RESUMO: O presente estudo visa analisar a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 646721/RS e 878694/MG, ambos de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, especialmente em relação a infração à dignidade da pessoa humana, da isonomia, da proporcionalidade e da vedação ao retrocesso.
PALAVRAS-CHAVE: sucessão, união estável, casamento, inconstitucionalidade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ANÁLISE CRÍTICA A RESPEITO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A distinção trazida pelo Código Civil acerca da ordem de vocação hereditária e diferenciação no regime sucessória entre cônjuges e companheiros sempre mereceu fundadas críticas doutrinárias a respeito da sua constitucionalidade.
Aparentemente o Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 646721/RS e 878694/MG, ambos de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, colocou fim à controvérsia, afirmando que a diferenciação de regimes sucessórios ofende a Constituição Federal e nas diversas espécies de família por ela asseguradas.
Pretende-se abordar a temática exposta alhures a partir das razões de decidir do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, bem como com base nas argumentações doutrinárias contrárias a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil.
A relevância do tema é inquestionável, especialmente em virtude do impacto na realidade social subjacente no reconhecimento da inconstitucionalidade na diferenciação dos regimes sucessórios daqueles que contraíram matrimônio e que convivem em união estável.
2. ANÁLISE CRÍTICA A RESPEITO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL
2.1. A SUCESSÃO LEGÍTIMA
O Direito das Sucessões corresponde ao derradeiro Livro da atual Codificação Civil, assim como o foi no Código Civil de 1916. Ao conceituar o instituto Diniz (2013, p. 17) estabelece o direito das sucessões como o “complexo de disposições jurídicas que regem a transmissão de bens ou valores e dívidas do falecido, ou seja, a transmissão do ativo e do passivo do de cujus ao herdeiro”.
Cabe consignar que o direito à herança é direito fundamental assegurado pela Constituição da República de 1988 (art. 5º, inciso XXX) e a principal razão de existir da sucessão causa mortis consiste no postulado da continuidade da pessoa humana, consoante leciona Ascensão (2000, p. 13):
O Direito das Sucessões realiza a finalidade institucional de dar a continuidade possível ao descontínuo causado pela morte.
A continuidade a que tende o Direito das Sucessões manifesta-se por uma pluralidade de pontos de vista.
No plano individual, ele procura assegurar finalidades próprias do autor da sucessão, mesmo para além do desaparecimento deste. Basta pensar na relevância do testamento.
A continuidade deixa marca forte na figura do herdeiro. Veremos que este é concebido ainda hoje como um continuador pessoal do autor da herança, ou de cujus. Este aspecto tem a sua manifestação mais alta na figura do herdeiro legitimário.
Mas tão importante como estas é a continuidade na vida social. O falecido participou desta, fez contratos, contraiu dívidas... Não seria razoável que tudo se quebrasse com a morte, frustrando os contraentes. É necessário, para evitar sobressaltos na vida social, assegurar que os centros de interesses criados à volta do autor da sucessão prossigam quanto possível sem fracturas para além da morte deste.
Consoante expressa disposição legal, a sucessão se considera aberta com a morte (real ou presumida) da pessoa humana e a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (artigo 1.784 do Código Civil. Essa transmissão por efeito da lei ocorre automaticamente e consiste na consagração do princípio máximo do direito sucessório da droit de saisine.
De outra banda, impende destacar que, na vigência do Código Civil de 1916, não era a herança que se transmitia instantaneamente, mas sim o domínio e a posse da herança (artigo 1.576). Apesar de respeitável doutrina afirmar a inexistência de diferença prática da nova terminologia empregada, coaduna-se com a doutrina de Almeida (citado por TARTUCE; 2017; p. 26):
No entanto, há quem veja a questão de outra forma. Para José Luiz Gavião de Almeida, “não mais fala o Código em transmissão do domínio e da posse. Fala apenas em transmissão da herança, no que foi preciso. Conquanto a sucessão aberta seja considerada como um todo, o certo é que está composta de diferentes direitos. Alguns não se adaptavam ao direito de propriedade, pelo que inconciliáveis com a regra do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Se havia deixado o sucedido, por exemplo, enfiteuse, o que se transmitia, e imediato, era esse direito, não o domínio. E não ficava técnico falar em proprietário da enfiteuse, como parecia indicar o referido dispositivo” (Código..., 2003, v. XVIII, p. 30-31). Tem total razão o Professor Titular da USP e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Além dos direitos reais sobre coisa alheia, podem ser citados os direitos de autor que, embora transmitidos, não mantêm relação com a propriedade ou a posse, conforme explicado no Volume 4 da presente coleção. Como ali está defendido e aqui deve ser reafirmado, a propriedade e a posse somente recaem sobre bens corpóreos ou materiais, e não sobre bens imateriais, caso dos direitos de autor.
