RESUMO: o presente estudo objetiva discutir o direito de vizinhança em face de comportamentos antissociais. Para tanto, aborda o direito de propriedade consoante o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988 dando-se ênfase à função social da propriedade; elenca regras gerais do direito de vizinhança; e aborda a função social do direito e a importância da educação para a urbanidade. Para a realização deste artigo, como metodologia, optou-se pela pesquisa bibliográfica realizada a partir de materiais já publicados, a exemplo de doutrinas, legislações e jurisprudências permitindo concluir que referente ao direito de vizinhança, o Código Civil de 2002 não logrou êxito em acompanhar a evolução das relações sociais, ocasionada pelos rápidos avanços tecnológicos que determinaram mudanças significativas nas questões relativas à vizinhança, inclusive de cunho ambiental. Assim, cabe ao operador do direito a recomendação de interpretar o código conforme a Constituição da República sem relegar a segundo plano à ideia de função social a qual o texto constitucional dá muita ênfase ao ligar a expressão “social” à ideia de “promoção humana”.
Palavras-chave: Propriedade. Função social. Direito de vizinhança. Promoção humana.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O Direito de Propriedade sob a Ótica do Ordenamento. 2.1 A função social da Propriedade. 3 Direito de Propriedade frente ao Direito de Vizinhança. 3.1 A Função Social do Direito e a Importância da Educação para a Urbanidade. 4 Conclusão. 5 Referências.
1 INTRODUÇÃO
A chamada “Constituição Cidadã”, de 1988, em seu art. 5º, inc. XXIII estabelece o dever do cumprimento da função social da propriedade, porém, desde sempre o direito de propriedade tem sofrido inúmeras restrições que lhe impõem limitações ao uso e à utilidade.
Nada mais do que a civilidade – ou boa convivência social – compõe as limitações impostas nos direitos de vizinhança. Tal elemento, entretanto, não basta por si só se não estiver permeado pela lealdade e boa-fé entre os proprietários vizinhos, capazes de protegerem solidariamente ao ambiente em que vivem, acabando, assim, por se protegerem mutuamente.
Desse modo, é certo que a utilização da propriedade deve se dar nos limites de uma coexistência social e pacífica entre os vizinhos, além de, intersubjetivamente, dizer a respeito também à preservação do ambiente juridicamente protegido. O Código Civil brasileiro, ao disciplinar a matéria, preocupa-se com as ofensas à segurança pessoal, ao sossego e à saúde, ainda que, muitas vezes, dada a subjetividade de alguns aspectos pertinentes ao tema, surjam grandes dificuldades na visualização da tênue linha divisória entre ouso regular e irregular de um imóvel.
Tal regulação diz respeito estritamente aos costumes e padrões de civilidade vigentes entre os membros de uma coletividade, por mais que, em interpretação extensiva, possamos extrair sua abrangência em relação ao ambiente juridicamente protegido. Há que se lembrar que costumes, mesmo variáveis local ou regionalmente num mesmo estado, jamais serão unilaterais; ao contrário, trata-se de consenso cristalizado por meio de sua longa vigência temporal e em função de seu caráter preservador da coletividade.
Neste trabalho, busca-se identificar as eventuais alterações sofridas nos costumes, em função das evoluções ocorridas nas relações sociais. Tais evoluções, em grande parte, são oriundas dos significativos avanços tecnológicos, em relação às alterações havidas ou não no que concerne ao Direito de Vizinhança tal como se apresenta no Código Civil.
Feitos estes apontamentos iniciais, o presente estudo, objetiva discutir o direito de vizinhança em face de comportamentos antissociais.
Para a realização deste artigo, como metodologia, optou-se pela pesquisa bibliográfica realizada a partir de materiais já publicados, a exemplo de doutrinas, legislações e jurisprudências que contribuem para a melhor compreensão do tema em análise.
2 O DIREITO DE PROPRIEDADE SOB A ÓTICA DO ORDENAMENTO
Embora no Código Civil de 2002 seja possível perceber um abrandamento no direito de proprietário trazido por um conceito mais social de propriedade, não são notadas inovações significativas em relação ao Direito de Vizinhança regulado no Código de 1916, mesmo porque tal instituto, enquanto limitador do direito de propriedade, não traz em si muitas possibilidades de se prestar, a priori, a funções conceitualmente sociais.
