JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [1]
(Orientador)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo primordial analisar, na esfera do Processo Penal, a figura do juiz dentro do sistema acusatório, e do sistema inquisitório, assim como a inconstitucionalidade ou não do art. 156 do Código de Processo Penal, buscando corroborar que caracteriza um grande retrocesso a possibilidade de o magistrado instruir um processo, pelo fato da sua imparcialidade ser comprometida. Destarte, serão tratados aspectos dos sistemas jurisdicionais atuais, de modo preciso quanto à possibilidade de o magistrado elaborar provas de ofício no processo penal, quais os sistemas processuais penais atuais, e qual o modelo processual adotado pelo Brasil, e também no que diz respeito aos princípios processuais penais que configuram a relação processual e, para findar, a produção de prova em busca de uma verdade real no processo penal.
Palavras-chave: Código de Processo Penal. Sistemas Processuais Penais. Imparcialidade. Inconstitucionalidade.
Abstract: The main objective of this article is to analyze, in the Criminal Procedure, the figure of the judge within the accusatory system, and the inquisitory system, as well as the unconstitutionality or not of art. 156 of the Criminal Procedure Code, seeking to corroborate that a major setback is the possibility for the magistrate to prosecute a case because its impartiality is compromised. Thus, aspects of the current jurisdictional systems will be dealt with precisely as to the possibility of the magistrate elaborating evidence of office in criminal proceedings, what are the current criminal procedural systems, and what is the procedural model adopted by Brazil, and also as regards the criminal procedural principles that shape the procedural relationship and, finally, the production of evidence in search of real truth in criminal proceedings.
Keywords: Code of Criminal Procedure. Penal Procedural Systems. Impartiality. Unconstitutionality
Sumário: 1Introdução. 2 Os sistemas Processuais. 2.1 Sistema Inquisitório. 2.2 Sistema Acusatório. 2.3 Sistema Adotado no Brasil. 3 Princípios Norteadores do Processo Penal. 3.1 Princípio do Juiz Natural. 3.2 Princípio da Imparcialidade do Juiz. 3.3 Princípio do Contraditório e da ampla defesa. 4 a Figura do Juiz no Processo Penal. 4.1 Análises dos Poderes Instrutórios dos Magistrados e da inconstitucionalidade do Código de Processo Penal. 4.2 O Juiz Inquisidor e a busca da verdade real ao produzir provas no Processo Penal. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Para uma melhor compreensão do processo penal brasileiro, é necessário o conhecimento de seus sistemas processuais, sendo de suma importância que estes sistemas estejam alinhados com a Constituição Federal de 1988, respeitando os princípios e garantias fundamentais. A Constituição Federal de 1988 trouxe expressamente em seu diploma jurídico a função das partes que ensejam toda relação processual, sendo que todo o processo é conduzido através da figura do magistrado. Diante disso, o sistema processual brasileiro divide-se em acusatório e inquisitório, no qual o presente estudo traz a possibilidade de produção de provas pelo juiz, característica marcante do sistema inquisitório, frente ao sistema acusatório, no qual a carga probatória está nas mãos das partes no processo, mostrando os possíveis reflexos dentro do processo.
Outro ponto fundamental desse estudo é a pretensão de se obter um posicionamento concreto acerca da inconstitucionalidade ou não do artigo 156 de Código de Processo Penal, que autoriza ao juiz determinar de oficio, quando a instrução está em curso, ou antes mesmo de proferir a sentença, a realização de deliberações com a finalidade de dirimir algum ponto considerado de grande relevância no processo criminal.
Portanto, o presente estudo tem como problema de pesquisa a discussão jurídica em torno do fato do juiz ao ter toda carga probatória em suas mãos causar um desequilíbrio processual, e em consequência disso, desrespeitar os princípios basilares do Direito Processual e também violar as garantias trazidas pela Constituição Federal de 1988. Assim, o presente trabalho tem como objetivo compreender a iniciativa probatória do juiz no processo penal, frente aos dois sistemas processuais, acusatório e inquisitório, analisando diante disso, as garantias que são violadas quando o magistrado age de ofício, sem observar e respeitar princípios basilares como o da imparcialidade, do contraditório, da ampla defesa, e não tão menos importante o do juiz natural. É válido ressaltar que o presente estudo foi desenvolvido por meio de uma pesquisa bibliográfica, utilizando a abordagem dedutiva.
A relevância social do presente trabalho mostra-se na demonstração que a participação de ofício do juiz na produção de provas, ou seja, a atribuição de poderes instrutórios ao magistrado, causa um desequilíbrio na relação jurídica processual entre a acusação e a defesa do acusado, e viola as garantias e princípios jurídicos inerentes a todos os cidadãos. Além da grande relevância para o ordenamento jurídico, que terá uma análise com clareza dos fundamentos, e da legitimidade de dispositivos do Código de Processo Penal no que diz respeito à autoridade judiciária poder ou não produzir provas de ofício, sem ofender as garantias processuais.
