FLÁVIA MALACHIAS SANTOS SCHADONG[1]
(Orientadora)
RESUMO: É cediço o entendimento constitucional, doutrinário e jurisprudencial a respeito de os bens públicos serem imprescritíveis e dentre estes encontram-se os bens dominicais. Este artigo vem abordar esta questão: demonstrar a possibilidade de usucapião dos bens dominicais visto que estes não cumprem sua função social. Isto será feito sob a ótica do princípio da função social da propriedade e do princípio da dignidade da pessoa humana, princípios estes que são feridos diretamente com tal proibição e sustentar que caberá ao judiciário analisar o caso concreto para uma correta aplicação do instituto de tal instituto para que assim seja efetivado os ditames dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Palavras-Chave: bens públicos; dignidade da pessoa humana; função social da propriedade; usucapião.
ABSTRACT: The constitutional, doctrinal and jurisprudential understanding regarding public goods is imprescriptible and among these are the Sunday goods. This article addresses this question: to demonstrate the possibility of adverse possession of Sunday goods as they do not fulfill their social function. This will be done from the perspective of the principle of the social function of property and the principle of the dignity of the human person, principles which are directly injured by such a prohibition and maintain that it will be up to the judiciary to analyze the concrete case for a correct application of the institute of such an institute. so that the dictates of the fundamental rights provided for in the Federal Constitution can be fulfilled.
Keywords: public goods; dignity of human person; social function of property; adverse possession.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 ASPECTOS GERAIS DOS BENS DOMINICAIS. 3 A USUCAPIÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO CÓDIGO CIVIL VIGENTES. 3.1. A (IM)POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO NOS BENS DOMINICAIS. 4. PRINCÍPIOS. 4.1 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. 4.2. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 5. ANÁLISE DE CASO CONCRETO: SENTENÇA DE MINAS GERAIS QUE RECONHECE USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO (DOMINICAL). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Por muito tempo existiu no Brasil a discussão jurisprudencial sobre a possível aquisição dos bens públicos mediante usucapião. Dentre os bens públicos encontram-se os bens dominicais, objeto de debate neste trabalho.
Essa discussão foi encerrada somente com a edição do decreto nº 19.429/31 onde determinou-se que não se incidiria a prescrição aquisitiva em desfavor dos entes públicos e consequentemente dos bens dominicais.
Posteriormente, com a Constituição Cidadã de 1988 essa tese foi consagrada e a partir daí não restaram dúvidas de que um particular não poderia adquirir bem público mediante usucapião.
Diante disso, nasce um paradoxo: ao mesmo tempo que a constituição dita que os bens públicos, e consequentemente os bens dominicais, são imprescritíveis, impenhoráveis e inalienáveis, esta elegeu o princípio da função social da propriedade como princípio norteador da ordem econômica brasileira.
Entretanto este entendimento emanou quem deveria dar bons exemplos aos particulares, no uso, exploração e conservação de seus bens, o Estado, através de seus entes públicos que administram bens aos quais não conferem o mínimo destino produtor e muitos ficam em situação de abandono, pela facilidade de não correr o menor risco de perdê-los.
Diante disso, além de se confrontar com o princípio da função social da propriedade, a inalienabilidade dos bens dominicais (bens públicos em geral) afronta diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana pois enquanto existem milhares de pessoas sem moradia, sem escola e sem atendimento hospitalar adequado os entes públicos enchem seus depósitos com materiais que se distribuídos às população necessitada, seria de grande valia ou em casos de vastos terrenos vazios, apenas especulando-se no mercado imobiliário, quando poderiam servir para a moradia de centenas de famílias.
Observando essa realidade facilmente perceptível na sociedade brasileira, este trabalho surge com o intuito de demonstrar que esta impossibilidade de usucapião dos bens dominicais fere diretamente os princípios da dignidade da pessoa humana bem como o princípio da função social da propriedade e que caso fossem passíveis dessa modalidade, beneficiaria milhares de brasileiros que não tem lugar onde morar e se veem obrigados a perambular pelas ruas passando por todas as espécies de privações.
