CRISTIANE DORST MEZZAROBA[1]
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar sob a ótica da dignidade humana, a situação vivenciada por mulheres grávidas ou com filhos nas unidades prisionais brasileiras, bem como, a efetividade da aplicação da prisão domiciliar prevista nos dispositivos legais brasileiros. Nesse intuito, primeiramente, foram expostos o contexto histórico do cárcere feminino no Brasil, os números de gestantes e mães no cárcere e as causas que as levam a delinquir, uma vez que, a quase totalidade de mulheres foram presas por atos que, mesmo classificados atualmente como ilícitos, constituíam como a única possibilidade para sustento próprio e de seus filhos, já que coube a elas, a tarefa de sozinhas cuidarem e proverem. Os riscos de gestar, manter na prisão uma criança ou mesmo afastada da mãe, foram reconhecidos pelo legislador brasileiro através da promulgação da Lei n. 13.769/2018, assim como pela Presidência da República mediante publicação do Decreto denominado Indulto do Dia das Mães, bem como do Supremo Tribunal Federal por meio da concessão de Habeas Corpus Coletivo. Contudo, a realidade se mostra transversa aos dispositivos existentes, restando comprometida a eficácia da concessão da prisão domiciliar sob as mais esdrúxulas justificativas dos magistrados, comprometendo o direito à dignidade destas mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade humana; mães; gestantes; cárcere.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 CÁRCERE FEMININO NO BRASIL: aspectos históricos e sociais. 3 ESTATÍSTICAS DO CÁRCERE FEMININO BRASILEIRO. 4 A MATERNIDADE E O CÁRCERE: uma questão de promover garantias constitucionais. 4.1 O DIREITO À PRISÃO DOMICILIAR DAS GESTANTES, PUÉRPERAS E MÃES: Habeas Corpus coletivo n. 143.641 no Supremo Tribunal Federal. 4.2 O Indulto do Dia das Mães: Decreto n. 9370, de11 de maio de 2018. 4.3 ALTERAÇÕES NO CODIGO DE PROCESSO PENAL: a Lei n.13.769/2018. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O sistema carcerário feminino é uma das questões mais complexas do sistema penitenciário brasileiro, uma vez que os estabelecimentos prisionais foram projetados para atender as condições masculinas. Destarte, as especificidades femininas como: gestação, amamentação e filhos são ignorados pelo sistema, pelo Estado e pela sociedade.
A mulher posterga o direito de exercer a maternidade com dignidade no momento em que ela adentra o presídio e o número de mulheres que estão sujeitas a essas condições é terrificante. De acordo com os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional, nas duas últimas décadas, a população carcerária feminina aumentou mais de 700%.
O presente trabalho de conclusão de curso busca explorar a violação dos direitos constitucionais da mulher em cárcere e o motivo pelo qual eles não são considerados no momento em que se pode conceder a essa mulher o instituto da prisão domiciliar, através de normas contemporâneas e de simples aplicação.
Nesse diapasão, os objetivos específicos se constituem em compreender o contexto histórico do cárcere feminino brasileiro e, também investigar os institutos legais que possibilitam à mulher gestante, puérpera ou mãe em situação de encarceramento o cumprimento de pena ou mesmo aguardar sua sentença em prisão domiciliar.
A fim de enriquecer as informações acerca do tema foram efetuadas pesquisas conceituais e estatísticas por meio eletrônico e bibliográfico.
Inicialmente, o segundo capítulo, apresenta o contexto da criação de centros de detenção feminina e os aspectos sociais e históricos da criminalidade feminina.
O terceiro capítulo aborda as estatísticas do cárcere feminino brasileiro demonstrando o alto índice de mulheres presas no Brasil.
O quarto capítulo demonstra a realidade da mulher dentro das unidades prisionais, como é o tratamento dispensado a elas e, principalmente, como o acesso a saúde é limitado e muitas vezes inexistente e por fim fomenta a prisão domiciliar através da estrutura dos institutos que a autorizam, bem como, dados de como a concessão desses benefícios são negados as mulheres e sob quais argumentos.
2 CÁRCERE FEMININO NO BRASIL: aspectos históricos e sociais
Durante o período do Estado Novo, no governo do então presidente Getúlio Vargas, entrou em vigência o Código Penal e o Código de Processo Penal, que apesar de terem sido escritos em 1940, encontram vigência atual, embora tenham passado por inúmeras reformas nas décadas subsequentes.
Foi somente a partir de 1940 que se estabeleceu a primeira diretriz legal sobre a separação física entre homens e mulheres para fins de cumprimento de pena nos complexos prisionais do país, dando ensejo à criação dos primeiros estabelecimentos prisionais femininos. Originalmente, o artigo 29 do Código Penal dispunha:
Art. 29. A pena de reclusão e a de detenção devem ser cumpridas em penitenciária, ou, à falta, em secção especial de prisão comum.
(...)
§ 2° As mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno.
A primeira unidade prisional feminina brasileira foi instituída em 1942, em São Paulo e, teve por sede uma casa localizada dentro da Penitenciária do Estado, construída originalmente como residência para o diretor da unidade, ou seja, é histórica a referência atual de que as unidades prisionais femininas não possuem arquitetura planejada para mulheres, sendo em sua maioria, adaptações de prédios já existentes.
Importante destacar que, diferentemente das unidades masculinas, a administração da primeira unidade feminina foi estabelecida mediante um acordo entre o Estado e as freiras da Congregação do Bom Pastor de Angers, que eram as únicas responsáveis pela administração do presídio e tinham como enfoque a domesticação, a vigilância da sexualidade e a transformação das mulheres criminosas, para que se convertessem em mulheres perfeitas, tudo regido sob o aspecto moral e o prisma de ideais conservadores do período.
As mulheres encarceradas eram fadadas a seguir o protótipo de mulher dócil, voltada às prendas domésticas, aos cuidados com os filhos, à sexualidade educada para procriação e a satisfação e submissão ao marido (OLIVEIRA, 2008, p. 27).