Dentre as diversas modalidades de sucessão e considerando o objetivo do presente estudo, cumpre consignar que a sucessão legítima decorre da lei, que presume a vontade do de cujus e deixar os bens para os herdeiros, e anuncia uma ordem de vocação hereditária para os que eram casados (artigo 1.829 do Código Civil) e para àqueles que viviam em união estável (artigo 1.790 do Código Civil).
O Código Reale inovou na ordem jurídica ao trazer a possibilidade de concorrência na sucessão legítima ao cônjuge e ao companheiro, porém diferenciando o trato da matéria se os indivíduos eram casados ou permaneciam em união estável, ainda que informal.
2.2. DAS REGRAS GERAIS SUCESSÓRIAS APLICÁVEIS AO CÔNJUGE
O artigo 1.829 do Código Civil anuncia a ordem de vocação hereditária e as hipóteses em que o cônjuge será herdeiro em concorrência com os demais herdeiros necessários, in verbis:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
Infere-se que o cônjuge concorrerá com os descendentes do falecido a depender do regime de bens adotado no matrimônio. A propósito assim dispõe o Enunciado n. 609 da VII Jornada de Direito Civil: “o regime de bens no casamento somente interfere na concorrência sucessória do cônjuge com descendentes do falecido”.
Nesse diapasão, apesar da criticada redação do inciso I do supramencionado dispositivo legal, depreende-se que o cônjuge supérstite herda em concorrência com os descendentes se fosse casado com o de cujus nos regimes de comunhão parcial de bens, em existindo bens particulares do falecido, de participação final nos aquestos e separação convencional de bens, decorrente de pacto antenupcial.
Na hipótese em que concorrer com os ascendentes do falecido inexiste importância para o regime de bens adotado, uma vez que sempre será herdeiro em concorrência com a linha ascendente.
Destarte, conclui-se que o cônjuge será herdeiro necessário e concorrerá com os descendentes, a depender do regime de bens existente entre o cônjuge sobrevivente e o falecido, bem como sempre herdará se concorrer com os ascendentes.
2.3. DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO
A união estável era concebida como a união prolongada do homem com a mulher, sem casamento, caracterizando uma união livre e equiparada ao concubinato. Frisa Gonçalves (2017, p. 207) que:
Para os efeitos legais, não apenas eram concubinos os que mantinham vida marital sem serem casados, senão também os que haviam contraído matrimônio não reconhecido legalmente, por mais respeitável que fosse perante a consciência dos contraentes, como sucede com o casamento religioso, por exemplo.
A união livre difere do casamento, sobretudo pela liberdade de descumprir os deveres a este inerentes. Por isso, a doutrina clássica esclarece que o estado de concubinato pode ser rompido a qualquer instante, seja qual for o tempo de sua duração, sem que ao concubino abandonado assista direito a indenização pelo simples fato da ruptura.
A Constituição da República de 1988 imprimiu novo marco à relação de companheirismo, reconhecendo-a como modalidade familiar e constituindo importante mudança de paradigma em relação ao conceito de família, senão vejamos:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Como o Código Civil de 1916 não previa a sucessão do companheiro se demonstrou necessária sua regulamentação, a qual adveio com as Leis ns. 8.971/1994 e 9.278/1996, as quais igualaram as regras sucessórias da união estável àquelas aplicadas ao cônjuge sobrevivente (que não herdava em concorrência com os descendentes e ascendentes), dentre outras modificações, consoante explana Gagliano (2017, pp. 276/277):
Coube à Constituição Federal de 1988, porém, imprimir novo significado à relação de companheirismo, reconhecendo-a como modalidade familiar, o que passou a influenciar a legislação infraconstitucional posterior.