No segundo capítulo deste trabalho, aborda-se a parte conceitual e introdutória, trazendo a definição de cada sistema processual, suas características e finalidades, e, por conseguinte, traz o sistema penal adotado no Brasil. Já terceiro capítulo do presente trabalho se ocupa dos princípios que regem a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Penal, e que são inerentes as partes durante a relação processual, por trazer garantias para as mesmas. E por fim, o capitulo quatro, que aborda a figura do juiz no processo penal, e as possíveis consequências advindas quando o magistrado age de ofício em busca de uma verdade real no processo, no qual o juiz inquisidor, antes de realizar uma análise no caso, já traz consigo um julgamento, buscando apenas fatos para comprovar seu julgamento pré-definido acerca da materialidade e autoria do delito.
2 OS SISTEMAS PROCESSUAIS
De acordo com o entendimento doutrinário de RANGEL (2015, p.47):
Sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto. O Estado deve tornar efetiva a ordem normativa penal, assegurando a aplicação de suas regras e de seus preceitos básicos, e esta aplicação somente poderá ser feita através do processo, que deve se revestir, em princípio, de duas formas: a inquisitiva e a acusatória.
Os sistemas processuais penais são métodos para solucionar os litígios, sendo que devem ser asseguradas todas as regras constitucionais, além dos princípios norteadores para que a decisão do juiz seja de forma justa, e imparcial. Assim, duas são as formas através do qual esse processo deve seguir: a acusatória e a inquisitória.
1.1 Sistema Inquisitório
O que melhor caracteriza o sistema inquisitorial se enseja no acúmulo de funções para apenas uma pessoa acusar, defender e julgar, ou seja, o juiz. O referido acúmulo de funções caracteriza-se pelo motivo que o juiz inicia a busca penal, averiguando e investigando, e dando valor às provas, e por seguinte faz o julgamento do caso. Em consequência a isso, não se resta dúvidas da imparcialidade do juiz. Desse modo, elucida Aury Lopes Júnior (2017, p. 166):
O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um duelo leal e franco entre o acusador e o acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação.
Dessa forma, esclarece FEITOZA (2008, p.33), que o sistema inquisitório: “correspondia à concepção de um poder central absoluto, com a centralização de todos os aspectos do poder soberano (legislação, administração e jurisdição) em uma única pessoa”.
Ainda no que consiste a características desse sistema, não menos importante se dá na falta do contraditório e da ampla defesa, transformando o acusado em apenas em um objeto de investigação. Nesse sistema o acusado não possui nenhuma garantia, sem debates e nem tampouco a publicidade dos atos. Resultando em um processo sigiloso, onde o povo não obtém nenhuma informação ou explicação, aceitando apenas a verdade do juiz-inquisidor.
Nesse sentido, esse sistema inquisitório é totalmente regido pelo sigilo, sempre escrito, não existindo o contraditório, e apenas uma pessoa exerce a função de acusar, defender e julgar. O indivíduo réu nesse sistema é diminuído minimamente a um objeto de perseguição, com apenas um objetivo que é buscar pela confissão, a prova mãe e considerada mais importante. (CAPEZ, 2018).
Nesse sistema o juiz se opera de múltiplos meios possíveis e necessários, apenas no objetivo de condenar e punis o acusado. Destarte, o acusado se encontra ao arbítrio de juiz-inquisidor que se encontra intencionado de fazer o que for necessário para a condenação do réu, além disso, no período da origem deste modelo processual, o meio mais comum usado era a tortura. A motivação para tanto se dava em razão do sistema de prova adotado e utilizado nesse sistema, no qual, as provas tinham valoração conforme critérios antecedentes estipulados, dessa forma, convertendo-se em prova capaz, unicamente, para tornar o acusado condenado.
Assim, o sistema inquisitorial é rigoroso, secreto, que se utiliza da tortura como uma forma de alcance para a elucidação dos fatos e de se obter a finalidade do processo penal, excluindo claramente o contraditório, permanecendo na mão de uma única pessoa, o juiz inquisidor, as funções do devido processo legal, não tratando o acusado como um sujeito detentor de direitos, e sim como um mero objeto do processo. (BRASILEIRO, 2019).
O sistema inquisitório tem como base, unicamente, a busca pela verdade real ou absoluta, que para fundamentar o sigilo, e a inexistência de contraditório e ampla defesa, o juiz busca a verdade por todos os meios que sejam possíveis, infringindo direitos do acusado.