Considerando que as ditas condutas delituosas praticadas pelas mulheres naquele período não representavam perigo social, pois se restringiam basicamente à prostituição, ao concubinato, ao fingimento de gravidez, às fofocas, isto é, não praticavam crimes, mas afrontava abruptamente o conservadorismo vigente, as penas consistiam na execução de trabalhos manuais e domésticos (OLIVEIRA, 2008, p. 25).
Nesse contexto, o número de encarceradas também era reduzido. Na unidade prisional de São Paulo, por exemplo, em 1942, apenas sete sentenciadas cumpriram pena. Em dez anos, o número de internas foi de apenas 212 (ARTUR, 2009, p. 03).
Após a primeira unidade, outras foram sendo abertas em demais localidades do país, como é o caso da Penitenciária de Mulheres, hoje conhecido como Presídio Talavera Bruce, primeiro presídio feminino do Rio de Janeiro, que também fora instituído em 1942. Na época, a administração interna e pedagógica do presídio ficou igualmente a cargo das Irmãs do Bom Pastor e seguiu os mesmos moldes de reeducação da Penitenciária Feminina de São Paulo, ou seja, as religiosas eram responsáveis por cuidar da moral e dos bons costumes das encarceradas.
Entretanto, este projeto de “purificação” não atendeu às perspectivas do Estado e em razão disso, em 1955, a penitenciária passa a ser diretamente administrada pelo Poder Público, sob a alegação de que as Irmãs do Bom Pastor não mais conseguiam controlar a indisciplina violenta e não dispunham de conhecimentos das questões penitenciárias e administrativas necessárias para controlar as 220 mulheres que estavam presas em um estabelecimento planejado para abrigar 120 mulheres (OLIVEIRA, 2008, p. 27).
É notório que a superlotação das penitenciárias brasileiras, assola a população carcerária desde os primeiros estabelecimentos existentes até os dias atuais.
Ao transitar dos anos houve progressos, ainda que lentos, objetivando desconstruir a posição de subalterna que a mulher ocupava perante os homens. Neste contexto, a mulher buscou espaços na vida social, como o acesso a educação, a democracia e a inserção no mercado de trabalho. Estes fenômenos sociais ocorridos ao final do século XX cooperaram para que a construção da identidade social feminina passasse por uma série de transformações.
Em que pese, a independência feminina conquistada pelas mulheres ser essencial para a construção da dignidade e dos inúmeros direitos que se firmaram ao longo dos anos, essa independência, fazendo da mulher, muitas vezes, a única responsável pela sua mantença e de seus filhos, trouxe também consequências negativas, como por exemplo, o aumento da taxa de criminalidade envolvendo mulheres.
Consequentemente, a perspectiva da execução penal também se transformou, deixou-se o olhar de purificação como em outrora para dar lugar à punição como forma de reeducação e coibição de crimes.
Diante da conjuntura, os crimes cometidos por mulheres, perdem paulatinamente a acepção de crimes ligados à maternidade, moral familiar e ao estereótipo do homicídio passional, com forte conteúdo de amor ou ciúme e passam para o âmbito social, havendo maior incidência os crimes de tráfico e consumo de drogas, roubo, furto e, por último, homicídio.
Ante a elevação do índice de criminalidade feminina, as penitenciárias brasileiras ficaram cada vez mais saturadas de mulheres, apesar de boa parte destes estabelecimentos não possuírem estrutura suficiente para recebê-las.
De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), apenas 7% das unidades prisionais no território brasileiro são destinadas à detenção de mulheres (INFOPEN, 2014, p. 15).
Atualmente, ainda a maioria dos estabelecimentos penais femininos é mista, sendo que neles são adaptados alas e celas para mulheres, entretanto, não há qualquer tipo de estrutura voltada especialmente para elas, como creches, berçários ou brinquedotecas para seus filhos, evidenciando assim, mais uma maneira de degradação da mulher.
Além dos aspectos históricos do cárcere feminino no Brasil, convém alocar a identidade social predominante das encarceradas brasileiras. Jovem, negra, baixa escolaridade, mãe solo, oriunda de extrato social vulnerável, provedora do lar. Presa por crime direta ou indiretamente relacionado ao tráfico, ocupante de posição coadjuvante na atividade ilícita, como transporte ou pequeno comércio. Esse é o perfil de identidade atual da mulher encarcerada no Brasil, segundo dados do último Relatório do Infopen Mulheres (INFOPEN, 2018, p. 53).
No estado do Tocantins essa realidade não é diferente. Segundo dados do 1º Censo Carcerário Feminino do Tocantins, realizado nos seis presídios femininos do estado, a idade das detentas variam de 18 a 60 anos, sendo que 22% possuem entre 18 a 22 anos, 38% de 22 a 30 anos, 23% de 30 a 40 anos, 10% de 40 a 50 anos e 7% de 50 a 60 anos de idade.
Das mulheres recenseadas no Tocantins, 66% se auto declararam pardas e 16% negras, enquanto que 15% são brancas, 2% indígenas e 1% amarelas.
Concernente a escolaridade das mulheres tocantinenses em cárcere, 5% são analfabetas, 59% não concluíram a educação básica e 21% não finalizaram o ensino médio.
No Tocantins, 74% são mães e a quantidade varia de 1 a 10 filhos. O perfil etário dos filhos é de 51% maiores de 12 anos e 49% menores de 12 anos, destes, 20% são crianças de zero a quatro anos. Os responsáveis pelos filhos das mulheres durante o período que permanecem encarceradas são em maioria os avós, representando 51%, esses são seguidos pelos pais, 20%; parentes, 14%; há também 1% dessas crianças em abrigos.
Em relação aos crimes mais praticados, 67% das detentas tocantinenses cometeram o crime de tráfico de drogas, enquanto outras 14% cometeram homicídio, 7% associação ao tráfico, 7% roubo e 5% furto (FASEC/SECIJU, 2019).
No que tange ao âmbito nacional, a Pastoral Carcerária compartilha do mesmo silogismo, em 2011, a instituição realizou um estudo nos principais presídios femininos do país, com o mesmo intuito, o de delinear as causas que incorporam a mulher ao crime, chegando à conclusão que o perfil da mulher delituosa está diretamente relacionado às excludentes sociais.