Nessa esteira, no campo sucessório, a partir da década de 1990, passou a ter o(a) companheiro(a) uma proteção legal, nos planos do Direito de Família e Sucessório, até então inexistente.
A Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, nesse tema, garantiu ao convivente a meação dos bens comuns para os quais tenha contribuído para a aquisição, de forma direta ou indireta, ainda que em nome exclusivo do falecido (art. 3.º), bem como estabeleceu o direito ao usufruto de parte dos bens do falecido, além de incluir o companheiro sobrevivente na terceira ordem da vocação hereditária (art. 2.º).
Já a Lei n. 9.278/96, em seu art. 7.º, parágrafo único, garantiu o direito real de habitação ao convivente sobrevivente, enquanto vivesse ou não constituísse nova união ou casamento, em relação ao imóvel destinado à residência familiar.
Assim, o que se esperaria da nova codificação civil era que ela viesse, finalmente, igualar o tratamento entre cônjuges e companheiros, evitando qualquer alegação de tratamento discriminatório.
Verifica-se, dessa forma, que as citadas normas referentes ao regime sucessório nas uniões estáveis concretizaram, de forma progressiva, o mandamento constitucional atinente à equiparação da união estável como espécie de entidade familiar que merece tutela do ordenamento jurídico.
Contudo, a progressiva evolução da sistemática do regime sucessório do companheiro foi interrompida com a Codificação de 2002, a qual representou verdadeiro retrocesso na mudança de paradigma representada pela previsão constitucional de proteção à união estável como forma de entidade familiar.
Gagliano (2017, p. 278) entende que “trata-se de tratamento demeritório da união estável em face do matrimônio, com uma disciplina que a desprestigia como forma de relação afetiva”.
Em relação à sucessão do cônjuge em concorrência com os demais herdeiros necessários, o Código Civil preconizou o seguinte:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Inicialmente se destaca que o caput do dispositivo legal estabelece que o companheiro somente participará da sucessão do outro em relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável.
Nesse sentido, segundo Golçalves (2017, pp. 211/212):
O art. 1.790 do Código Civil, inexplicavelmente alocado nas disposições gerais do título referente ao direito das sucessões, e não no capítulo da vocação hereditária, preceitua que a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável, o companheiro participa da sucessão do outro sem receber, no entanto, o mesmo tratamento do cônjuge sobrevivente, que tem maior participação na herança e foi incluído no rol dos herdeiros necessários, ao lado dos descendentes e ascendentes.
Se o companheiro concorrer à herança, por exemplo, com colaterais, terá direito a somente um terço desta. Enquanto as citadas leis que disciplinaram a união estável caminharam no sentido de igualar os direitos do companheiro aos do cônjuge, o Código Civil de 2002 tomou direção oposta.
[...]
Em linhas gerais, o dispositivo restringe o direito do companheiro aos bens que tenham sido adquiridos onerosamente na vigência da união estável; faz distinção entre a concorrência do companheiro com filhos comuns ou só do falecido; prevê o direito apenas à metade do que couber aos que descenderem somente do autor da herança e estabelece um terço na concorrência com herdeiros de outras classes que não os descendentes do falecido; não beneficia o companheiro com quinhão mínimo na concorrência com os demais herdeiros nem o inclui no rol dos herdeiros necessários; concorre com um terço também com os colaterais e só é chamado a recolher a totalidade da herança na falta destes. O cônjuge, porém, prefere aos parentes da linha transversal, com exclusividade.
Infere-se, dessa forma, que o Código Civil, na contramão do que estabelecido na Constituição Federal e na legislação posterior a essa, elencou dois regimes sucessórios distintos, com o cônjuge sendo herdeiro necessário e o companheiro não. Houve uma indevida espécie de hierarquização das espécies de família não prevista na Constituição da República e se o texto constitucional não as hierarquizou, não cabe ao legislador ou intérprete fazê-lo.