Mesmo em relação aos conceitos de entonação social expressos na Constituição de 1988, é importante recordar que o projeto do Novo Código Civil foi encaminhado em junho de 1975 à Câmara dos Deputados, pelo então Presidente da República, General Ernesto Geisel, iniciada no governo Jânio Quadros, a elaboração do projeto pelo Executivo foi retomada na administração do General Castelo Branco e, novamente, retomada no governo Geisel.
Seguindo nesse raciocínio, não se pode deixar de citar que, em 1984, portanto quatro anos antes da promulgação da Constituição de 1988 e após dez anos de tramitação na Câmara, deu-se a aprovação do Projeto de Lei que criava o Novo Código Civil com seu posterior encaminhamento ao Senado para revisão, da qual apenas retornou em 1997.
Ao relembrar tais episódios, não se tem outro objetivo senão o de chamar a atenção para o fato de que, a despeito de algumas tentativas para adaptar o texto de um Projeto de Lei criado em 1975 a uma Constituição promulgada em 1988, o atual Código Civil, a exemplo do aprovado em 1916, tem, por seu histórico, fortes evidências de ter nascido “velho” e de costas para o novo século que então se iniciava, sobretudo ao regular o direito de propriedade, bem como seus institutos e efeitos (CARVALHO NETO, 2009, p.81).
Paradoxalmente, pode-se observar a contemplação expressa de normas que digam respeito diretamente às questões ambientais, inclusive as de cunho ecológico, cuja temática é claramente tutelada pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 225. O § 1º do art. 1.228 do Código Civil, que trata da propriedade em geral, prevê a proteção da flora, da fauna, da diversidade ecológica, do patrimônio cultural e artístico, das águas e do ar.
Tal previsão, em consonância com os princípios constitucionais, se transportada para as relações de vizinhança, terá a capacidade de conferir-lhes vida, atualidade e reais possibilidades de atuação nos liames da função social da propriedade (Carvalho Neto, 2009, p.252).
Uma vez realizadas estas considerações, passa-se à apresentação de um breve histórico da regulação da propriedade no Estado Brasileiro, de onde parte-se para tentar alcançar a dimensão do Direito de Vizinhança como tal como é concebido nos dias de hoje.
2.1 A função social da propriedade
O processo de regulação da propriedade imóvel no Brasil se iniciou com a implementação do sistema das Capitanias Hereditárias (1530), no processo de colonização do país, quando Portugal, temendo perder o domínio sobre a colônia, dividiu o Brasil em 15 lotes, doados aos “donatários”. Esses “donatários”, em face das Ordenações do Reino, em vigor também nas colônias, detinham o poder de conceder terras em regime de Sesmarias, que permitiu a ocupação da terra de forma desordenada e aleatória e foi extinto definitivamente em 1822 (CARVALHO, 2007, p. 34)
Até 1850, quando se deu a promulgação da primeira Lei de Terras no Brasil (Lei 601, de 18.09.1850), prevalecia o instituto da posse, em que a simples ocupação da terra era suficiente para garantir direitos a seu ocupante. A partir de então, vários dispositivos legais foram criados para tutelar a questão da propriedade, proibindo-se terminantemente a posse, sendo toleradas apenas as existentes até sua promulgação. A única forma legal de se adquirir terras no Brasil passou a ser a compra devidamente registrada (CARVALHO, 2007, p.34-35).
As noções formais a respeito de posse e propriedade emergiram, no sistema jurídico brasileiro, a partir dessa lei. Em uma leitura mais detalhada, perceba-se que o constituinte de 1988 inovou ao dedicar um capítulo à política urbana, condicionando o desenvolvimento urbano ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Ante a este reconhecimento, tem-se que ações individuais ou mesmo comunitárias que extrapolem a esfera da intimidade deverão levar em consideração o interesse de todos os habitantes da cidade.
O livre exercício da individualidade não pode ferir os interesses coletivos dos habitantes da cidade, numa clara e evidente conclusão de que, mais do que somente a propriedade, também a cidade, que é composta por diversos conjuntos de vizinhos no exercício de múltiplas e variáveis funções, deve cumprir a função social da propriedade urbana (GONÇALVES, 2019 p.222). Tal realização está a cargo do Poder Público, conforme previsto no art. 182 da Constituição Federal de 88 que, sem dúvidas, uniu as concepções de direito de propriedade e direito subjetivo, fazendo da função social, ainda que não exclusivamente, parte importante da matéria relativa ao direito de propriedade.