Assim o artigo o artigo tratará os aspectos gerais dos bens dominicais, abordando o instituto da usucapião, tanto no Código Civil quanto na Constituição Federal de 1988, defendendo que se caso os bens dominicais fossem passíveis fossem passíveis de usucapião, princípios como a função social da propriedade e dignidade da pessoa humana seriam respeitados e colaboraria na diminuição das desigualdades neste grande e desigual país.
2. ASPECTOS GERAIS DOS BENS DOMINICAIS
O artigo 98 do Código Civil conceitua os bens públicos como “ os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. Estes podem ser classificados quanto à titularidade, à destinação, à disponibilidade.
Quanto à titularidade podem ser podem ser federais, estaduais, distritais ou municipais, e quanto à destinação, podem ser de uso comum do povo, (rios, mares, estradas, ruas e praças), os de uso especial, (são os bens que o Estado utiliza para suas instalações, como por exemplo prédios de hospitais, escolas e prefeitura), bens dominicais, que são os que o poder público detém como qualquer particular, não estando destinados nem ao uso comum, nem ao uso especial, assim, podem ser considerados bens do domínio privado do poder público. Este último será o objeto de análise deste trabalho.
Os bens dominicais podem ser conceituados por exclusão, pois assim, como os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial são direcionados a uma finalidade pública, os bens dominicais são aqueles que não têm destinação pública, como por exemplo: terras devolutas; prédios públicos desativados.
De acordo com Marinela (2016, p. 887) os bens dominicais podem ser definidos como aqueles:
“que pertencem ao acervo do Poder Público, sem destinação especial, sem finalidade publica, não estando, portanto, afetados. Esse conceito e estabelecido por exclusão, trata de uma definição residual, sendo dominical aquele bem que não e de uso comum do povo e não e de uso especial. São exemplos: as terras sem destinação pública especifica, as terras devolutas, os prédios públicos desativados, os bens moveis inservíveis e a dívida ativa”
Os bens dominicais, segundo Di Pietro (2001), têm as seguintes características: 1. Comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; a consequência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração; 2. Submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado.
No entanto, muitos bens dominicais não se destinam a assegurar rendas aos entes públicos, estes deixaram de ser utilizados em fins específicos, como por exemplo, um terreno baldio, um prédio fechado, um equipamento obsoleto, um veículo que sofrera perda total em um acidente, dentre outros exemplos que podem ser vistos na maioria das administrações públicas, sejam elas federal, estaduais ou municipais.
Por ser uma espécie de bem público, sobre os bens dominicais não cai a imprescritibilidade, ou seja, a prescrição aquisitiva, que nada mais é do que a possibilidade de usucapião. O patrimônio público não pode ser usucapido, entretanto o Estado pode usucapir bens de seus particulares.
Nesse sentido destacamos a súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, velamos: “ desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Logo, o credor do Poder Público não pode ajudar garantia real sobre bens públicos. Se assim as partes ajustarem, o avençado torna-se nulo e não pode ensejar os efeitos normalmente extraídos desse tipo de garantia.
Tecendo uma crítica à má administração e uso desses bens dominicais, são justamente estes os mais vulneráveis aos ataques dos particulares e dos gestores ímprobos, por não serem de fácil identificação e deles não se costuma dar falta. Não é novidade, ouvir falar desses bens juntamente com outras expressões tais como peculato e confusão patrimonial.
Diante disso, este trabalho defende a possibilidade de que pelo menos os bens dominicais sejam passíveis de imprescritibilidade, da impenhorabilidade e da desoneração dos bens públicos, e que além disso se criem regras aptas a fazer com que os gestores públicos imprimam finalidade social aos bens públicos de uma maneira geral e ainda, que passem a limitar, ao máximo, o número daqueles bens considerados dominicais.
3. A USUCAPIÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO CÓDIGO CIVIL VIGENTES
A usucapião pode ser considerada como o instrumento de aquisição de propriedade e ou de qualquer direito real que se dá pela posse prolongada da coisa, de acordo com os requisitos legais, sendo também denominada de prescrição aquisitiva.