Verifica-se, no entanto, a clara e cristalina incompatibilidade do sistema inquisitivo com as garantias constitucionais, que são obrigatoriamente necessárias em um Estado Democrático de Direito. Isto posto, é incabível e plenamente inaceitável que nas legislações modernas sejam acolhidas com sistemas com características inquisitorial, devendo assim, ser respeitado e assegurado aos cidadãos o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
1.2 Sistema Acusatório
Em oposição ao sistema inquisitório, o sistema acusatório é o sistema processual adequado, uma vez que este sistema assegura garantir os direitos fundamentais da parte na relação processual. Desta forma, o acusado não é um simples objeto de prova nesta relação processual, pois passa a figurar como parte, podendo então proporcionar uma carga probatória, para que o juiz tome uma decisão diante de tudo que lhe foi apresentado.
De acordo com o entendimento do ilustre doutrinador Renato Brasileiro (2019, pag. 41):
De maneira distinta, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdades de condições, e ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui há uma separação das funções de acusar, defender e julgar. (Grifo nosso)
Nos dias atuais, o sistema acusatório ostenta as subsequentes características: a) Existe uma separação nas funções de acusar, julgar e defender, sendo de suma importância ressaltar a distinção entre o juiz, autor e réu; b) A relação processual é conduzida pelo princípio da publicidade dos atos processuais, sendo permitido, o que se caracteriza como a exceção, o sigilo na pratica de alguns atos processuais; c) Os princípios da ampla defesa e do contraditório regem toda a relação processual. Assim, ao réu é garantido todos os direitos, podendo este gozar das garantias constitucionais que lhe são agraciadas; d) Prima-se pelo livre convencimento do magistrado, onde a decisão final deve ser motivada baseada nas provas trazidas pelas partes para o processo. O juiz então fica livre da apreciação das provas, porém, sempre em detrimento da inafastabilidade do controle judicial; e) O órgão julgador deve respeitar o princípio da imparcialidade, assim fica o juiz afastado do interesse das partes, assegurando o equilíbrio processual, mas conduzindo todo o processo adotando e sempre tomando as devidas providências no que diz respeito à instrução processual, podendo indeferir as demandas inúteis ou de caráter protelatório. (OLIVEIRA, 2017).
Desse modo, o sistema acusatório tem como característica principal o fato das funções de julgar, acusar e defender ficarem concentradas nas mãos de sujeitos distintos na relação processual. Assim, inexiste a figurada do juiz-inquisidor, ou seja, aquele que vai investigar, em busca de provas para compor aos autos, isso porque não ficará concentrada no juiz toda a carga probatória, não terá o poder de investigar e de julgar o sujeito acusado. Existirá então a ideia de um juiz que vai garantir toda a legalidade na investigação.
Nesse contexto, o Ministério Público é legitimado como jus postulandi, ou seja, é o titular da ação penal, e o magistrado fica limitado a julgar o processo mediante as provas que a ele serão apresentadas pelas partes na relação processual. Portanto, prima-se pelo princípio da imparcialidade do juiz, onde este vai garantir o equilíbrio do processo, ficando afastados dos sujeitos em conflito, podendo tomar apenas as diligências realmente necessárias.
É importante trazer à baila uma grande diferença no que diz respeito ao sistema acusatório e inquisitório, sendo está a publicidade. No inquisitório, todos os atos processuais são praticados em segredo, dessa forma não vai existir nenhuma lacuna para que seja feita indagações. Pelo fato do sistema inquisitório ser respaldado na busca da verdade real, uma possível publicidade dos atos poderia colocar uma insegurança nas sentenças dos juízes.
Por sua vez o sistema acusatório é conduzido com base no princípio da publicidade dos atos processuais. Desse modo, se faz necessário que a sociedade participe da gestão das sentenças proferidas pelo juiz e, é possível ainda que seja dada a sociedade a garantia de fiscalizar a atuação do magistrado, e de todos os sujeitos encarregados de prestar a função jurisdicional.
Destaca, inclusive, PRADO (2001, p. 176) acerca da publicidade:
[…] por cujo meio podem os cidadãos controlar, adequadamente, o cumprimento das exigências de respeito aos direitos básicos, além da moralidade e impessoalidade da ação estatal, ficando limitada a publicidade, sem perigo inaceitável para o sistema, somente nas situações pertinentes à preservação de outros direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício de tais direitos, de acordo com o princípio da proporcionalidade.
No acusatório, como forma de garantir o processo penal, e em oposição ao sistema inquisitório, os princípios da ampla defesa e do contraditório regem toda a relação processual. Neste passo, ensina RANGEL (2015, p. 50) que “o réu é sujeito de direitos, gozando de todas as garantias constitucionais que lhe são outorgadas”.
Além disso, MORAIS (2005, p.93) define um entendimento acerca do que vem a ser a ampla defesa e o contraditório:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.
Em relação ao contraditório, conclui CAPEZ (2018, p. 62-63) que:
[…] exprime a possibilidade, conferida aos contendores, de praticar todos os atos tendentes a influir no convencimento do juiz. Nessa ótica, assumem especial relevo as fases da produção probatória e da valoração das provas. As partes tem o direito não apenas de produzir suas provas e de sustentar suas razões, mas também de vê-las seriamente apreciadas e valoradas pelo órgão jurisdicional.