2.4. DA INCONSTITUCIONALIDADE NA DIFERENCIAÇÃO SUCESSÓRIA ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS
A aludida situação foi alvo de profundas críticas doutrinárias desde a concepção do Código Civil de 2002 e que, com o julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 646721/RS e 878694/MG, ambos de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, entabulou-se o entendimento acerca da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil e a diferenciação no regime sucessório existente entre a sucessão dos que eram casados ou viviam em união estável:
Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. [...] 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
(RE 878694, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-021 DIVULG 05-02-2018 PUBLIC 06-02-2018, sem grifos no original)
A Corte Constitucional entendeu que a Constituição da República trouxe uma mudança na concepção tradicional de família, a qual não se resume à ideia do casamento. A necessidade de um casamento formal deixou de ser fundamental para a caracterização de uma família, de modo que a intenção dos consortes de constituir família e a afetividade existente merece primazia. Destarte, a Carta Maior preconizou a existência de outras modalidades de família, inclusive àquela derivada da união estável.
Tendo isso em foco, consoante ensinam Farias e Rosenvald (2015, p. 281), “onde há proteção sucessória para o cônjuge, tem de existir, por igual, para o companheiro. Pensar diferente, nesse caso, importaria em colidir, frontalmente, com a Carta Maior, fazendo pouco de seus ideais solidários”.
A partir de uma interpretação do Direito Constitucional Civil, com a valorização da dignidade da pessoa humana e da repersonalização do Direito Civil, Tartuce (2017, p. 154), citando o voto do Minisitro Luís Roberto Barroso, aduz que:
[...] consagração da dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento jurídico e como um dos fundamentos da República brasileira (art. 1.º, III, CF/1988) foi o vetor e o ponto de virada para essa gradativa ressignificação da família. A Carta de 1988 inspirou a repersonalização do Direito Civil, fazendo com que as normas civilistas passassem a ser lidas a partir da premissa de que a pessoa humana é o centro das preocupações do Direito, que é dotada de dignidade e que constitui um fim em si próprio. A família passou, então, a ser compreendida juridicamente de forma funcionalizada, ou seja, como um instrumento (provavelmente o principal) para o desenvolvimento dos indivíduos e para a realização de seus projetos existenciais. Não é mais o indivíduo que deve servir à família, mas a família que deve servir ao indivíduo” (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 31.08.2015, com repercussão geral).
Um dos fundamentos para o reconhecimento da inconstitucionalidade do regime estabelecido pelo artigo 1.790 do Código Civil consiste na vedação ao retrocesso, uma vez que as disposições normativas das Leis n. 8.971/1994 e 9.278/1996 continham preceitos normativos mais favoráveis à sucessão da união estável.
Apesar do tratamento igualitário que se deve em matéria sucessória, o próprio Ministro Luís Roberto Barroso admite a existência de substanciais diferenças entre o casamento e a união estável, não podendo se falar em equiparação absoluta.
Didaticamente Tartuce (2015, p. 155) explica:
Iniciando-se pela interpretação semântica ou literal, firma a premissa segundo a qual a Constituição estabelece, de forma inequívoca, que a família tem especial proteção do Estado, sem que exista qualquer menção a um modelo de família que seja “mais ou menos merecedor desta proteção”.
Utilizando-se da interpretação teleológica, interroga quais seriam os fins sociais do art. 226 da Constituição Federal. Para o julgador, parece inequívoco que a finalidade da norma seria a de garantir a proteção das famílias como instrumento para a tutela dos seus membros, impedindo-se qualquer discriminação entre os indivíduos, unicamente como resultado do tipo de entidade familiar que constituírem.
Partindo para a interpretação histórica, o citado dispositivo da Constituição é inclusivo e não exclusivo ou segregativo, não havendo qualquer intuito de divisão ou fracionamento das famílias em primeira e segunda classe.