Nesse contexto, tem-se como impossível a usucapião de bens públicos, com vista ao interesse social, já que se trata de um bem coletivo. O direito sumular confere que os bens dominicais, como espécie de bens públicos, não podem ser objeto da usucapião, submetendo-se à regra geral da vedação. É o que dita a súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, de 13/12/1963, bem como, os artigos 183 § 3 e 191 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e artigo 102 do Código Civil de 2002 (CC/02).
Os tipos ou espécies de aquisição de bens observados a caracterização do Usucapião descritas no Código Civil Brasileiro, pode-se dividir em Extraordinária, conforme artigo 1.238, Ordinária especificada no artigo 1.242, além do Usucapião Constitucional Rural, previsto no artigo 1.239, e Usucapião Constitucional Urbano no artigo 1240.
A usucapião extraordinária conforme o art. 1238 do Código Civil prediz que:
Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único: O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a 10 (dez) anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.
Conforme o aludido artigo, único requisito para a aquisição originária do imóvel é sua posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini por 15 (quinze) anos, não sendo exigido justo título ou boa-fé.
Conforme assevera Rodrigues (2014) esta é a forma mais simples de aquisição originária de imóvel por usucapião, uma vez que basta a posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo prazo estipulado no artigo. Por isso o tempo exigido de posse é maior frente às outras modalidades de usucapião.
Por sua vez, a usucapião ordinária, descrita no artigo 1242 do Código Civil funciona da seguinte maneira:
Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por 10 (dez) anos. Parágrafo único: Será de 5 (cinco) anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Nesta modalidade de usucapião, os requisitos são os seguintes a saber: posse mansa, justo título e boa-fé, e ainda, o prazo diminui para 5 (cinco) anos, se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico (Rodrigues, 2014).
Tratando-se de Usucapião Constitucional Rural, confere a modalidade em que o usucapião está previsto em Carta Magna, além do Código Civil de 2002, como descrito anteriormente. Também conhecido como usucapião pro labore e usucapião especial rural. Este pode ser definido por aquele que não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possuir como sua, ininterruptamente e sem oposição, por cinco anos, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, transformando em ambiente de trabalho ou da sua família e produzir no local, sendo ainda nela a sua moradia, poderá adquirir a propriedade.
Extraindo do artigo 1239 do Código Civil, esta espécie de usucapião tem como características: o possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas; a usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis; na Sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
Ainda, condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio; as deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.
Por fim, a usucapião Constitucional urbana, prevista no art. 1240 do Código civil, aduz que:
“Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Parágrafo único: O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.
A diferença desta espécie de usucapião para a usucapião rural é que nesta há a redução do prazo de posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini para 2 (dois) anos. Vale trazer à baila desta explanação, o enunciado 499 da V Jornada de Direito Civil o qual apura que:
A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito ‘abandono do lar’ deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente com as despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, justificando a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião
Partindo desses dispositivos, a vedação constitucional à usucapião dos bens públicos tem como intuito assegurar uma proteção especial a estes bens, pois esta proteção tem relação com a inalienabilidade que é a regra entre os bens públicos, desta forma, a disposição genérica trazida pela norma não significa a não aplicação a tais bens do princípio da função social (Guimarães, 2008). Assim de acordo com as palavras de Fortini (2004) :
A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social
Desta forma, quando da Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade foi erigida à condição de princípio constitucional pelo legislador constituinte, e, é necessário que se tenha em mente que tais princípios traduzem os valores superiores e essenciais de um Estado.
Estes princípios orientam a produção legislativa infraconstitucional, podendo também servir de garantia direta e imediata aos cidadãos. Funcionam ainda como critério de interpretação e integração da Constituição e do sistema jurídico, dando unidade e coerência a este sistema. Na condição de princípio constitucional – mais que isso: de princípio constitucional fundamental – deve a função social ser obedecida por toda espécie de propriedade, seja pública, seja privada.
3.1. A (IM)POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO NOS BENS DOMINICAIS
Os bens públicos são aqueles que integram o patrimônio da administração direta e indireta. Dentre as espécies desses bens, conforme já relatado, existem os bens dominicais os quais constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público como objeto de direito pessoal ou real.