Dessa forma, é aceitável dizer que o sistema acusatório é totalmente voltado a manter as garantias fundamentais individuais e “que respeita a proibição do ne procedat iudex ex officio, isto é, não cabe nunca ao juiz ideal imiscuir-se, sponte sua, na atividade de colheita (principalmente preliminar) de provas ou da de acusar” (GOMES apud FARIA, 2011, p. 28).
Por fim, se faz necessário ressaltar que o sistema acusatório assegura ao acusado todas as garantias fundamentais inerentes a todos os sujeitos em uma relação processual, como é o caso da imparcialidade do magistrado, da ampla defesa e do contraditório, e não tão menos importante o da publicidade dos atos no processo.
2.3 Sistema adotado no Brasil
Em razão do que foi exposto, se faz necessário determinar a partir de uma análise qual o sistema adotado no Brasil, de forma que sejam asseguradas todas as garantias inerentes aos sujeitos na relação processual, para que em um momento posterior, seja determinado a possibilidade ou não do magistrado produzir prova de ofício no processo penal.
Mesmo diante do fato do Código Processual Penal de 1941 ter sido realizado com base em um regimento tirânico, antidemocrático, portanto, com particularidades inquisitórias, a Carta Magna de 1988 trouxe consigo, o sistema acusatório. Desse modo, devido ao fato de que o ordenamento jurídico do Brasil, por um lado trazer características inquisitórias, e por outro lado acusatórias, alguns doutrinadores citaram um terceiro sistema, que é o misto, buscando assim definir este como o sistema processual adotado no Brasil.
O sistema misto, por sua vez, seria aquele com particularidades tanto do sistema acusatório, quanto do sistema inquisitório, podendo assim ser fragmentado em duas fases. Assim a primeira fase teria particularidades inquisitórias e a segunda fase particularidades acusatórias como já realçado. Em suma, o ilustre doutrinador RANGEL (2015, p.52) torna claro e compreensível essas duas fases processuais da subsequente forma:
1º fase - instrução preliminar: nesta fase, inspirada no sistema inquisitivo, o procedimento é levado a cabo pelo juiz, que procede às investigações, colhendo as informações necessárias a fim de que se possa, posteriormente, realizar a acusação perante o tribunal competente. 2º fase - judicial: nesta fase, nasce a acusação propriamente dita, onde as partes iniciam um debate oral e público, com a acusação sendo feita por um órgão distinto do que irá julgar, em regra, o Ministério Público.
Porém, a adoção como misto do sistema processual brasileiro não foi reconhecida por parte de alguns doutrinadores como é o caso de Pacelli (2017, p.21), ensinado que:
No que se refere à fase investigativa, convém lembrar que a definição de um sistema processual há de limitar-se ao exame do processo, isto é, da atuação do juiz no curso do processo, E porque, decididamente, inquérito policial não é processo, misto não será o sistema processual, ao menos sob tal fundamentação.
Neste passo, outros doutrinadores acolheram a ideia de que o sistema processual brasileiro é o sistema acusatório, porém, este modelo processual não é genuíno, puro, pois acreditam que ainda existem traços de um modelo inquisitório. Neste ponto de vista, é importante destacar a lição de RANGEL (2015, p. 54-55):
Assim, nosso sistema acusatório hodierno não é puro em sua essência. Traz resquícios e ranços do sistema inquisitivo; porém, a Constituição deu grande avanço ao dar ao Ministério Público privatividade da ação penal pública. Em verdade, o problema maior do operador do direito é interpretar este sistema acusatório de acordo com a Constituição e não de acordo com a lei ordinária, pois, se esta estiver em desacordo com o ela estabelece, não haverá recepção, ou segundo alguns, estará revogada.
Ante ao exposto, é nítido e cristalino destacar que o modelo processual brasileiro, mesmo diante do fato de que a Constituição de 1988 ter adotado o sistema acusatório, assegurando as garantias fundamentais, ainda possui marcas de um sistema inquisitório, não sendo assim puro em sua essência. Deste modo, faz-se necessário concordar com o entendimento esboçado pelo renomado doutrinador Paulo Rangel.
3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROCESSO PENAL
Preliminarmente, é de suma importância destacar que os princípios são considerados normas de caráter genérico que tem fundamental importância em todo e qualquer ordenamento jurídico. Diante disso os princípios possuem a finalidade tanto para embasar as normas jurídicas quanto para complementá-las.
Neste aspecto, contemplando a importância dos princípios, é conveniente trazer a lição do ilustre doutrinador Gilberto Thums (2006, p.78):
“O papel exercido pelos princípios na organização dos sistemas processuais é fundamental. Especialmente ao que interessa no campo do Direito Processual Penal, pode-se apontar os princípios relativos ao processo, à ação e à jurisdição”.