Por fim, pela interpretação sistemática, busca-se a unidade e a harmonia do sistema jurídico. Nesse contexto,“o legislador pode atribuir regimes jurídicos diversos ao casamento e à união estável. Todavia, como será detalhado adiante, a partir da interpretação conjunta de diversos dispositivos da Constituição de 1988, que trazem a noção de funcionalização da família, alcança-se uma segunda constatação importante: só será legítima a diferenciação de regimes entre casamento e união estável se não implicar hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção estatal conferido aos indivíduos”.
Retornando à análise da incompatibilidade material do dispositivo legal objeto do presente estudo, o Ministro Luís Roberto Barroso fundamentou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil em quatro principais argumentos, a saber: violação da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da proporcionalidade (na vertente da proibição da proteção deficiente) e vedação ao retrocesso.
Em relação à violação à isonomia e à dignidade da pessoa humana, esta que consiste em fundamento desta República e vetor axiológico de todo o ordenamento jurídico, há uma restrição à autonomia de optar pelo regime do casamento ou da união estável, porquanto o companheiro terá menos direitos sucessórios em relação ao cônjuge. Há uma indução, ainda que indireta, para aqueles que possuem união estável a optar pelo casamento, por receito que seus parceiros não possam gozar do regime sucessório adequado. O Ministro Barroso ainda afirma que:
53. Não há que se falar aqui que a diferença de regimes sucessórios decorreria da própria autonomia da vontade, já que conferiria aos indivíduos a possibilidade de escolher o sistema normativo (casamento ou união estável) que melhor se ajusta aos projetos de vida de cada um. O que a dignidade como autonomia protege é a possibilidade de opção entre um e outro tipo de entidade familiar, e não entre um e outro regime sucessório. Pensar que a autonomia de vontade do indivíduo referente à decisão de casar ou não casar se resume à escolha do regime sucessório é amesquinhar o instituto e, de forma geral, a ideia de vínculos afetivos e de solidariedade. É pensar de forma anacrônica e desprestigiar o valor intrínseco da família, restringindo-a a um aspecto meramente patrimonial, como costumava ocorrer anteriormente à Constituição de 1988.
54. Em verdade, a ideia de se prever em lei um regime sucessório impositivo parte justamente da concepção de que, independentemente da vontade do indivíduo em vida, o Estado deve fazer com que ao menos uma parcela de seu patrimônio seja distribuída aos familiares mais próximos no momento de sua morte, de modo a garantir meios de sustento para o núcleo familiar. E não faz sentido desproteger o companheiro na sucessão legítima apenas porque não optou pelo casamento. O fato de as uniões estáveis ocorrerem com maior frequência justamente nas classes menos favorecidas e esclarecidas da população apenas reforça o argumento da impossibilidade de distinguir tais regimes sucessórios, sob pena de prejudicar justamente aqueles que mais precisam da proteção estatal e sucessória. (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 31.08.2015, com repercussão geral, pp. 25/26)
Consoante ensina Tartuce (2015, p. 151) “demonstram que o legislador olhou para o casamento como uma instituição em posição hierárquica superior em relação à união estável, tese que nunca contou com o apoio deste autor, como antes foi aduzido. Assim, parece-nos que houve certa discriminação quanto à união estável”.