Há de se diferenciar os bens materialmente públicos dos formalmente públicos. Os primeiros são aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, já que são dotados de função social. Os formalmente públicos seriam aqueles que são registrados no nome da pessoa jurídica de direito público, mas não possuem nenhuma destinação, não cumprem com sua função social, visto que, são excluídos de qualquer forma de atividade produtiva (Almeida, 2014).
Diante disso, torna-se possível defender a possibilidade de usucapião de bens públicos, sobretudo os bens dominicais, para assim se fazer cumprir o princípio da função social da propriedade, tendo em vista que “ que as limitações que o legislador impôs aos bens públicos como, a imprescritibilidade, só devem abranger os bens materialmente públicos” (Almeida, 2014, p. 13).
Vale a pena trazer a discussão o art. 1228 do Código Civil que diz:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Diante do dispositivo acima, mesmo sendo levada em consideração a impossibilidade de usucapir os bens públicos (dominicais), deve ser levado em conta o direito de propriedade decorrente dos direitos de uso, gozo, disposição e reinvindicação da coisa relativos ao proprietário, conforme o parágrafo único do artigo citado.
Por obterem renda para o Estado e não serem considerados bens afetados, os bens públicos dominicais como bens de natureza patrimonial. Hoje, esse entendimento mudou e nas palavras de Di Pietro:
hoje já se entende que a natureza desses bens não é exclusivamente patrimonial; a sua administração pode visar, paralelamente, a objetivos de interesse geral. Com efeito, os bens do domínio privado são frequentemente utilizados como sede de obras públicas e também cedidos a particulares para fins de utilidade pública.
Por exemplo, no direito brasileiro, é prevista a concessão de direito real de uso para fins de urbanização, industrialização, cultivo e também a sua cessão, gratuita ou onerosa, para fins culturais, recreativos, esportivos. E mesmo quando esses bens não são utilizados por terceiros ou diretamente pela Administração, podem ser administrados no benefício de todos, como as terras públicas onde se situem florestas, mananciais ou recursos naturais de preservação permanente. Além disso, a própria administração financeira constitui objetivo apenas imediato, pois, em uma perspectiva mais ampla, atende a fins de interesse geral.
Dessa Forma, a gestão desses bens ditos dominicais visará (na teoria) o interesse público, decorrente da atividade privada da administração.
Por sua vez, há a corrente doutrinária, embora que de maneira minoritária, que se vale da interpretação teleológica do texto constitucional, visando a defesa de usucapião dos bens públicos.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2014, p. 350) dizem que “detecta-se, ademais, em análise civil- constitucional que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse”.
Estes autores defendem que esta função social pode ser visualizada na posse exercida com a aparência de proprietário. Mansa e pacífica, tendo em vista que o proprietário não contesta a posse ilegítima e também ininterrupta, visto que a posse tem que ser contínua e durar até o prazo previsto na respectiva modalidade, como forma de privilegiar a verdadeira justiça social, ofertando meios para que o proprietário tutele seu título.
Para Carvalho Filho, “os bens de uso especial e alguns de uso comum do povo, ao serem objeto de desafetação, passam à categoria dos bens dominicais, como já observamos, o que também poderá ensejar a sua alienação.” (2014, p. 1169). Com isso, cabe ressaltar que tal possibilidade é fruto da ausência de imediato interesse social sobre esses bens e dessa forma os bens dominicais poderiam ingressar na esfera dos bens disponíveis do Poder Público, visto que sua alienação não representaria prejuízos à coletividade, haja vista inexistir afetação.
Vale ressaltar que além da função social da propriedade, seria efetivado outro princípio que é esteio do Estado democrático de direito, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio busca a garantia de que o ser humano possua as condições mínimas para viver uma vida digna e isso inclui o direito de moradia, de propriedade.