Atualmente, está clara a importância fundamental da função social dentro do direito de propriedade que não só deve ser por ela atingida, mas que integra a essência de seu conceito. Assim, a propriedade possui uma função social, que deve ser efetivada.
O termo função social possui estreita relação com o resultado que se pretende obter com determinada conduta ou atividade humana, com vistas ao atendimento de interesses que ultrapassam os objetivos individuais. Ao falar em função social, Gomes (2011 p.115), a relaciona, num primeiro momento, às limitações negativas do direito de propriedade, afetando o próprio exercício do direito de propriedade, porém não à sua substância.
Já Farias e Rosenvald (2019 p.151) explicam que as mudanças atravessadas por esse instituto foram mais além do que uma eventual redução dos poderes do proprietário ou do volume do direito de propriedade, pelas limitações da legislação. Caso fosse assim, o conteúdo do direito de propriedade não teria se transformado, tornando a função social somente mais uma limitação.
Nesse diapasão, é importante para o entendimento do vocábulo função, que seja realizado um retorno, a nível da linguística e do vocábulo, para se chegar ao seu conceito e seus elementos. Na esfera jurídica, a palavra função possui inúmeros sentidos, podendo representar concomitantemente diversos significados. A função representaria o exercício da atividade, o encargo ou os bônus impostos pela legislação ou pelas regras de experiência comum de alguém, junto a terceiros, ou deste, junto a um bem. A função acarreta um objetivo, fixado antecipadamente pelo ordenamento jurídico nacional (FARIAS; ROSENVALD, 2019, p.153).
Por sua vez, o vocábulo “social” indica o interesse coletivo, e não o do proprietário. A função social segundo Pereira (2018, p.93-94) seria um “poder-dever” do proprietário, confirmado pela ordem jurídica. Desta feita, existiria um condicionamento do poder a uma finalidade, sendo que a função social da propriedade obriga ao seu proprietário o dever de desempenhá-la, tornando-se uma fonte de comportamentos positivos.
Para Siqueira (2012, p.82), a aplicação do termo “função social” proporciona ao Direito uma grande discussão, especialmente na Sociologia, com relação à análise funcional a respeito dos fenômenos sociais. Esse debate não é recente, e são diversificados os parâmetros de interpretação de acordo com as diversas orientações pessoais e subjetivas e que são “função-fim” ou teleológica e função-necessidade como fato social, sendo alguns dos exemplos dessas possibilidades.
A função social está relacionada também com o dever de socialidade, de urbanidade, o dever de respeitar o espaço do outro, a exemplo do que irá se discutir mais adiante em seção própria que aborda o direito de vizinhança.
Com relação ao direito de propriedade, a função, representa em predispô-la visando alcançar o bem comum. Dessa forma, segundo Herrera ((2010, p.372), a função social é uma qualidade, indeclinável, da propriedade de servir ao titular da coisa, que poderá ter seu uso, gozo e fruição, mas observando o direito da coletividade de possuir estes mesmos direitos, caso seu titular não proporcionar uma adequada utilidade ao bem, em que representa destinatário inicial.
Frise-se que a função social da propriedade não se encontra somente regulada pelo conjunto de normas, mas, também, por meio de um sistema jurídico complexo, ao consagrar a propriedade privada e seu atendimento à função social, pertencente a uma ordem econômica, ambiental e urbanística, visando proporcionar o equilíbrio do convívio social da coletividade, superando a mera esfera do particular.
A função social como limitadora da propriedade não salta aos olhos imediatamente no direito de vizinhança, mas ao se focar no bem da vida denominado meio ambiente, lembrando que tal bem compreende o meio ambiente natural e artificial, depara-se com um bem difuso que visa a sadia qualidade de vida da presente e das futuras gerações.
Deste modo, segundo Carvalho Neto (2009, p.255) mais do que apenas uma função social, pode-se buscar no núcleo do Direito de Vizinhança a função sócio ambiental, como um de seus naturais desdobramentos em face das transformações pelas quais tem passado o planeta.
Visualizar tal desdobramento é admitir a alteração estrutural no direito de propriedade de modo que passe a acompanhar as mudanças das relações sociais, cuidando-se de um direito que também se amolde aos objetivos socioambientais, que passam a informar as normas relativas a seu uso, gozo e fruição.