A vertente positiva do princípio da proporcionalidade, denominada de proibição da proteção deficiente pela doutrina alemã, também resta transgredida. Isso porque a norma questionada estabelece uma proteção deficiente ao princípio da dignidade da pessoa humana daquelas pessoas que convivem em união estável. Esclarece o Ministro Barroso que:
[...] A depender das circunstâncias, tal regime jurídico sucessório pode privar o companheiro supérstite dos recursos necessários para seguir com sua vida de forma digna. Porém, a deficiência da atuação estatal em favor da dignidade humana dos companheiros não é justificada pela tutela de nenhum outro interesse constitucional contraposto29. Conforme já analisado, não se pode defender uma preferência constitucional ao casamento para justificar a manutenção da norma do Código Civil menos protetiva da união estável em relação ao regime sucessório aplicável. À luz da Constituição de 1988, não há hierarquia entre as famílias e, por isso, não se pode desigualar o nível de proteção estatal a elas conferido. (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 31.08.2015, com repercussão geral, p. 26)
A infração à violação ao retrocesso assevera o Ministro Barroso que:
[...] Pois bem: não há dúvida de que o regime sucessório dos companheiros estabelecido pelo novo Código Civil representou uma involução desproporcional na proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos que vivem em uniões estáveis. Antes do CC/2002, o regime jurídico sucessório da união estável estabelecido pelas Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 era substancialmente igual àquele previsto para o casamento no CC/1916, então vigente. Cônjuges e companheiros ocupavam a mesma posição na ordem de vocação hereditária (ambos ficavam atrás dos descendentes e dos ascendentes), possuíam idêntico direito à meação, e ostentavam tanto o direito de usufruto, quanto o direito real de habitação. Tais leis, portanto, concretizaram o imperativo constitucional de proteção às famílias (independentemente de seu modo de constituição), previsto no art. 226 da Carta de 1988. 61. Porém, conforme exposto ao longo deste voto, o Código Civil de 2002 aprovou regulamentação alternativa que simplesmente anulou boa parte da proteção sucessória conferida pelas Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 aos companheiros. No que concerne a essa involução, convém destacar que a proposta de redação originária do artigo do CC/2002 que versava sobre regime sucessório foi elaborada em 1985, antes mesmo da edição da Constituição de 1988. Embora tenham transcorrido mais de quinze anos entre o projeto original da norma sobre o regime sucessório dos companheiros e a efetiva promulgação do Código Civil (em 2002), a proposta permaneceu praticamente inalterada. Não foram consideradas em sua elaboração nem a completa alteração dos paradigmas familiares pela nova Constituição, nem a igualação dos regimes sucessórios de cônjuges e companheiros pelas leis posteriores.
[...]
62. Percebe-se assim que, nesse aspecto, o Código Civil de 2002 foi anacrônico e representou um retrocesso vedado pela Constituição na proteção legal das famílias constituídas por união estável. O regime sucessório da união estável traçado pelo CC/2002 ignorou as grandes transformações promovidas pela CF/1988, que funcionalizou a família em favor do indivíduo, e, assim, jogou por terra a evolução legislativa infraconstitucional, que, seguindo a nova orientação constitucional, havia cuidado de aproximar os direitos de cônjuges e companheiros, tendo como norte a ideia de que ambos merecem igual proteção. 63. Fica claro, portanto, que o art. 1.790 do CC/2002 é incompatível com a Constituição Federal. Além da afronta à igualdade de hierarquia entre entidades familiares, extraída do art. 226 da Carta de 1988, violou outros três princípios constitucionais, (i) o da dignidade da pessoa humana, (ii) o da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e (iii) o da vedação ao retrocesso. (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 31.08.2015, com repercussão geral, pp. 28/30)
Especificamente em relação às desigualdades preconizadas pela Codificação Civil de 2002, esclarece Gonçalves (2017, p. 2013):
Embora o tratamento díspar da sucessão do companheiro tenha resultado de opção do legislador e não ofenda os cânones constitucionais, merece as críticas que lhe são endereçadas: a) por limitar a sucessão aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável; b) por repetir, no caso de concorrência com os descendentes, a indébita distinção entre descendentes exclusivos, só do autor da herança, e descendentes comuns, havidos da união entre o autor da herança e o companheiro; e c) por estabelecer a concorrência com os colaterais.
Não se compreende, realmente, como exclama EUCLIDES DE OLIVEIRA, “a limitação do direito hereditário do companheiro aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, quando se considera que o companheiro já tem direito de meação sobre tais bens, em face do regime da comunhão parcial previsto no art. 1.725 do Código Civil. Deveria beneficiar-se da herança, isto sim, apenas sobre os bens particulares do falecido, exatamente como se estabelece em favor do cônjuge sobrevivente (art. 1.829)”.