Nesse sentido, Albuquerque (2002, p. 40) afirma que:
A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho para se impor perante todos
Assim, conforme Moraes Filho (2014, p. 19) assevera , isto se desdobra no direito inerente da pessoa humana de ter um patrimônio mínimo, justificando a proteção possessória a quem cumpre a função precípua da terra: gerar riqueza. Admitir a função social da propriedade é admitir direito subjetivo ao não-proprietário de, através da terra, obter uma vida digna, assegurando um patrimônio mínimo, ou seja, uma existência autônoma.
E continua o autor, afirmando que, ao contrário, negar a função social da posse, é continuar acreditando que apenas os proprietários têm direito subjetivo sobre a terra, e, de certa forma, respaldar as doutrinas tradicionais clássicas que entendem, na função social, apenas seu caráter negativo.
Com isto, defende-se uma emenda à Constituição Federal na qual passe a permitir pelo menos a usucapião de bens dominicais pois com isso a sociedade seria beneficiada, não só pela redução do número de pessoas sem moradia, mas pelo fato de que a população zelaria melhor pelos imóveis que a pertence, obrigando o Poder Público a melhor geri-los, fomentando a economia.
4. PRINCÍPIOS
Os princípios, sejam constitucionais ou não, representam os valores essenciais de um Estado e orientam a produção de leis além de servirem como garantia direta aos cidadãos.
De acordo com Guimarães (2008), os princípios funcionam como critério de interpretação e integração da Constituição e do sistema jurídico, dando unidade e coerência a este sistema. Na condição de princípio constitucional – mais que isso: de princípio constitucional fundamental – deve a função social ser obedecida por toda espécie de propriedade, seja pública, seja privada.
São muitos e variados os princípios adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro, e para os fins desse trabalho, serão abordados aqui os principais princípios da Função Social da Propriedade e da Dignidade da pessoa humana, que são basilares e reafirmam o Brasil como um Estado Democrático de Direito.
4.1 Princípio da Função Social da Propriedade
O princípio da função social da propriedade no Brasil foi elevado à condição de princípio constitucional quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, entretanto, de acordo com Moesch (2005) foi pela primeira vez mencionado no ordenamento jurídico pátrio na Constituição Federal de 1967 e com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, a Carta de 1967 incluiu a função social da propriedade como princípio basilar da ordem econômica e social (art. 160, III), coexistente com a garantia da propriedade privada, quando então, alguns chegam a encarar esse princípio como uma verdadeira hipoteca social sobre a propriedade.
Dando seguimento, de acordo com o artigo 170 da Constituição Federal, temos que a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa fundamentam a ordem econômica nacional, e tem o intuito de garantir a todos uma existência digna, baseada nos pressupostos da justiça social, observados, dentre outros princípios, o da função social da propriedade.
Sendo assim, “a propriedade, na condição de direito fundamental, está elencada como princípio da ordem constitucional econômica, tendo em vista estar fortemente relacionada à satisfação das necessidades humanas primárias” (Evangelista, 2013). Nessa linha de pensamento, o direito de propriedade é a condição sem a qual não, o ser humano é impedido de ter direitos básicos efetivados, no caso, a moradia.
O princípio da função social da propriedade, traz uma limitação à utilização da mesma, no sentido de que não basta ser proprietário, deve ser respeitado a função social dessa propriedade, devendo assim, de maneira efetiva, o bem imóvel estar sendo utilizado conforme a realidade social e o direito lhe impõem, caso contrário, o proprietário poderá perder o seu imóvel, quer seja, pelo instituto da desapropriação ou da usucapião, exceto para os bens públicos e mais especificamente os bens dominicais, objeto deste estudo.
Tal princípio funciona como uma garantia a cada indivíduo no sentido de assegurar a este que seu direito de propriedade seja utilizado para um fim social seja público ou privado e leve o poder público a produzir leis voltadas à efetivação deste princípio.
Diante disso, o princípio da função social da propriedade não deve representar apenas uma divisão dos bens igualitária, mas também a outros direitos inerentes à construção de uma sociedade mais justa, que é o objetivo da coletividade.
4.2. O princípio da Dignidade da Pessoa humana
É cediço o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais são institutos que não podem ser negados ou tirados de qualquer cidadão brasileiro, ou estrangeiro residente no país, pois isso afronta diretamente a Constituição Federal e seus objetivos. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana tem como intuito garantir o mínimo para que cada cidadão viva de maneira digna na sociedade.