Nesse sentido, Silva (2018, p.65) aponta para a obscuridade que tem sofrido o princípio da função social da propriedade, segundo ele “mal definido na doutrina brasileira” em função da confusão que se faz dele com os sistemas de limitação da propriedade.
Para o jurista, tais limitações não se confundem com o princípio em tela, uma vez que este diz respeito à estrutura do próprio direito, enquanto que as limitações se relacionam ao exercício do direito.
O atual exercício do direito pelo proprietário se sujeita aos interesses da comunidade. Assim, segundo Silva (2018, p.66), as normas civis regulamentadoras das relações entre vizinhos objetivam evitar o uso nocivo da propriedade em prejuízo de outrem. Disso decorre que não observar a legislação urbanística indica a utilização inadequada da propriedade.
Entretanto, não se pode unificar o direito de vizinhança com as normas de uso e ocupação do solo, pois está-se a falar de coisas distintas: uma trata das regras de relação entre vizinhos, a outra regulamenta a utilização da propriedade em função da coletividade, e, nesse aspecto estaria regulado especialmente pela Lei Federal 10.257, de 10.07.2001, o Estatuto da Cidade.
Não é o caso, nesse estudo, de atenção detalhada sobre o tema ambiental que decorre do direito de vizinhança, no entanto, cumpre chamar a atenção para o fato de que as relações entre vizinhos se agigantam a ponto de se apropriarem da responsabilidade por interesses difusos e coletivos, inclusive em respeito às futuras gerações.
Esta talvez seja a principal inovação para a qual deve apontar a codificação infraconstitucional, senão expressamente nos dispositivos que dizem respeito ao direito de vizinhança, ao menos em estreita relação à interpretação conforme a Constituição, de acordo com princípios maiores que a inspiraram, a exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana.
3 DIREITO DE PROPRIEDADE FRENTE AO DIREITO DE VIZINHANÇA
Antes do Código Civil de 2002, tem-se que o direito de propriedade que anteriormente era desempenhado sem a presença de limitações em nível ambiental, de acordo com a legislação, caracterizava uma utilização predatória e não sustentável dos recursos naturais, restringido somente pelos direitos de vizinhança e pelas eventuais normas de política sanitária, caracterizando um domínio integral sobre sua propriedade, mas desencadeando uma crise ambiental. Assim, ao proprietário tudo era permitido, mesmo destruir sua propriedade, situação que, na atualidade, já foi superada. Dessa maneira, hoje não mais é permitido o uso da propriedade somente no próprio e exclusivo interesse do proprietário. Este exercício do direito de propriedade deve observar a sua função social, situando a propriedade como um direito que é delimitado pela obrigação para a sua utilização racional, sustentável e respeitando o direito do outro.
As relações travadas entre vizinhos são também denominadas de “relações jurídicas vicinais” e consubstanciam-se em restrições ao direito de propriedade com vistas à convivência social pacífica. Segundo Lôbo (2014, p.64), “os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis localizados próximos uns aos outros”. Para fins legais, vizinhos não são apenas os contíguos, mas aqueles que são afetados pela forma como o imóvel é usado. As normas que regem os direitos de vizinhança são preferencialmente normas cogentes, tendo em vista que os conflitos referentes a esta matéria tendem ao conflito e a aguçar os ânimos.
Em uma dimensão positiva, tem-se, ainda consoante ensinamento de Lôbo (2014) que vizinhos são aqueles que devem viver em harmonia no mesmo espaço, respeitando todos os direitos e deveres comuns. Nas palavras de Silvio Rodrigues (2002, p.119), o Direito de Vizinhança é composto por “[...] regras que ordenam não apenas a abstenção da prática de certos atos, como também de outros que implicam a sujeição do proprietário a uma invasão de sua órbita dominial”.
Trata-se de regras de civilidade e obrigações que regem a vida cotidiana, cujo feitio vem adquirindo novos contornos, há tempos, como é de se esperar em se constatando que as profundas transformações por que passa qualquer coletividade reflitam, incontinenti, nas relações de vizinhança (LÔBO, 2014, p.66).