Fatores como desemprego, o baixo nível de instrução e a precariedade nas condições financeiras estão cada vez mais associados aos crimes cometidos por mulheres. Ou seja, a condição socioeconômica, evidenciada através da necessidade de obtenção de renda, aparece como uma das principais causas de ingresso das mulheres no crime, pois cada vez mais cabe a ela o papel de mantenedora da família.
O tráfico de drogas ilícitas é fator determinante da criminalidade feminina, como tal atividade constitui oportunidade de auferir renda e que de alguma forma possibilita a superação da dificuldade financeira, que afeta não só suas próprias vidas, mas também de seu grupo familiar, a mulher está cada vez mais atraída pelo cometimento desse ato ilícito.
É de bom alvitre ressaltar que diferentemente das mulheres, grande parte dos homens, transpõem o mundo do tráfico, em busca de status, prestígio e poder, o homem se sente evidenciado quando ocupa a posição de chefe da “boca de fumo” (local onde é feita a venda de drogas ilícitas) enquanto que a mulher em sua grande maioria esmera-se no bem estar próprio e de seus familiares.
Neste ínterim, tem-se que a mulher pode buscar a inserção no mercado de drogas de forma independente com o intuito de mudar de vida, visto que, deseja adquirir uma situação econômica melhor ou por intermédio de seus parceiros ou ainda por submissão a eles.
É sabido que a maioria das apenadas ingressa no tráfico de drogas por influência do companheiro, algumas delas, em razão da relação íntimo-afetiva que estabelecem com homens já inseridos nessa mercancia ilegal, outras que se envolvem com traficantes por serem usuárias, com o fito de obter drogas, acabam iniciando uma relação que as conduzem ao mundo do tráfico e por fim aquelas que levam a substância entorpecente aos seus maridos que estão cumprindo penas em presídios, as chamadas “mulas” do tráfico.
Comumente, as mulheres emotivamente envolvidas são facilmente convencidas a auxiliar seus parceiros no manejo e transporte de drogas. Em geral elas atuam como coadjuvantes, ou seja, dificilmente ocupam a posição de chefes do tráfico. A comercialização de entorpecentes caminha de braços dados com a violência, promove assassinatos, formação de grandes corporações criminosas fortemente armadas, guerras entre facções, entre outros males sociais.
Todavia, calha à figura feminina o desempenho de atividades secundárias, tais como, embalar, pesar, fazer a contabilidade dos lucros, transportar drogas de um ponto de venda a outro, ou para outra cidade, entre outras. A consecução destas tarefas menos valorizadas e que acarretam maior periculosidade, consolida a mulher na sua histórica posição de subalterna e vulnerável, o que facilita sua prisão e consequentemente sua condenação.
Quando presas pela prática do crime, tais mulheres continuam sob os controles da retórica masculina, uma vez que, a estrutura prisional que rege os estabelecimentos não foi feita para elas e, por isso mesmo, destina às mulheres os restos de tudo o que é concedido aos homens.
3 ESTATÍSTICAS DO CÁRCERE FEMININO BRASILEIRO
A população carcerária feminina do Brasil é uma das maiores do mundo, ocupa o quarto lugar no ranking geral, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Um estudo publicado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/DAPP, 2018, p. 03) levantou dados sobre essas prisões e apontou que, entre 2000 e 2016, a população carcerária feminina aumentou 567%. Avaliando-se dados atualizados até 2018, o aumento ultrapassa os 700%, ou seja, a criminalidade feminina aumentou demasiadamente e continua crescendo em alta escala.
Em 2016, havia 42.355 mulheres presas no Brasil. Quando analisada a incidência de prisões para cada 100 mil mulheres, o Brasil chega a 40,6, ou seja, 40 mulheres encarceradas para cada 100 mil habitantes.
Tão somente na região norte do país está quatro dos cinco estados com maior encarceramento feminino: Amazonas (9,2%), Rondônia (8,2%), Acre (7,1%) e Roraima (6,7%). O Mato Grosso do Sul é o que reúne o maior percentual de mulheres em relação ao total da população carcerária: 11,3%.
No Tocantins, atualmente, 190 mulheres estão presas, os números presumem-se irrelevantes, mas se considerado que o Tocantins é o estado mais novo da Federação e que o índice de violência é relativamente baixo se comparado a outros estados, infere-se que estes registros são preocupantes (FASEC/SECIJU, 2019).
O encarceramento das mulheres advém muitas vezes em presídios mistos, a maior parte dos estabelecimentos penais foi projetada para o público masculino, o que significa dizer que no geral, as alas e celas que aprisionam mulheres atualmente são originalmente masculinas. A arquitetura dos estabelecimentos e os serviços penais foram formulados para o público masculino e posteriormente adaptados para custódia de mulheres e são, assim, incapazes de observar as especificidades de espaços, serviços destinados a elas, que envolvam e viabilizam o aleitamento materno, espaços para seus filhos, espaços para custódia de mulheres gestantes, equipes multidisciplinares de atenção à saúde da mulher, entre outras especificidades
No Tocantins, não existem unidades prisionais mistas. Das seis unidades femininas, apenas duas foram construídas com previsão inicial para abrigar mulheres em cárcere, a Unidade Prisional Feminina de Talismã, inaugurada recentemente, localizada no sul do estado, com capacidade para acolher 30 reeducandas e a Unidade Prisional Feminina de Lajeado, com capacidade para 16 detentas. Embora a construção destes presídios tenha sido voltada para abrigar mulheres, essas unidades têm estrutura arquitetônica no padrão masculino, ou seja, não tem capacidade para atender as necessidades femininas.
4 A MATERNIDADE E O CÁRCERE: uma questão de promover garantias constitucionais
Nos últimos anos, o número de mulheres encarceradas no Brasil, cresceu mais de 700%. Deste total, 80% são mães e únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos, à vista disso, os efeitos do encarceramento feminino geram consequências dolorosas.