Fachin (2003, p. 17), afirma que “A Carta Magana de 1988, inova no ordenamento ao tirar do centro social a ideia de individualismos e traz à baila como centro primário das discussões, o ser humano, fundamentando e guiando todo o sistema jurídico para a sua proteção”. Com isso percebe-se a evolução no pensamento do legislador para uma visão mais humana, que busca um tratamento cada vez mais digno para todo cidadão.
Por sua vez, Moraes (2003, p 50), afirma que A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais.
Nesta linha de pensamento, pode-se afirmar que as garantias constitucionais devem ser respeitadas sob o prisma dos direitos fundamentais, os quais como o próprio nome diz são indispensáveis a qualquer ser humano, pois o mesmo tem o intuito de estabelecer união entre o sistema jurídico e social afim de que ambos andem juntos.
Assim, é possível estabelecer uma conexão entre os princípios aqui explanados, qual seja o Princípio da dignidade da pessoa humana e o da função social da propriedade pois, pois ambos se complementam no sentido de que sem moradia não há vida digna, ferindo assim este princípio que é tido como basilar para o Estado brasileiro.
5. ANÁLISE DE CASO CONCRETO: SENTENÇA DE MINAS GERAIS QUE RECONHECE USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO (DOMINICAL)
Conforme já abordado, o entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência atual é no sentido de que é absolutamente impossível a usucapião dos bens públicos mesmo que estes não cumpram sua função social pois esta corrente da doutrina entende que o bem público é a função social em si mesmo.
Assim, doutrinadores e julgadores muitas vezes não se atentam aos anseios sociais pois não estão familiarizados com o tema em questão e utilizam um entendimento sumular já ultrapassado sobretudo levando em consideração os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988, posterior à súmula 340 do STF (1963), entretanto, há alguns poucos julgados. Todavia, há alguns poucos julgados que compactuam com a linha de pensamento favorável à usucapião de propriedade pública.
Para este estudo de caso será abordada a decisão datada de 08 de maio de 2014, proferido no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), a qual decidiu pela usucapião de bem público na cidade de Antônio Dias, comarca de Coronel Fabriciano, que confirmou a sentença do juízo de primeiro grau.
Antes de ser analisada a decisão da Segunda instancia naquele Estado, vejamos um trecho da sentença onde o magistrado de primeiro grau concedeu o direito de usucapião ao bem público, vejamos:
Com efeito, como bem salientou o ilustre representante do Ministério Público, malgrado ainda prevaleça na jurisprudência e na doutrina o entendimento de não ser cabível a usucapião de bens públicos, vem surgindo uma corrente, com a qual me coaduno, no sentido de que a matéria deve ser analisada em conformidade com os princípios constitucionais e com a realidade social ora vívida. À luz desse entendimento, a visão rígida acerca da previsão legal da imprescritibilidade do bem público deve ceder lugar a uma interpretação conforme, histórica e teleológica, de modo a priorizar a função social da propriedade e evitar odiosas injustiças (CORONEL FABRICIANO, 2013, p. 292/293)
Percebe-se que, ao reconhecer a usucapião de bem público, aquele magistrado levou em consideração o contexto histórico e a realidade social vivida pelos moradores da propriedade, fundamentando-se no princípio da função social da mesma, apesar de se tratar de bem público.