Outra definição possível para o direito de vizinhança é que este representa uma ordenação do direito de propriedade de forma a permitir que diversas pessoas possam exercer seus respectivos deveres e direitos de propriedade sem que isso acarrete na lesão do direito do interesse de terceiros (FARIAS; ROSENVALD, 2019 p.553). Então, embora o direito de propriedade seja pleno, seja absoluto, ou, dito de outra forma, seja oponível, erga omnes, pode ser defendida em face de qualquer pessoa, embora ele seja o mais completo talvez dos direitos subjetivos, ainda assim ele tem limitações. Não existe um direito de propriedade absoluto no sentido de não ter limites no seu exercício. Esses limites são necessários justamente para que todos possam também exercer de forma harmônica os seus respectivos direitos proprietários.
Não se permite que quem quer que seja faça de sua propriedade um vetor de atos ilícitos em relação a terceiros. O ser humano é um ser social e como ser social que é tem o dever de socialidade. São muitos os problemas e conflitos que decorrem da proximidade de imóveis: discordância em demarcação do imóvel; invasão ao direito de privacidade, em razão, por exemplo, de janela direcionada à casa do vizinho, porém, sem respeitar a distância preconizada em lei; edificações fora das normas técnicas colocando em risco os imóveis confrontantes; acúmulo de sujeira fazendo surgir insetos transmissores de doenças, colocando em risco a saúde das pessoas que residem próximas; além de outros problemas que podem parecer pequenos, mas, que geram conflitos preocupantes como latidos de cachorros, música em volume elevado e muitas outras possibilidades.
O jurista Miguel Reale nas exposições do Novo Código Civil forneceu traços da importância da visão jurídico-social contida na norma Ao reconhecer o caráter “urgente e indispensável” da renovação dos códigos atuais em busca da superação do individualismo inspirador do Código então vigente, bem como admitir cada vez mais o Direito social “social em sua origem e em seu destino” de modo a que os valores coletivos assumam sua posição em relação aos valores individuais, com o fito de preservar-se a pessoa humana “sem privilégios e exclusivismos” (Carvalho Neto, 2009, p. 273). Tais inovações relacionais não parecem estar presentes no Código Civil de 2002. Em seu art. 1.229 mantém, praticamente, todas as disposições do Código anterior.
É certo que, nas palavras de Clóvis Beviláqua[1],
[...] se o historiador jurídico pode reatar os elos principais da evolução do direito, acompanhando as pegadas que ela foi gravando através da história, dos costumes e das instituições, é porque os estágios sucessivos se prendem uns aos outros, procedem, os mais recentes dos mais remotos (apud Carvalho Neto, 2009, p. 274).
Porém, se cabe ao historiador jurídico alinhavar tais estágios, não há como deixar de observar sua omissão no Código Civil de 2002 no tocante ao direito de vizinhança, aqui analisado. Isto se deve ao fato de que, ao não inovar, ele preservou regulações referentes a uma sociedade que se encontrava no início do século XX e, portanto, minimamente industrializada e muito distante das inovações, tecnológicas, econômicas e culturais existentes na atualidade, deixando de poder satisfazer integralmente às expectativas, anseios e necessidades da sociedade atual.
Cumpre elencar, de forma sucinta, o rol de temas considerados neste artigo como não inovadores pelo Código Civil de 2002, no que diz respeito ao Direito de Vizinhança.
Inicie-se com a parte que trata “Das Árvores Limítrofes”, desprovida de maiores complexidades, uma vez que, considerando-se, por exemplo, um conflito decorrente da existência de uma árvore cujo tronco estiver na linha divisória entre os vizinhos confinantes, essa se presumirá pertencente a todos[2].
O confinante não será prejudicado por invasão de galhos das árvores limítrofes, pois o art. 1.283 permite o corte até o plano vertical[3]. Porém, quanto aos frutos, estes são pertencentes ao proprietário do terreno onde estes caírem[4].
A Passagem Forçada, que não expressa o sentido literal de sua nomenclatura, surge quando o dono de um prédio desprovido de acesso à “via pública, nascente ou porto”, tem o direito de exigir do vizinho que lhe dê passagem. Isto deve ser feito, entretanto, mediante indenização[5], pois, analisando o Direito das Obrigações, pode-se constatar que ninguém pode sofrer prejuízo algum sem que seja devidamente indenizado, independente da boa ou má-fé.