No mesmo sentido, acerca dos princípios esclarece o doutrinador BOSCHI (2013, p.28) que:
Por exercerem funções diretivas os princípios iluminam o operador do direito, quando da leitura dos textos, na aferição dos sentidos, em seu trabalho de apuração da efetividade do sistema, no interior do processo de interpretação sistemático das normas processuais nos vários escalões, sobrepujando-as em importância hierárquica e força cogente, numa hermenêutica autoconsciente de suas funções.
Desta forma, é perceptível a fundamental importância dos princípios, que além de embasar e complementar o ordenamento jurídico é também uma importante ferramenta de interpretação das normas, não restando dúvidas acerca da importância no ordenamento jurídico.
3.1 Princípios do Juiz Natural
Uma das garantias de jurisdição dentro do processo penal é a do juiz natural, sendo este elevado a status constitucional, uma vez que a Constituição Federal traz em seu artigo 5º, inciso LIII que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Neste sentido, CAPEZ (2018, p.78) traz um entendimento ao artigo anteriormente citado, desta forma segundo ele:
Significa dizer que todos têm a garantia constitucional de ser submetidos a julgamento somente por órgão do Poder Judiciário, dotado de todas as garantias institucionais e pessoais previstas no Texto Constitucional.
São, ainda, do eminente CAPEZ (2018, p.78) os seguintes esclarecimentos acerca da figura do Juiz Natural:
Juiz natural é, portanto, aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à infração penal, investido de garantias que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade.
Portanto, segundo o princípio do juiz natural todo cidadão tem o direito de saber, previamente, qual autoridade irá julgá-lo caso o mesmo venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico pátrio. (BRASILEIRO, 2019). Desta forma, o princípio do juiz natural assegura a imparcialidade do juiz, pois não haverá espaço para que seja escolhido um juiz para determinada causa, de forma que esse venha a trazer benefícios para uma das partes, colocando sua parcialidade em risco.
Por fim, faz-se necessário destacar que não se pode desconectar, ou afastar, o princípio do juiz natural das regras de competência, porque não se pode definir posteriormente ao fato delituoso qual será o juiz da causa, isso seria uma manipulação dos critérios de competência, e um afronto ao princípio do juiz natural (LOPES JR, 2018).
3.2 Princípios da Imparcialidade do Juiz
A imparcialidade tem como significado aquele que julga sem paixão, de forma justa, aquele que julga sem prevalecer para algum dos lados que estão em litígio. Um juiz então é imparcial quando o mesmo não tem interesse no objeto do processo, desta forma, não busca favorecer nenhuma das partes, porém, isso não quer dizer que não tenha o juiz o interesse de que sua sentença seja proferida de forma justa, e que atue com esta finalidade.
A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes que estão em conflito e, embora não esteja expressa, é uma garantia constitucional que deve ser prevalecida, além de ser um pressuposto para a validade do processo, no qual o juiz coloca-se entre as partes e acima delas. Aludido pressuposto, dada sua importância, tem um caráter universal e consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, artigo X, que prevê:
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Deste modo, faz-se necessário que o juiz seja atribuído de parcialidade, para que assim possa julgar de forma justa, deixando suas convicções de lado, e agindo com o intuito de garantir a justiça paras as partes, seja para decidir sobre direitos e deveres das partes, seja para fundamentar qualquer acusação criminal contra elas.
Neste sentido, destaca Távora e Alencar (2017, p.73):
A imparcialidade - denominada por alguns de "alheiabilidade" - é entendida como característica essencial do perfil do juiz consistente em não poder ter vínculos subjetivos com o processo de modo a lhe tirar o afastamento necessário para conduzi-lo com isenção. Trata-se de decorrência imediata da CF I 1988, que veda o juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII) e garante que o processo e a sentença sejam conduzidos pela autoridade competente (art. 5°, LIII), representando exigência indeclinável no Estado Democrático de Direito.
É de suma importância ressaltar que tanto o impedimento quanto a suspeição devem ser reconhecidas ex-officio pelo juiz, casos em que o juiz impedido ou suspeito vai ser distanciado do processo, e este processo será encaminhado para o substituto legal.
A Constituição Federal de 1988 confere ao magistrado determinadas prerrogativas, que estão elencadas no seu artigo 95, das quais se pode citar a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, prerrogativas que permitem a juízes atuar com isenção, o que inclui declarar-se suspeito ou impedido no processo. Em vista disso, caso não reconheça a situação de imparcialidade, o juiz interessado deve ser recusado pelas partes, e os permissivos legais para tal feito estão corroborados no artigo 254 do Código de Processo Penal, onde estão descritas as hipóteses de suspeição, e no artigo 252 do mesmo diploma legal, que vislumbra as hipóteses de impedimento.