A partir deste constante crescimento e das consequências geradas, estudos, dados estatísticos e pesquisas in loco começaram a ser desenvolvidos em todo o país, a fim de captar informações sobre a experiência vivenciada pelas mulheres grávidas, puérperas e seus filhos dentro do Sistema Penitenciário Brasileiro, como fundamento para discussões voltadas a respeito da dignidade humana e violações ao exercício de direitos fundamentais.
Importante destacar que a dignidade humana é preceito fundamental norteador da Democracia brasileira, sendo evidenciado já no artigo 1º da Carta Magna:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988).
Embora conceituar dignidade seja uma tarefa complexa, vez que depreende da própria evolução do pensamento humano, analiticamente, a dignidade da pessoa humana é:
a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2001).
Nesse sentido, não importa o estado que a pessoa humana se encontra, por exemplo, no cárcere, sua dignidade deve ser respeitada, aceitar a perda da dignidade seria o mesmo que perder a condição humana.
A Constituição da República assegura em seu artigo 5°, inciso XLIX, que todos os seres humanos que cumprem pena privativa de liberdade, devem ser tratados de forma digna, sem a violação da integridade física ou moral. Isso significa dizer que o preso não deixa de ser um indivíduo dotado de direitos pelo fato de estar privado de sua liberdade, a dignidade é essência inerente do ser humano, bem jurídico absoluto, portanto, inalienável, irrenunciável e intangível.
Intrínseco ao conceito de dignidade humana está à garantia fundamental de que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988).
Compreender intimamente tais conceitos é essencial para refletir sobre a maternidade no cárcere. De acordo com Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), ratificada pelo Brasil em 1989:
Artigo 1º - Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram (ONU, 1984).
São vários os estudos que objetivam estabelecer o liame entre as garantias constitucionais e a realidade das unidades prisionais brasileiras. Entre eles, destaca-se na análise dos presídios brasileiros, Queiroz (2015) que acompanhou por quatro anos in loco a situação do sistema carcerário feminino em várias regiões do Brasil, se correspondendo com diversas mulheres presas, passando madrugadas nas portas dos presídios, conhecendo familiares e promovendo entrevistas a fim de ouvir as histórias do cárcere brasileiro. Essa vasta experiência permitiu descrever de forma concisa, como as garantias constitucionais são esquecidas e ignoradas às mulheres encarceradas:
O ambiente carcerário é escuro, úmido, sujo, mal cheiroso, superlotado, infestado de ratos e baratas. Muitas mulheres dormem no chão ou compartilham um único colchão, revezando-se para poder esticar as pernas. Os vasos sanitários, além de não terem portas, têm descargas falhas e canos estourados que deixam vazar os cheiros da digestão humana. A luta diária dessas mulheres é por higiene e dignidade. A alimentação é precária, a reclamação é constante, várias presas já passaram mal com a comida servida. “A comida vem com cabelo e fezes de rato”. Algumas reclusas possuem ajuda da família e cozinham a própria comida, algumas celas tem fogões, elas se organizam e fazem uma alimentação alternativa, porém, a maioria não possui tal ajuda e tem de se alimentar com o “bandeco”. As especificidades de gênero são ignoradas, o Estado esquece que as mulheres precisam de absorventes, por exemplo, e que precisam de papel higiênico para duas necessidades em vez de uma. A quantidade de absorvente íntimo entregue por mês é tão pequena que, para conter o fluxo menstrual, é comum que utilizem miolo de pão. Ou esquece que as mulheres engravidam, tem filhos e precisam amamentar. Tenho relatos de mulheres que deram à luz dentro das celas, por que não tinha viatura ou agentes suficientes para encaminhá-las a uma unidade de saúde. Nas poucas unidades materno-infantis que eu estive, eram de longe o local adequado para abrigar crianças, para usarem fraldas dependiam de doações da Pastoral Carcerária ou de outras instituições de caridade. Os bebês passam os primeiros seis meses de vida sem ver a luz do sol, sem ter contato com outras crianças ou com a família. Um ambiente completamente inadequado para crianças, onde existem muitas brigas, muitas discórdias e principalmente relatos de torturas. Condições como essa, de tortura física são comuns nos presídios. Muitas mães relatam terem sido agredidas fisicamente na barriga enquanto estavam no período de gestação. Conheci uma detenta que relatou ter sido torturada com o filho de três meses no colo. Enquanto policiais a agrediam fisicamente, uma algema atingiu o supercílio do bebê, que teve que ter o local costurado. Por conta desse fato, a criança cresceu com distúrbios mentais (QUEIROZ, 2015).
Da simples leitura do relato têm-se tantos registros em que a dignidade humana foi abandonada, dando lugar às situações desumanas e degradantes, que se tais passagens fossem destacadas, o texto todo estaria em negrito.
Essa realidade não é exceção em um ou outro presídio feminino, é a regra brasileira. Se esta situação desumana já causa perplexidade se considerada para mulheres em situações ditas normais, pensar nessa realidade para mulheres gestantes ou mesmo para recém-nascidos no cárcere é desesperador.
Mesmo pertencente ao rol de conhecimentos advindos do senso comum que as gestantes por estarem em maior situação de vulnerabilidade e por necessitarem de cuidados mais específicos, precisam de um ambiente limpo, de alimentação adequada, de itens de higiene pessoal, de tratamento humanizado tanto no período gestacional, quanto no puerpério, o mínimo que as unidades prisionais deveriam proporcionar é uma ambiente salubre, uma alimentação adequada e o acompanhamento do pré-natal, que perpassa tanto pelos direitos à dignidade da mãe, quanto do nascituro, que ressalta-se, não cometeu crime algum para ser punido antes mesmo de nascer, afinal, uma gestação em ambiente prisional é, indiscutivelmente, uma gravidez de risco.
Importante destacar que o artigo 196 da Constituição Federal preleciona que “a saúde é direito de todos e dever do Estado (...)”, sendo também vedado no Estado brasileiro toda e qualquer forma de discriminação. Logo, não pode a gestante em cárcere ter tolhido seu direito de cuidados à saúde, como ao atendimento médico de qualidade, fornecimento de medicamentos e exames necessários para garantir a saúde sua e do nascituro.