Desse modo, conclui-se que todo proprietário de um imóvel tem direito ao exercício de poder sobre coisa alheia e vizinha se necessário e sem que cause prejuízo. Cumpre observar que o vizinho responsável por dar a passagem será aquele cuja propriedade desfrutar de maior facilidade em relação aos demais vizinhos e esse é o critério, pois não será dada passagem simplesmente por conveniência ou por escolha, e sim pela natural condição de se prestar facilmente à passagem[6].
Prosseguindo, deve o vizinho aceitar a passagem de cabos e tubulações, sempre mediante indenização, podendo exercer o direito de preservar a segurança de sua propriedade[7].
Com relação às águas, o dono ou possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas oriundas do superior[8], mas nada foi expresso a respeito do direito do vizinho inferior sobre a água que passa por seu terreno. Esta situação gera um questionamento muito razoável se imaginar-se, por exemplo, um imóvel inferior que constantemente receba água e a desperdice naturalmente até que passe a pensar em aproveitá-la de algum modo e surja-lhe a ideia de plantar uma horta em sua propriedade, utilizando-se da água advinda do imóvel superior para irrigação. A questão é se o proprietário do imóvel superior poderá ou não cobrar por isso.
Ainda com relação às águas, é construção doutrinária e jurisprudencial que a água recebida e tolerada pelo proprietário do imóvel inferior seja considerada como um bem “desperdiçado” e “abandonado”, cabendo-lhe dar à água o fim que desejar, desde que, obviamente, não a utilize de modo prejudicial a outrem (LÔBO, 2014, p.111).
O Código Civil de 2002 trata, também, do Direito de Tapagem[9] e dos limites entre os prédios.
O proprietário poderá constranger seu confinante a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo seu prédio urbano ou rural.
O proprietário de um terreno terá o direito de construir como desejar, respeitados o direito dos vizinhos e o plano diretor da cidade[10].
Por fim, cite-se a discussão de possibilidade de excluir o condômino por comportamento antissocial reiterado. Como exemplos de comportamento antissocial do condômino podem-se citar: uso da unidade como prostíbulo, casa de jogo, barulho excessivo que perturba o sossego dos demais moradores, agressão aos funcionários e síndico do prédio, entre outros. Nesse sentido, a jurisprudência ainda se mostra divergente: parte entende que neste caso há o predomínio do direito de propriedade e do princípio da dignidade da pessoa humana, ao passo que outra parcela acredita que é possível a exclusão do condômino em razão da primazia do princípio da função social da propriedade, que preceitua que é o direito da coletividade se sobrepõe ao direito individual e neste caso, o direito à saúde, ao sossego, à segurança e aos bons costumes da coletividade restam prejudicados.
Não obstante ainda não restar pacificada a discordância jurisprudencial, não há dúvidas sobre a possibilidade de aplicar e majorar as multas previstas nos artigos 1.336 § 2º e 1.337 do Código Civil devido a comportamento antissocial.
A despeito das evidentes distinções entre os institutos, segundo Lôbo (2014), em qualquer hipótese no Direito de Vizinhança, deverão ser sempre observados os princípios contidos na parte geral do Código Civil de 2002: os princípios constitucionais, os princípios gerais do direito e os bons costumes. Resta, portanto, como imperiosa a necessidade do exercício da urbanidade, civilidade, empatia e alteridade, atributos que só estarão acessíveis a uma sociedade educada para o pleno exercício do direito.
3.1 A função social do direito e a importância da educação para a urbanidade
Dado o seu aspecto plurissignificativo, subjetividade e relativização, seria de alta civilidade se o Direito de Vizinhança não se limitasse ou, melhor, como entende Gonçalves (2019), não limitasse sua vida e exercício aos pisos e paredes meias e fosse extensivo formador de uma camaradagem de cidade, de país, de continente aponto de alcançar-se amplamente sua função socioambiental.
A respeito dos conflitos latentes da proximidade entre os prédios, Viana (2003, p.207) alerta para a razão pela qual atua o direito, “impondo limites recíprocos, visando a estabilidade e a harmonia, que é uma exigência da vida social”. Prossegue apontando para a disparidade entre o senso moral das pessoas, os diferentes níveis de educação, de urbanidade, de civilidade, entre outros fatores que permitem dizer que “não são poucos aqueles que só têm olhos para suas conveniências e interesses, pouco se importando com as dificuldades e problemas alheios”.