Acerca da imparcialidade do juiz, o Código de Ética da Magistratura de 2008, prevê em seu artigo 8º que:
Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
Deste modo, é exigido do magistrado uma conduta ética, dotada de honestidade, devendo o magistrado levar consigo os valores inerentes de sua formação, que de certa forma justificam os entendimentos distintos em relação a uma grande pluralidade de situação fáticas a quais se deparam, sempre prolatando decisões suficientemente fundamentadas e com objetividade.
Para Aury Lopes Junior (2018, p.58), a atividade probatória do julgador fere significativamente a sua imparcialidade, no qual segundo ele “a gestão da prova deve estar nas mãos das partes (mais especificamente, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador), assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim suprapartes e preservando sua imparcialidade.”
Diante do que foi exposto, tem-se que o juiz deve manter-se imparcial, não deixando suas convicções afetar o processo com intuito de beneficiar alguma das partes em conflito, pois, caso isso ocorra, não estará sendo honesto, e nem respeitando a Constituição Federal, no que diz respeitos às garantias inerentes a todos os indivíduos. Assim, a imparcialidade é inerente a função de julgar, caso semelhante é o de um juiz de futebol, que deve ser criterioso ao marcar faltas, e anular gols, quão mais deverá ser o magistrado do Direito, que julga e decide sobre os direitos das pessoas.
3.3 Princípios do Contraditório e da ampla defesa
Os princípios do contraditório e ampla defesa estão elencados no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Vejamos então a lição do doutrinador Aury Lopes (2018, p.60):
O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas). É imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo.
Na fase em que se tem início o devido processo penal, quando ocorre o chamamento do imputado à lide, tais princípios consolidam-se na necessidade de clareza, efetividade, integralidade, que deverá revestir o ato da citação, ou seja, o réu deve ser informado da maneira mais clara, explícita, simples, completa, para que assim seja viabilizada essa garantia. Caso isso não ocorra, poderá ocorrer nulidade absoluta do processo.
O princípio do contraditório então é direito assegurado e inerente as partes de serem comunicadas de todos os atos e fatos que aconteceram no curso do processo, podendo elas se manifestarem e produzir as provas necessárias antes de ser proferida a decisão jurisdicional. Portanto, este princípio é voltado para ambas às partes, um direito que prevalece para os dois lados que estão em conflito no processo.
Segundo o entendimento do ilustre doutrinador CAPEZ (2018, p.63):
A bilateralidade da ação gera a bilateralidade do processo, de modo que as partes, em relação ao juiz, não são antagônicas, mas colaboradoras necessárias. O juiz coloca-se, na atividade que lhe incumbe o Estado-Juiz, equidistante das partes, só podendo dizer que o direito preexistente foi devidamente aplicado ao caso concreto se, ouvida uma parte, for dado à outra manifestar-se em seguida. Por isso, o princípio é identificado na doutrina pelo binômio ciência e participação.
Assim, o princípio do contraditório não basta a ciência da parte, é necessário também que seja concedida a ela a oportunidade de participar, ou seja, ciência e participação é que fazem parte da essência do contraditório.
Enquanto o contraditório é princípio protetivo de ambas as partes (autor e réu), a ampla defesa por sua vez é a garantia com destinatário certo: o acusado. O princípio da ampla defesa ao lado do contraditório formam um verdadeiro escudo contra práticas arbitrarias e antidemocráticas, ao passo que permite o acusado contrapor todos os argumentos da acusação que contra ele é imputada, produzindo toda a carga probatório necessária que possam demonstrar a sua tese de defesa.
É importante destacar, que apesar das duas garantias, contraditório e ampla defesa, caminharem juntas, ou seja, serem interligados, Renato Brasileiro (2019, p.56) explica que não é possível confundi-las:
Apesar da influência recíproca entre o direito de defesa e o contraditório, os dois não se confundem. Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra.
Portanto, o contraditório é o que assegura aos litigantes do processo o direito de ampla defesa, diz respeito a ambas as partes no processo, ou seja, deixar de comunicar um determinado ato ao membro de acusação, não possibilitando que ele se manifeste sobre determinada prova ou alegação produzida pela defesa, ao mesmo tempo em que a ampla defesa refere-se especificamente ao réu, que ao ter conhecimento da acusação a ele imposta, vai utilizar de todos os meios de prova existente no direito pátrio na sua defesa.
4 A FIGURA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL
Diante de tudo que foi exposto ao juiz, compete apenas a preocupação quanto ao julgamento da lide, mantendo o equilíbrio das armas que podem ser utilizadas pelas partes, por conseguinte, permanecendo imparcial. Ao ser colocado de frente com a racionalidade da Constituição Federal, percebe-se que o mesmo não pode e nem deve partir espontaneamente para colheita de provas, pois caso isso ocorra, estaria contrariando os princípios basilares do Direito Processual Penal, uma vez que se trata de atribuição exclusiva da polícia judiciária.