A saúde e a sobrevivência do recém-nascido estão fundamentalmente vinculadas à assistência médica e aos cuidados de saúde recebidos pela mãe antes e durante a gestação, o parto e o puerpério. Segundo o Ministério da Saúde (2006, p. 10) o pré-natal é indispensável à saúde da gestante e do bebê e, tem por finalidade garantir bom acompanhamento da mulher e desenvolvimento do feto, assegurando o nascimento de uma criança saudável, o bem estar materno e neonatal.
O Ministério da Saúde (2006, p. 10) ainda estabelece como parâmetro que a gestante tem direito à sua primeira consulta no pré-natal até 120 dias da gestação, com o mínimo de seis consultas, uma no primeiro trimestre, duas no segundo trimestre e três no terceiro trimestre.
Com relação ao acompanhamento do pré-natal das mulheres em cárcere os relatos mais comuns dizem respeito à total negligência do Estado em relação a este direito:
Ao analisar as falas das participantes nota-se a falta de assistência e acompanhamento ao pré-natal para a maioria das mulheres que vivenciaram a gestação no presídio:
[...] “não tive acompanhamento médico, tinha problema de pressão alta, ficava tendo dores fortes, inclusive veio até um papel do juiz prá eu sair, prá me levarem prá fazer o pré-natal, só que eles não me levaram né”.
[...] “não fiz nenhum exame, não fiz o pré-natal, fui prá maternidade sem exames, né. É que eu perdi meu filho aqui dentro. Descobriram lá no hospital que eu tava com muita anemia, tomei cinco bolsas de sangue lá, soro, não estavam encontrando minha veia, eu não tinha sangue, não tinha nada. Quase que morro lá no hospital, deram um choque pra mim retornar de novo, fui prá UTI, passei muito mal mesmo”.
[...] “fui fazer o pré-natal com sete meses porque estava difícil carro”.
[...] “vim pra cá e só fiz exames na maternidade depois que ganhei ela, e acusou sífilis [...]. Eu só vim descobrir a doença depois que ela nasceu, se eu tivesse feito o pré-natal eu tinha tomado conhecimento antes de ter minha filha”(GALVÃO e DAVIM , 2013, p. 455).
Ademais, não obstante a falta de atendimento pré-natal, na hora do parto as situações de total descaso e constrangimentos persistem, como se descreve a seguir:
[...] quando foi presa, estava com uma gravidez avançada. Foi jogada com violência dentro de uma viatura e teve uma bolsa pesada atirada contra sua barriga. Ao reclamar da dor, o policial gritou: está reclamando do quê? Isso é só mais um vagabundinho que está vindo ao mundo! Quatro dias depois, começou a sentir contrações, os maus tratos e a pressão emocional, adiantou o parto em dois meses. Ganhou no grito o direito de ir a um hospital, no trajeto entre uma contração e outra, ela foi observando a rua, as pessoas olhavam o carro com medo, com curiosidade, com hipocrisia. Ninguém se importava com ela ou o bebê, eles eram o resto do prato daquela sociedade. Seu filho já nasceu como uma sobra. Aquilo que ninguém quis comer. No hospital ficou algemada a cama durante o trabalho de parto e parto. Quando sua filhinha nasceu, não pode sequer pegar o bebê no colo. Só conseguiu, de relance, conferir o sexo. “A vida da presa é assim, não pude nem olhar se nasceu com todos os dedos das mãos e dos pés, a gente solta, a gente pega, a gente vê’’. A criança nasceu com hiperglicemia e precisou ficar em observação, mesmo nessas condições frágeis de saúde, só permitiram que a mãe amamentasse a filha uma vez por dia [...] (QUEIROZ, 2015, p. 41)
Durante o período de hospitalização, 15% das grávidas presas afirmaram ter sofrido algum tipo de situação constrangedora, houve uma péssima avaliação do atendimento recebido, demonstrando que o serviço de saúde não tem funcionado como barreira protetora e de garantia dos direitos desse grupo populacional. Isso contraria o princípio de que as mulheres presas devem se beneficiar do mesmo tratamento que a população livre, de acordo com Constituição Federal (LEAL, 2016, p. 2065).
Uma em cada três detentas foi obrigada a usar algemas na internação para o parto, é sabido que o uso desnecessário de algemas transgride o princípio da dignidade humana, uma vez que, as algemas têm o condão de exteriorizar fisicamente o indivíduo, expondo a perda de sua liberdade e degradando dessa forma a sua imagem.
Mesmo vigente desde 2008 a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal com enunciado pertinente ao uso de algemas legal somente quando houver “fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito”, essa condição parecia ser completamente ignorada para a gestante em trabalho de parto. Tanto que foi necessário em 2017, atividade legislativa para inserir dispositivo específico no Código de Processo Penal, para garantir a vedação do uso de algemas para as mulheres durante o parto, a saber:
Art. 292.
(...)
Parágrafo único. É vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato (BRASIL, 2017).
Os problemas não cessam com o nascimento da criança, na verdade, o desrespeito aos direitos fundamentais, especialmente a dignidade, passa a afetar não somente um ser humano, mas agora, visivelmente, dois. Afinal, considerando que a maioria das unidades prisionais femininas são improvisadas ou adaptadas não há qualquer estrutura apropriada para amamentação, berçário ou creche.
Em alguns estados brasileiros, a mulher é transferida no terceiro trimestre de gestação da prisão de origem para unidades prisionais que abriguem mães com filhos, geralmente localizada em grandes centros. O parto é feito em hospital público, e elas voltam para a unidade prisional com o recém-nascido.
A separação de mãe e filho é praticamente inevitável. Após o sexto mês, geralmente as crianças são entregues aos familiares. Na ausência destes, vão para abrigos, e a mãe retorna à prisão de origem. Na maioria dos casos, as mães ficam com seus bebês na cela do presídio, uma vez que existem poucos presídios femininos no Brasil destinados a mulher grávida ou com filhos.