Com a evolução da sociedade contemporânea, há um número cada vez maior de conflitos de interesses não adequadamente solucionados, ou sequer submetidos à apreciação jurisdicional. De um lado, os conflitos de natureza metaindividual, cada vez mais comuns numa sociedade de massa e dificilmente tratáveis pela tradicional processualística de caráter individualista, de outro, o alto custo do processo e a burocracia da justiça levam a sugerir à atuação muito mais educativa e pedagógica do Direito no que tange a algo tão basilar como a convivência social humana (CARVALHO NETO, 2009).
Neste ponto, é pertinente trazer os ensinamentos de Piaget (1974, p.38-39) ao dissertar sobre o direito à educação intelectual e moral como algo que vai muito além de um direito à aquisição de conhecimentos ou um direito a escutar ou ainda, uma obrigação a cumprir, por tratar-se de um “direito a forjar determinados instrumentos espirituais, mais preciosos que quaisquer outros, e cuja construção requer uma ambiência social específica, constituída não apenas de submissão”.
Prossegue o mestre em educação concluindo ser a educação, mais que uma formação, uma “condição formadora necessária ao próprio desenvolvimento natural” e, daí decorre que, não basta a proclamação do direito à educação para toda pessoa humana, o que ele chama de “psicologia individualista tributária do senso comum” (PIAGET, 1974, p.39), portanto, o fator social ou educativo constitui uma condição do desenvolvimento.
Destarte é a natureza psicobiológica do indivíduo a garantia de que ao atingir determinado nível de desenvolvimento já elevado, esse indivíduo terá também o direito de ser iniciado pela sociedade nas tradições culturais e morais. A própria pedagogia, que hodiernamente é considerada a ciência da Educação, concebe que “a educação é um fenômeno social e universal, sendo uma atividade humana necessária a existência e funcionamento de todas as sociedades” (SOARES, 1981, p.141).
Isso faz com que cada sociedade tenha em suas mãos a responsabilidade pela formação dos indivíduos, auxiliando no desenvolvimento de suas capacidades físicas e espirituais, preparando-os para a participação ativa e transformadora presente nas várias instâncias da vida social.
Embora em sentido estrito a educação aconteça em escolas e instituições com a finalidade explícita de instruir e ensinar a partir de uma consciência previamente planejada (TEIXEIRA, 1996), em sentido amplo, a educação pode ser compreendida por meio dos processos formativos que ocorrem no meio social e que envolvem necessária e inevitavelmente os indivíduos, apenas pelo fato de existirem e ali estarem inseridos.
O educador brasileiro Anísio Teixeira (1996, p.60-61), com muita propriedade, sustenta que o direito à educação um direito de todos, não somente porque já não se trata mais apenas de um processo de especialização específico para o desenvolvimento de certas funções na sociedade, mas por ser a educação um “interesse público a ser promovido pela lei”.
É indubitável que, do mesmo modo que as demais ciências humanas têm contribuído com as diferentes acepções de educação, também o Direito desfruta de todas as condições de contribuir para a educação.
Para Álvaro Melo Filho (1983, p.54), admitindo o direito educacional como disciplina autônoma, tal direito poderia ser entendido como “um conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos sistematizados que objetivem disciplinar o comportamento humano relacionado à educação”.
Desse modo, admite um direito educacional que vem se impondo inclusive como matéria curricular e como disciplina autônoma a ponto de se distinguir inteiramente de outras disciplinas jurídicas.
Por fim, sempre que se fizer referência ao sistema de fontes informativas do Direito, está-se falando também dos tratados e convenções internacionais, de onde, particularmente no que diz respeito à internacionalização do direito à educação, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris, em 10.12.1948, que inclui no seu texto a universalização desse direito, em seu art. XXVI, 2:
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (ONU, 1948, s.p).
Valores tão universais como compreensão, tolerância e amizade devem começar a ser praticados no próprio quintal e não resta dúvida de que é função do Direito e dever do Estado atuar ativamente na promoção de tais valores, inerentes ao Direito de Vizinhança e expressamente universalizados. Todavia, sem imiscuir na educação, só restará a exaustiva e ineficiente produção normativa visando tutelar de forma coercitiva o que de bom grado seria praticado por uma sociedade naturalmente civilizada.
4 CONCLUSÃO
Diante do estudo apresentado, concluímos que o Código Civil de 2002, a despeito da cronologia de sua tramitação, regula o direito de propriedade impondo-lhe limitações e restrições, no intuito de atender à sua função social, garantida pela Constituição Federal de 1988, trazendo ainda normas de caráter estrutural em consonância com a função socioambiental da propriedade.