Ainda que o Brasil tenha adotado o sistema acusatório, é possível encontrar no Código de Processo Penal, resquícios do sistema inquisitivo no atual âmbito da persecução penal brasileira como veremos a seguir.
4.1 Análises dos Poderes Instrutórios dos Magistrados e da inconstitucionalidade do art. 156 do Código de Processo Penal.
Uma discussão que merece ênfase é a que gira em torno do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, que assevera que:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (BRASIL, 1941).
Ao facultar ao juiz a produção antecipada de provas na fase pré-processual, de ofício, um dos argumentos utilizados pela doutrina que sustenta a inconstitucionalidade do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, é de que a imparcialidade do julgador estaria comprometida, tendo em vista que não pode o juiz, de ofício, produzir a prova no curso do inquérito policial e depois simplesmente esquecê-la, no curso do processo, como se nada tivesse acontecido e que nenhuma influência aquela prova tenha causado no seu ânimo.
De acordo com RANGEL (2015, p.510):
Ora, como imaginar um juiz isento que colhe a prova no inquérito, mas não a leva em consideração na hora de dar a sentença? A reforma pensa que o juiz é um ser não humano. Um extraterrestre que desce de seu planeta, colhe a prova, preside o processo, julga e volta à sua galáxia, totalmente imparcial. (...) A reforma, nesse caso, adota o princípio inquisitivo, colocando o juiz no centro da colheita da prova em total afronta à Constituição Federal, que adota o sistema acusatório (art. 129, I, CR).
Desse modo, a atuação do juiz no sistema acusatório deve se dar de maneira imparcial, pois, segundo a doutrina, como juiz garantidor das liberdades, ele deve manter-se o mais distante possível da produção probatória, atuando somente quando requisitada a sua intervenção e mantendo a imparcialidade desejada pela Constituição Federal de 1988. Diante de tal entendimento Aury Lopes Jr (2008, p.247) ressalta que:
A atuação do juiz na fase pré-processual (seja ela inquérito policial, investigação pelo MP etc.) é e deve ser muito limitada. O perfil ideal do juiz não é como investigador ou instrutor, mas como controlador da legalidade e garantidor do respeito aos direitos fundamentais do sujeito passivo. É também a posição mais adequada aos princípios que orientam o sistema acusatório e a própria estrutura dialética do processo penal. (Grifo do autor).
Desta forma, a inconstitucionalidade do artigo 156 do Código de Processo Penal está voltada ao fato que seria impossível ordenar que o juiz produza provas oficiosamente, seja antes ou durante a ação penal, pois caso contrário, estaria o julgador ferindo o sistema acusatório e indo contra os princípios constitucionais garantidos por esse sistema, tomando então para si atribuições que não são de sua competência, pondo em risco a sua imparcialidade.
É importante então ressaltar que alguns autores tratam esse artigo como inconstitucional, pelo fato de o juiz perder sua imparcialidade, porém, alguns autores acreditam na constitucionalidade do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, como é o caso de Ivan Luís Marques da Silva (2008, p.65) que assevera:
A ampla maioria da doutrina e da jurisprudência abomina o fato de o juiz sair de sua sala e buscar a produção de provas de ofício. Isso porque afirma-se que a ação penal não mais será conduzida de forma imparcial.
A simples escolha de qual prova deverá ser produzida de ofício e qual deixou de ser produzida já seria uma forte indicação de predisposição para condenar ou absolver.
Discordamos da maioria.
Um dos argumentos usados pela doutrina que acredita na constitucionalidade do artigo em questão é o fato dele trazer o princípio da verdade real, sendo que esse princípio que vige no processo penal, é muito mais importante, e desejável, razão pela qual o juiz deve agir, de ofício, na busca da verdade real, para que possa aplicar a lei ao caso concreto, exercer a jurisdição, da melhor forma possível. De modo que o que juiz não deve se atrelar somente aos trabalhos desenvolvidos pelas partes para formar as provas (SILVA, 2008).
Mesmo diante dessa divergência acerca da inconstitucionalidade ou não do artigo 156, inciso I do Código de Processo Penal, prima-se pela inconstitucionalidade, mesmo diante da verdade real, pois se acredita na possibilidade de ao levar em conta a verdade real, o juiz tem poderes instrutórios, retirando dele a sua imparcialidade, fazendo com que o magistrado afaste-se do acusado e penda para o lado da acusação, uma vez que o juiz tem que ser imparcial e dar ao acusado o seu direito ao contraditório e de ampla defesa.