O IPEA (2017, p.53) assinala que as mães encarceradas contam que seu maior medo é que os bebês sejam mandados para um abrigo, já que na maioria dos presídios a criança só pode permanecer até completar seis meses:
[...] as grávidas de hoje têm problemas com processos, quando estão internadas em um centro hospitalar distante dos tribunais em que tramitam seus casos, muitas vezes perdem audiências por falta de quem as transporte, e o processo é atrasado. Existem ainda aquelas que quando são transferidas para presídios com berçários, em geral mais distantes, ficam afastadas dos outros filhos. Algumas delas tomam a dura decisão de abrir mão do período com o bebê. Como é o caso de uma mulher que devolveu seu filho de quatro meses porque queria voltar para a cadeia pública de origem, onde ficaria perto dos demais filhos, ao menos nos dias de visita. As que conseguem completar os seis meses de direito, precisam dar o filho para o pai, um parente ou entregar para um abrigo. Neste último caso, quando terminam de cumprir sua pena, elas têm que pedir a guarda dos filhos de volta à Justiça. Nem todas conseguem. Para provar-se capaz de criar uma criança, é preciso ter comprovante de endereço e emprego. E esse é um salto muito mais difícil de ser dado pelas mulheres com antecedentes criminais. Quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, a história corriqueira é: ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo (BRASIL, 2017).
As consequências do afastamento dos filhos em relação à mãe encarcerada causam danos não apenas as crianças, mas também para a sociedade como um todo. Primeiramente, os descalabros nos quais as crianças são submetidas durante o período que passam com a mãe na prisão, pode trazer a elas, nocividades que perdurarão por toda sua vida, como exemplo, o desenvolvimento de doenças físicas ou psicológicas e o impacto delas será automaticamente lançado na sociedade.
Por conseguinte, os filhos que estão fora da prisão no período de encarceramento da mãe enfrentam outra questão: quem vai cuidar dessas crianças? Há outras pessoas responsáveis por elas? É justo que elas permaneçam em um abrigo?
Nota-se nitidamente nesse contexto mais um direito constitucional desrespeitado: o direito à convivência familiar preceituado no artigo 227 da Constituição Federal, que também prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da pessoa humana, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Ante a perene discussão a respeito da violação aos direitos humanos que a atual realidade da gestante ou mãe no cárcere sofre algumas medidas alternativas, ainda insipientes, já foram delineadas, como por exemplo, o Habeas Corpus coletivo n. 143.641, do Supremo Tribunal Federal, o Decreto do Executivo n. 9.370, de 11 de maio de 2018, bem como as alterações legislativas propostas para o Código de Processo Penal.
4.1 O DIREITO À PRISÃO DOMICILIAR DAS GESTANTES, PUÉRPERAS E MÃES: Habeas Corpus coletivo n. 143.641 no Supremo Tribunal Federal.
O Habeas Corpus Coletivo n.143.641, foi impetrado em maio de 2017, pela Advocacia Pública da União, tendo por pacientes “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças” (BRASIL, STF, 2017).
No dia 20 de fevereiro de 2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski julgou o HC 143.641, concedendo a ordem às pacientes nos seguintes termos:
(...) Prosseguindo no julgamento, a Turma, por maioria, concedeu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas nesse processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício. Estendeu a ordem, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas acima. Quando a detida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão (BRASIL, STF, 2018) (sem grifos no original).
Resta evidente que encarcerar mulheres grávidas em unidades prisionais precárias, inibindo-lhes a assistência de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda abstendo as crianças de premissas adequadas ao seu pleno e sadio desenvolvimento, constitui-se tratamento desumano, cruel e degradante, o que rompe os preceitos constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e à integridade moral da presa.
Ademais, há que se considerar que a Constituição Federal preleciona no seu artigo 5º, inciso XLV que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado (...)”. Portanto, submeter o recém-nascido às condições do cárcere, seria o mesmo que submetê-lo a cumprir pena por crime que não cometeu.
No mérito, o Ministro Relator, Ricardo Lewandowski reiterou que há uma falha estrutural que agrava a cultura do encarceramento, revelando-se pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Ressaltou a situação degradante dos presídios brasileiros e trouxe narrativas da realidade vivenciada pelas mulheres nos estabelecimentos prisionais nacionais.
Importante ressaltar que, mesmo nas condições de gestante ou puérpera, alguns requisitos devem ser observados para a concessão da liberdade nos termos do Habeas Corpus 143.641. No caso de crimes praticados por mulheres com violência ou grave ameaça contra seus descendentes ou que apresentem alto risco de periculosidade para a sociedade esse benefício não se aplica. Do mesmo modo, esse entendimento não se aplica a detentas já condenadas com decisões transitadas em julgado, ou seja, só terá o benefício as presas em caráter provisório. Igualmente, poderá a substitutiva ser negada em outros casos excepcionalíssimos, desde que adequadamente fundamentados.
Tendo em vista que a maioria das mulheres presas atualmente no Brasil cometeu crimes não violentos, como o tráfico de drogas previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006 a medida tem um enorme potencial desencarcerador. As mulheres que respondem por este crime podem fruir do benefício ainda que sejam reincidentes devendo seus casos serem avaliados pelo juiz da causa, respeitando-se os preceitos legais.
Todavia, a realidade que se presencia é outra. De acordo com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC, 2019 p. 36) é alto o índice de decisões judiciais que denegam os pedidos de prisão domiciliar e diversos são os fundamentos apresentados pelos juízes, entre as mais bizarras justificativas, extraídas de decisões proferidas em audiência de custódia estão: “que não há prova idônea da existência do filho(a) ou da gravidez”, ‘’não há provas que terceiros não podem cuidar das crianças”, “tráfico de drogas é incompatível com a maternidade”, “preservação da ordem pública”, “situação excepcionalíssima” sem especificar qual, “mulher não cuida adequadamente do filho”, entre outras.