Com efeito, a concorrência se dará justamente nos bens a respeito dos quais o companheiro já é meeiro. Sendo assim, se o falecido não tiver adquirido nenhum bem na constância da união estável, ainda que tenha deixado valioso patrimônio formado anteriormente, o companheiro sobrevivente nada herdará, sejam quais forem os herdeiros eventualmente existentes.
Acerca do tema Hironaka (2011, p. 420) assevera que:
“[...] o art. 1.790 do CC restringiu a possibilidade de incidência do direito sucessório do companheiro à parcela patrimonial do monte partível que houvesse sido adquirido na constância da união estável, não se estendendo, portanto, àquela outra quota patrimonial relativa aos bens particulares do falecido, amealhados antes da evolução da vida em comum. A nova lei limitou e restringiu, assim, a incidência do direito a suceder do companheiro apenas àquela parcela de bens que houvessem sido adquiridos na constância da união estável a título oneroso. Que discriminação flagrante perpetuou o legislador, diante da idêntica hipótese, se a relação entre o falecido e o sobrevivente fosse uma relação de casamento, e não de união estável!”
Em simetria, Veloso (2010, p. 185) preceitua que a restrição dos bens adquiridos onerosamente na união estável prevista no artigo 1.790 do Código Civil não possui “[...] nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas [...]”.
Tartuce (2015, p. 152), citando Paulo Lôbo, nos ensina que:
Paulo Lôbo, citando a visão idêntica de Luiz Edson Fachin, também se filiava à tese de inconstitucionalidade de todo o art. 1.790 do Código Civil, com amparo nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, inciso III, CF/1988) e da igualdade (art. 5.º, caput, da CF/1988), “uma vez que, por meio da diferenciação entre os efeitos sucessórios da união estável e do casamento, dá menos (ou mais) condições (reais) de desenvolvimento a determinada pessoa tão somente pela escolha da entidade familiar, que dever ser livre e desvinculada de quaisquer aspectos patrimoniais, implicando negar a própria condição existencial de sujeitos concretos. Não há razão constitucional, lógica ou ética para tal discrime, em relação ao direito sucessório das pessoas, que tiveram a liberdade de escolha assegurada pela Constituição e não podem sofrer restrições de seus direitos em razão dessa escolha” (Direito..., 2013, p. 150).
Ademais, infere-se que o companheiro sobrevivente concorria com os colaterais até quarto grau na sucessão, o que comprova o tratamento desigual e infundado, porquanto posta “o companheiro em posição desfavorável no tocante a parentes longínquos, com os quais muitas vezes não se tem contato social” (Tartuce, 2017, p. 156).
Destarte, infere-se que o Código Civil inobservou a matéria constitucional acerca da consagração da união estável como modalidade de família. Ademais, regrediu no tratamento do tema, que até então era regido por duas leis infraconstitucionais, revogando-as e preconizando sucessão distinta e desvantajosa para o companheiro, sem qualquer razão aparente.
Consoante exposto alhures, a doutrina pátria há muito criticada a redação do artigo 1.790 do Còdigo Civil, reputando inconstitucional toda e qualquer distinção acerca do regime sucessório positivado aos cônjuges e aos companheiros.
Acertadamente o Supremo Tribunal Federal analisou a controvérsia e decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo legal em comento, por manifesta violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da proporcionalidade, no seu vetor da proibição à proteção deficiente e, outrossim, pela vedação ao retrocesso.
Não se olvida, consoante exposto pelo Ministro Luís Roberto Barroso, que existem diferenças entre o casamento e a união estável. Entretanto, inexistem motivos suficientes para promover uma hierarquização entre as diversas espécies de família constitucionalmente previstas e diferenciar o regime sucessório.
Por derradeiro, impende destacar que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, impacta diretamente na vivência afetiva daqueles que vivem em união estável, porquanto, com a isonomia de tratamento, possuem amplos direitos na sucessão causa mortis.
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Pós-Graduado em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduação em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito do Idoso – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Civil – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Anhanguera Uniderp. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ADRIANO, Daniel Dal Pont. Análise crítica a respeito da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2019, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53926/anlise-crtica-a-respeito-da-inconstitucionalidade-do-artigo-1-790-do-cdigo-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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