisando a estrutura do processo penal e sua conformidade com ela que é possível identificar se há ou não limitação ao poder punitivo do Estado e garantia das liberdades individuais, e com isso se torna possível identificar o sistema processual adotado, se inquisitório ou acusatório.
As medidas cautelares penais, principalmente, as que têm como consequência a restrição da liberdade do indivíduo, devem ser tomadas em caráter excepcional e em situações de concreto risco para a efetividade da jurisdição. Importante, assim, destacar que as medidas cautelares têm a finalidade de apenas assegurar a efetividade do processo principal e não de ser utilizada como instrumento de imposição de punição.
Diante da análise sobre os sistemas processuais e do entendimento de que com o advento da Constituição Federal de 1988 foi imposto um sistema processual acusatório, pode-se notar com a aplicação da lei processual penal um distanciamento do que está previsto na Constituição.
É possível perceber a persecução penal distante do delineado constitucionalmente não só quando em casos extremos quando, por exemplo, a tortura é utilizada como método de investigação, mas também quando os tribunais permitem a aplicação de institutos jurídicos incompatíveis como o resguardado pela Constituição no que versa à estrutura processual (PRADO, 2006).
Pelo exposto, extrai-se que a aplicação de institutos evidentemente inconstitucionais, como o da possibilidade da decretação da prisão preventiva no curso da fase processual, distancia-se do que sistema processual adotado pela Constituição. Desse modo, é importante destacar o papel do juiz ao analisar e aplicar a lei de que o faça com observância da interpretação conforme a Constituição, visto que não é mais um mero aplicador da lei.
Dessa forma, percebe-se que por mais que haja previsão legal expressa afirmando a possibilidade de decretar prisão preventiva de ofício na fase processual, há posicionamento doutrinário que entende que tendo em vista a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, normas que possibilitam que o juiz aja de ofício, violam o sistema acusatório.
Há posicionamento doutrinário, no entanto, como o de Pacelli (2014) que defende que é não só possível, como adequado que o juiz possa decretar prisão preventiva no curso do processo, pois o juiz deve dispor de instrumentos necessários à garantia da efetividade do processo, e que o interesse tratado não é exclusivo do autor, mas sim de toda a comunidade jurídica, potencialmente atingida pela infração penal.
Tal entendimento não pode seguir prevalecendo, pois conforme Lopes jr. (2019) o fato da Constituição e o próprio Código de Processo Penal afastarem o juiz de exercer funções naturalmente do órgão acusatório não é o suficiente para se resguardar os direitos individuais, é necessário que se resguardem tais direitos também durante o curso da ação penal.
Ademais, a previsão por parte do legislador infraconstitucional de permitir ao juiz assumir postura incompatível com a que é preceituada pelo sistema acusatório constitucional, em especial com o princípio da imparcialidade do juiz, que é violado frontalmente no momento em que o juiz passa a ter postura de parte no processo, como se órgão acusador fosse. Permitir a atuação de ofício do juiz demonstra-se um resquício do sistema inquisitorial, o qual não é o adotado pela Constituição Federal.
Diante disso, é possível constatar que a norma do art. 311 do CPP ao permitir a decretação da prisão preventiva de ofício na fase processual da persecução, não está de acordo com a CF de 1988, pois esta consagrou o princípio do processo acusatório e, com isso, repeliu todas as providências que possam levar o julgador a assumir posturas inquisitivas no processo penal, mormente aquelas providências supressivas da liberdade individual.
Portanto, resta evidenciado que a decretação da prisão preventiva de ofício mesmo durante o curso da ação penal gera o fenômeno da “jurisdição sem ação”, isso porque o órgão julgador não foi provocado pelos legitimados a requererem tal medida constritiva. Dessa forma, tal conduta afronta ao princípio do processo acusatório, pois este requer a provocação do órgão julgador sempre que se pretender impor medidas restritivas a direitos fundamentais do indiciado ou réu (MACHADO, 2014).
5. CONCLUSÃO
À luz de todo o exposto, resta claro que há um princípio acusatório a inspirar a ordem constitucional. Que, contudo, vem sendo violado por dispositivos do Código de Processo Penal com caráter evidentemente inquisitorial, como no presente caso, onde foi possível perceber que apesar da Constituição Federal de 1988 resguardar o sistema acusatório, ainda há em vigor dispositivos, como o art. 311, CPP que permite que o juiz possa no curso da ação penal decretar prisão preventiva de ofício, assumindo uma postura incompatível com aquela exigida pelo sistema acusatório e, principalmente, com a estética de afastamento que garante a imparcialidade.
Restou evidenciado que o sistema acusatório como garantia fundamental está diretamente ligado a um processo justo e a um Estado Democrático de Direito, e que tem como principal enunciado a divisão rígida de atribuições entre os atores do processo. Com isso, percebe-se, a importância de se manter o juiz afastado de papeis que cabem ao órgão acusador, como no presente caso, com o fito de, assim, resguardar as características do sistema processual acusatório que é o preconizado na Constituição Federal de 1988.
Dessa forma, diante dessa resistência em se manter em vigor institutos evidentemente violadores dos preceitos resguardados pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessário que seja realizada uma filtragem constitucional dos dispositivos previstos no Código de Processo Penal a fim de que de fato a estrutura do sistema acusatório possa vigorar plenamente.
REFERÊNCIAS
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[i] Professor, Mestre e Orientador deste artigo. Endereço para acessar este Currículo lattes http://lattes.cnpq.br/5963426905730852
Graduanda em bacharelado em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA, Teresina-PI. Técnica em administração pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí - IFPI, Teresina-PI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIAS, Hellen Karoline dos Santos. A prisão preventiva decretada ex officio no curso da ação penal como violação ao sistema acusatório constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53758/a-priso-preventiva-decretada-ex-officio-no-curso-da-ao-penal-como-violao-ao-sistema-acusatrio-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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