À vista disso, é preciso destacar que não cabe ao juiz nesse momento pré-processual ou ainda no curso do processo definir sobre a competência familiar da mulher privada de liberdade, essas são questões que devem ser tratadas na esfera civil, mais especificamente nas varas de família e não no âmbito penal. Percebe-se que a maior motivação para se impedir a concessão da prisão domiciliar são argumentos de cunho subjetivo, tolhendo ferozmente o direito concedido pelo Supremo Tribunal Federal e, consequentemente, ferindo o princípio constitucional da dignidade humana destas mulheres (ITTC, 2019, p. 42).
4.2 O Indulto do Dia das Mães: Decreto n. 9370, de11 de maio de 2018
O Indulto significou, assim como seu antecessor n.14.454, de 12 de abril de 2017 um grande avanço para o respeito à dignidade das mães e avós encarceradas. O referido Decreto prevê tanto situações de indulto, ou seja, a clemência em relação à pena e, portanto, a extinção da punibilidade, como também a comutação de penas, isto é, as penas restritivas de liberdade, podem ser substituídas por penal mais brandas, como por exemplo, a prisão domiciliar, ou seja, um cumprimento de pena em regime mais benéfico.
Não se pode confundir a habitual saída temporária do Dia das Mães, benefício previsto no artigo 122 da Lei de Execuções Penais com o Decreto Presidencial. A saída temporária é cabível, dentre outras hipóteses, para o preso, no regime semiaberto, visitar a família e participar de atividades que concorram para o seu retorno ao convívio social, mas que após uma semana retornará ao cárcere.
Assim, como o Habeas Corpus coletivo do STF, o Decreto Presidencial impõe requisitos a serem cumpridos tanto para o indulto, quanto para a comutação de pena. Em se tratando exclusivamente de gestantes e mães encarceradas, destacam-se os seguintes requisitos:
Art. 1º O indulto especial será concedido às mulheres presas, nacionais ou estrangeiras, que, até o dia 13 de maio de 2018, atendam, de forma cumulativa, aos seguintes requisitos:
I - não tenham sido punidas com a prática de falta grave, nos últimos doze meses; e
II - se enquadrem, no mínimo, em uma das seguintes hipóteses:
a) mães condenadas à pena privativa de liberdade por crime cometido sem violência ou grave ameaça, que possuam filhos de até doze anos de idade ou de qualquer idade se pessoa com deficiência, nos termos da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência , que comprovadamente necessite de seus cuidados, desde que cumprido um sexto da pena;
b) avós condenadas à pena privativa de liberdade por crime cometido sem violência ou grave ameaça, que possuam netos de até doze anos de idade ou de qualquer idade se pessoa com deficiência, nos termos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que comprovadamente necessite de seus cuidados e esteja sob a sua responsabilidade, desde que cumprido um sexto da pena;
(...)
e) gestantes condenadas à pena privativa de liberdade;
f) ex-gestantes, que tiveram aborto natural dentro da unidade prisional, condenadas à pena privativa de liberdade, desde que comprovada a condição por laudo médico emitido por profissional designado pelo juízo competente;
Art. 2º A comutação da pena privativa de liberdade será concedida às mulheres, nacionais ou estrangeiras, nas seguintes proporções:
(...)
III - à metade da pena, se reincidentes, quando se tratar de condenadas por crime cometido sem violência ou grave ameaça e que tenham filho menor de dezesseis anos de idade ou de qualquer idade se considerado pessoa com deficiência ou portador de doença crônica grave e que comprovadamente necessite de seus cuidados, desde que cumprido um quinto da pena até 13 de maio de 2018 (BRASIL, 2018) (sem grifos no original).
O indulto é um ato de clemência do Poder Público, previsto constitucionalmente no artigo 84, inciso XII da Carta Magna, compete privativamente ao Presidente da República conceder o indulto e comutar penas.
Com essa medida, o poder público reconhece que são necessárias melhorias no sistema penitenciário feminino, além de uma criteriosa seleção daquelas que, de fato, não tenham cometido crimes com emprego de violência ou grave ameaça e, mesmo assim, permanecem no sistema penitenciário.
Segundo pesquisa da Pastoral Carcerária (2018, p. 47), constatou que o Decreto de Indulto de 2017 não alcançou resultados satisfatórios, por mais abrangente que tenha sido as condições para sua concessão. O abismo entre o número de mulheres que poderiam ser beneficiadas e aquelas que efetivamente tiveram a punibilidade extinta é alarmante.
Para a Pastoral Carcerária, (2018, p. 48) os resultados da coleta de dados apontaram que, apesar da atribuição definida pelo Decreto, apenas 15 dos 27 órgãos estaduais responsáveis pela administração prisional informaram a realização de uma identificação das mulheres que atendiam aos requisitos do Decreto. Dentre as que realizaram, foram localizadas pouco mais de 20% do total de mulheres previstas inicialmente pelo Departamento Penitenciário Nacional: das 14.000 esperadas, as Secretarias identificaram apenas 3.001. Esse número representa somente 7,1% do total de mulheres encarceradas.
De acordo com o Decreto, a avaliação das possíveis beneficiárias deve ser realizada pela autoridade que tiver a custódia das mulheres presas ou ainda pelos órgãos de execução penal previstos no artigo 61 da Lei de Execução Penal, inclusive inclui-se nesse rol o próprio juiz da execução que pode conceder o benefício de ofício.
Todavia, os dados indicam não só pouca atenção à avaliação das possíveis beneficiárias por parte dos legitimados como também grandes taxas de rejeição dos pedidos por parte do judiciário.
Uma vez que os requisitos previstos no Decreto são bastante claros aos magistrados cabe apenas declarar a concessão presidencial, é de se estranhar margem tão grande de rejeição frente aos casos já identificados por outros atores. Esses dados sugerem que o Judiciário atravessa a atribuição da Presidência, inserindo outros critérios não previstos no Decreto para barrar a declaração do direito concedido, violando gravemente o direito das mulheres encarceradas.