Na mesma seara de entendimento, o juízo de segundo grau julgou no seguinte sentido, vejamos o acórdão:
VIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA – DETENÇÃO – INOCORRÊNCIA – POSSE COM “ANIMUS DOMINI” – COMPROVAÇÃO – REQUISITOS DEMONSTRADOS – PRESCRIÇÃO AQUISITIVA – EVIDÊNCIA – POSSIBILIDADE – EVIDÊNCIA – PRECEDENTES - NEGAR PROVIMENTO. - “A prescrição, modo de adquirir domínio pela posse contínua (isto é, sem intermitências), ininterrupta (isto é, sem que tenha sido interrompida por atos de outrem), pacífica (isto é, não adquirida por violência), pública (isto é, exercida à vista de todos e por todos sabida), e ainda revestida com o animus domini, e com os requisitos legais, transfere e consolida no possuidor a propriedade da coisa, transferência que se opera, suprindo a prescrição a falta de prova de título preexistente, ou sanando o vício do modo de aquisição”. (Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001, Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Relator: Barros Levenhagen, julgado em 08/05/2014 – Publicado em 15 de maio de 2014[2]
Trata-se de um julgado bastante polêmico pois alguns doutrinadores conforme já mencionado defendem que a absoluta impossibilidade de usucapião de propriedade pública é um equívoco. Assim, Farias e Rosenvald (2013, p. 404) alertam:
Por fim, o art. 102 do Código Civil adverte que os bens públicos não estão sujeitos à usucapião. O legislador foi radical ao deixar claro que a impossibilidade de usucapião atinge todos os bens públicos, seja qual for a natureza ou a finalidade. Detecta-se, ademais, em análise civil-constitucional que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade
Logo, fazendo uma correta interpretação da ordem constitucional atual, pode-se constatar que a vedação de forma absoluta de usucapião de bens públicos (e consequentemente dos bens dominicais) afronta todo o ordenamento jurídico brasileiro.
A propriedade pública, quando não atende o princípio fundamental da função social da propriedade fere diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, pois enquanto há milhões de pessoas sem um teto para morar, existem milhares de propriedades públicas inutilizadas que poderiam minimizar este problema.
Consequentemente, deve sofrer as mesmas consequências de uma propriedade particular quando não atende sua função social, pois o Estado deve pautar o uso dos bens públicos no respeito aos interesses sociais fazendo garantir os direitos fundamentais da elencados na Constituição Federal.
6. CONCLUSÃO
Com o presente trabalho foi possível demonstrar que a propriedade pública assim como a particular deve atender o princípio da função social da propriedade sob pena de implicar na efetivação de outros princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana.
Constatou-se também que a vedação da usucapião de bens públicos prevista no art. 102 do CC/2002 e no art. 183, § 3º e art. 191, parágrafo único da CRFB/1988 é compatível apenas com os bens materialmente públicos, ou seja, aqueles que cumprem de fato a função social da propriedade, o que não é o caso dos bens dominicais.
Assim, é possível concluir que a imprescritibilidade dos bens públicos só alcança aqueles que exercem plenamente o princípio da função social da propriedade, e, ocorrendo o contrário fere princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana.
Dessa maneira, sendo possível usucapir o bem público que não esteja cumprindo efetivamente o princípio da função social da propriedade é uma forma de incentivar o Estado a gerir melhor esses bens dando serventia aos mesmos em benefício não de um seleto grupo, mas em prol de toda a sociedade. à realização de uma gestão eficiente de seus bens e de seus atos, em benefício da coletividade.
Observou-se, ainda, que a imunidade constitucional da vedação à usucapião de bem públicos, consagrada no art. 102 do CC/2002 e no art. 183, § 3º e art. 191, parágrafo único da CRFB/1988, compatibiliza-se apenas com os bens materialmente públicos, vale dizer, os bens que estejam, de fato, cumprindo a função social da propriedade. Partindo desse pressuposto, conclui-se que a regra da imprescritibilidade dos bens públicos só se legitima quando consorciada com o princípio da função social da propriedade.
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[1] Especialista em Direito Previdenciário, Direito e Processo do Trabalho. Professora de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins. Advogada. E-mail: [email protected].
[2] Disponível em <http://www.tjmg.jus.br/themis/verificaAssinatura.do?numVerificador=101941001123830012014489367>, acesso em 30 de Outubro de 2019.
Bacharelanda no Curso de Direito pelo Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVANO, Lailla Marques. Os bens dominicais e sua (im)possibilidade de usucapião sob a ótica dos princípios da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2019, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53817/os-bens-dominicais-e-sua-im-possibilidade-de-usucapio-sob-a-tica-dos-princpios-da-funo-social-da-propriedade-e-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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