Tais restrições emergem dos direitos de vizinhança, que impõem legalmente obrigações recíprocas entre vizinhos, condicionando a utilização da propriedade a regras de comportamento que dizem respeito intimamente à civilidade e urbanidade. De tal modo que, se o mau uso da propriedade estiver associado à infração da garantia constitucional e às diretrizes traçadas pela política de desenvolvimento urbano e havendo ofensa aos bens jurídicos tutelados, ou seja, a segurança, o sossego e a saúde dos vizinhos, o ofensor incorrerá no dever de indenizar.
Para que se configure a ofensa, dentro da subjetividade pertinente ao tema, observam-se critérios identificadores da normalidade ou anormalidade entre o uso regular e irregular da propriedade.
Literalmente, a tênue inovação do Código Civil, Lei 10.406/02 inclui o acréscimo, em seus artigos, daquilo que, no Código Civil de 1916, era baseado somente em doutrina e jurisprudência, no tocante ao mau uso da propriedade, da expressão “uso anormal da propriedade”. No mais, continuou apenas a assegurar o dever da reparação civil no que for anormal e excessivo no exercício de um direito que, uma vez violado, torna-se ilícito.
A despeito do § 1º de seu art. 1.228, conclui-se que, especificamente no tocante ao direito de vizinhança, o Código Civil de 2002 não logrou êxito no acompanhamento da evolução das relações sociais, ocasionada pelos rápidos avanços tecnológicos que, entre outros avanços, determinaram mudanças significativas nas questões relativas à vizinhança, inclusive de cunho ambiental. Cabe ao operador do direito a recomendação de interpretar o código conforme a Constituição da República sem relegar a segundo plano à ideia de função social a qual o texto constitucional dá muita ênfase ao ligar a expressão “social” à ideia de “promoção humana”.
Cabe ao operador do direito a recomendação de interpretar o código conforme a Constituição da República sem relegar a segundo plano à ideia de função social a qual o texto constitucional dá muita ênfase ao ligar a expressão “social” à ideia de “promoção humana”.
Com essa interpretação, a função social assume o compromisso da persecução de relações sociais mais justas e pode-se obter a verdadeira sensibilidade social da expressão função social da propriedade, uma vez que a intenção é uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés da ideia tradicional e notadamente ineficaz da mera “garantia” do amplo acesso à propriedade.
Tal interpretação, conforme a Constituição, é provida de consistência, uma vez que conforma valores como os que emanam do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, do qual decorrem outros valores e objetivos a se alcançar, estabelecidos na Constituição, a exemplo da construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Entretanto, e por derradeiro, sugere-se que o tratamento adequado aos conflitos oriundos da vizinhança deva passar muito mais pela educação do que pela simples produção normativa. Se o Direito no Brasil assumisse sua responsabilidade na promoção de uma educação para a urbanidade, o Direito de Vizinhança sequer necessitaria de uma codificação que se alterasse com as evoluções nas relações sociais, uma vez que uma sociedade instruída não necessitará de leis para assegurar valores como a compreensão, a tolerância e amizade.
REFERÊNCIAS
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[1] Obra original: BEVILACQUA, Clovis. Resumo das lições de Legislação comparada sobre o direito privado. Bahia: Livraria Magalhães, 1897.
[2] Art. 1.282. A árvore, cujo tronco estiver na linha divisória, presume-se pertencer em comum aos donos dos prédios confinantes.
[3] Art. 1.283. As raízes e os ramos de árvore que ultrapassarem a estrema do prédio, poderão ser cortadas, até o plano vertical, pelo proprietário do terreno invadido.
[4] Art. 1.284. Os frutos caídos de árvores do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular.
[5] Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
[6] Art. 1.285, § 1º. Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e mais facilmente se prestar à passagem.
[7] Art. 1.286. Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviço de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa.
[8] A questão das águas é regulada nos arts. 1.288 a 1.296.
[9] CC/2002, arts. 1.297-1.298.
[10] CC/2002, arts. 1.299-1.313.
Graduanda do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana de Manaus-FAMETRO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Thais Paiva. Direito de vizinhança e comportamento antissocial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2019, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53848/direito-de-vizinhana-e-comportamento-antissocial. Acesso em: 23 dez 2024.
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