Resta evidente, que diante de um Decreto abrangente é necessário que se somem esforços articulados de diversos agentes para a efetivação do direito ao indulto. A identificação das beneficiárias não pode operar como atribuição que escorrega das mãos de uma instituição para outra, assim como a declaração da concessão individual do indulto deve respeitar as disposições do Decreto. Os órgãos responsáveis pela administração prisional, as Defensorias Públicas e demais atores do sistema de justiça devem assumir, com urgência, a responsabilidade na concretização do indulto enquanto medida efetiva de desencarceramento.
4.3 ALTERAÇÕES NO CODIGO DE PROCESSO PENAL: a Lei n.13.769/2018
Em 19 dezembro de 2018, foi sancionada a Lei 13.769/18, que incluiu no Código de Processo Penal alguns dispositivos fixados anteriormente na decisão do HC Coletivo do STF, buscando estabelecer critérios mais objetivos para a substituição da prisão provisória pela prisão domiciliar.
Houve a inclusão dos dispositivos 318-A e 318-B, que positivaram a obrigatoriedade da substituição do cárcere pela prisão domiciliar, desde que preenchidos os requisitos objetivos: mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência.
A lei também determina que se o crime for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, ou contra filho, filha ou dependente, pode não haver conversão da prisão cautelar em prisão domiciliar, a depender da análise dos fatos de cada caso por parte do magistrado. Normatizou-se também que tal substituição pode ser aplicada concomitantemente com outras medidas alternativas já previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal., trazendo, desta forma, segurança jurídica à questão do direito à prisão domiciliar.
Vale ressaltar que o artigo 318 do Código de Processo Penal já vigorava em 2018com a seguinte redação:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
(...)
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV – gestante;
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
Embora já expressa a possibilidade da conversão da prisão preventiva em domiciliar, face a expressão “poderá”resta facultativo ao magistrado conceder ou não o benefício.
Todavia, na redação dos artigos inclusos pela Lei n. 13.769/2018foi utilizada a expressão “será”, invocando a obrigatoriedade da concessão:
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:[...]
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.
Ocorre que, mesmo diante de tal inovação legislativa os dados confirmam que as mulheres seguem sendo duramente penalizadas por serem mães e terem ao mesmo tempo cometido crimes, principalmente se o crime for relativo ao tráfico de drogas.
Ante o exposto, vislumbra-se que embora nem todos os dispositivos existentes relativos à concessão da prisão domiciliar para gestantes, mães e puérperas internas ao sistema prisional brasileiro tenham natureza legislativa, eles existem para promover a efetividade da garantia à dignidade humana destas mulheres.
O que ocorre é um intrínseco desprezo pela condição da mulher gestante, mãe e puérpera que tenha cometido algum crime e esteja sob a custódia do Estado, por parte de quem deveria, por dever legal, promover a efetividade dos direitos e, consequentemente, da dignidade destas mulheres.
O Habeas Corpus Coletivo concedido pelo STF corporificou a revogação das prisões preventivas impostas às mulheres ainda não condenadas a terem o direito de cumprir sua pena em prisão domiciliar, mediante o cumprimento de determinados requisitos.
O STF reconheceu os riscos de uma gravidez ocorrer dentro do sistema penitenciário, um lugar insalubre que causa riscos e danos tanto a gestante, quanto à lactante e seus bebês.
Contudo, na prática as mudanças ainda caminham em passos lentos, percebe-se que existe uma visão de que a prisão domiciliar seria um “prêmio” aplicado somente nas hipóteses em que os magistrados compreenderem pertinentes. Todavia, a prisão domiciliar não é uma faculdade do juiz, é um direito subjetivo, uma imposição legal e deve decorrer em todos os casos que atestem os critérios estabelecidos.
Com o mesmo propósito o Decreto n° 9.370/2018, concede indulto especial e comutação de penas a mulheres já condenadas. Em que pese o Decreto prever uma data estipulada para a sua solicitação, não há prazo máximo para a sua concessão. O Ministério da Justiça apontou grandes expectativas quanto ao número de mulheres abarcadas, porém, constata-se total discrepância a essa perspectiva. A falta de identificação das mulheres que se encaixam no perfil de concessão, a fraca atuação das Defensorias Públicas na requisição do indulto e o grande número de rejeições de pedidos pelos juízes responsáveis, são os principais fatores de tolhimento de operação do indulto enquanto instrumento eficaz de desencarceramento.
Nota-se que o exercício desse direito vem sendo inviabilizado por falta de efetividade dos intérpretes determinantes, isso porque, o entendimento sobre a importância da prisão domiciliar para mulheres em condições gravídicas ou puerperais vai à contramão da concepção de proteção aos direitos fundamentais delas, tendo em vista que o exercício da maternidade dentro do cárcere não pode ser exercido plenamente.
Por fim, o legislador inseriu os artigos 318 A e 318 B no Código de Processo Penal concedendo ao judiciário um poder-dever de avaliar a prisão domiciliar em substituição da preventiva. Entretanto, a percepção é de que os magistrados têm o ensejo de punir com severidade a fim de combater a criminalidade, julgando muitas vezes que à mulher delituosa não confere o direito de exercer a maternidade com dignidade, o raciocínio coaduna ainda com a ideia de que a prisão é a única forma de punição, como se a prisão domiciliar não fosse uma modalidade de prisão que causa transtornos tanto a presa quanto a seus familiares.
Diante da ineficiência dos institutos despenalizadores analisados, conclui-se que o maior desafio não é a normatização dos direitos e sim a sua efetividade, ou seja, a capacidade de fazer algo da melhor maneira possível, por parte do Estado.
REFERÊNCIAS
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[1] Professora Mestre na Faculdade Serra do Carmo - FASEC, nas disciplinas de Direito Penal e Prática Jurídica Criminal. Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da FASEC. Advogada Criminalista. E-mail: [email protected]
Bacharelanda em Direito pela Faculdade Serra do Carmo - TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Virginia Carvalho de. A dignidade humana das mulheres mães e gestantes privadas de liberdade: uma análise da efetividade da prisão domiciliar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2019, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53792/a-dignidade-humana-das-mulheres-mes-e-gestantes-privadas-de-liberdade-uma-anlise-da-efetividade-da-priso-domiciliar. Acesso em: 23 dez 2024.
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