4.3 O Juiz Inquisidor e a busca da verdade real ao produzir provas no Processo Penal.
No que diz respeito aos argumentos apresentados anteriormente, para fundamentar a manutenção da atribuição de iniciativa probatória ao juiz no processo penal em nosso ordenamento jurídico, entende-se que os dispositivos do Código de Processo Penal que trazem tal previsão confrontam a Carta Magna e, por conseguinte, aos princípios e regras por ela expostos. Conforme já afirmado, historicamente, a atribuição de poderes instrutórios esteve sempre ligada ao sistema inquisitório, onde o juiz não possuía limitações para alcançar a verdade real. Assombroso imaginar que a ausência de limites à atividade instrutória do juiz no sistema inquisitorial possibilitasse a obtenção dessa verdade absoluta. No entanto, o alcance da verdade de forma absoluta é algo impossível, e inviável para a condição humana.
É importante realçar as limitações à busca da verdade no processo penal, nas quais se destaca não ser possível a apreciação direta dos fatos, o caráter irredutivelmente provável da verdade fática e o inevitavelmente opinativo da verdade jurídica das teses judiciais, a subjetividade do juiz e subjetividade das fontes de prova. O princípio da busca da verdade real nada mais é do que um caminho para que o magistrado obtenha e se faça valer de seus poderes instrutórios, o que não prospera, conforme o processo penal, para a defesa das garantias constitucionais do cidadão, pelo fato deste princípio fazer com que o juiz busque novas provas e se figure como parte no processo, deixando de lado assim sua imparcialidade, ao passo que este poderia apenas utilizar o princípio como fator decisivo ao proferir a sentença, a partir da carga probatória já obtida em suas mãos.
Assim, é perceptível, que na fase instrutória ao juiz é concedido poderes ilimitados em busca do alcance da verdade real, em decorrência dessa agressão, doutrinadores criticam o poder do juiz de produzir provas, alegando que toda fase instrutória está contaminada pelos ditames do sistema inquisitório, onde o juiz não se limita a apenas um mero espectador do processo e passa a intervir diretamente nele como parte, momento em que tem sua imparcialidade corrompida.
O magistrado com a imparcialidade comprometida, não irá gozar de suas funções de maneira justa, o que afeta o devido processo legal, ou seja, a verdade que se busca fica inteiramente comprometida.
Portanto, a atribuição de poderes instrutórios ao juiz impossibilita a melhor aproximação possível da verdade e não sendo tal aproximação obtida, a decisão não poderá ser considerada justa. Assim, danificada a imparcialidade, fica clara a não observância do devido processo legal, garantia fundamental e inerente de todo cidadão.
Neste contexto, é incontestável que a estrutura do sistema inquisitório aludido no Código de Processo Penal é marcada pelo caráter tirano, mostrando-se absolutamente incompatível com o devido processo legal previsto na Constituição, que a ele é posterior.
Para tanto, deve-se, necessariamente, construir um processo penal no qual o juiz se afaste desse lugar nebuloso que é a produção de prova, ainda que a título complementar, e possa, efetivamente, pelas regras constitucionais, ascender ao lugar de protetor e garantidor dos direitos e liberdades individuais, de onde, nunca deveria ter saído.
CONCLUSÃO
Diante de toda análise expendida é cabível direcionar-se ao entendimento de que o caminho mais apropriado é a interpretação do Código de Processo Penal em consonância com os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988, na qual devem ser assegurados todos os princípios inerentes a todos os indivíduos.
O respeito às regras constitucionais deveria ser uma obrigação a todas as partes do processo, ou seja, as armas processuais apresentadas a uma parte devem ser igualmente concedidas à outra parte, com o objetivo de equilibrar a relação processual, e concretizando um processo penal equilibrado.
No presente trabalho foi elucidado o papel do juiz quando este atua de forma inquisitória, ou seja, quando toda a carga probatória está concentrada em suas mãos, porém, quando isso acontece, os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da imparcialidade do julgador são afetados, e, por conseguinte, não respeitados. Assim, o sistema processual a ser seguido, é o acusatório, sendo este ideal, pelo fato de que as partes participam do processo, deixando de ser meros objetos sendo, passando a figurar na posição de sujeito, sendo concedida a oportunidade do contraditório e da ampla defesa. Assim, o juiz ficará como garantidor da legalidade investigatória, imparcial, para analisar as provas que lhes são apresentadas, e tomar uma decisão a partir delas, respeitando todas as garantias trazidas pela Constituição Federal, sendo este o sistema processual a ser adotado no Brasil como já foi explanado.
É mister esclarecer que dar ao Juiz o poder de gestão da prova, tal como menciona e permite o artigo 156 do Código de Processo Penal e, principalmente em seu inciso I, é entendido como inconstitucional, mesmo com alguns doutrinadores contra esse entendimento, pois o mesmo viola o princípio do devido processo legal, e do contraditório e ampla defesa, cujos princípios são retirados da própria constituição e do sistema acusatório.
A atribuição de poderes instrutórios ao juiz também afronta a garantia de imparcialidade da jurisdição, sobre a qual se consolidam o processo penal e o sistema acusatório. A produção de provas ex officio permite um convencimento antecipado do órgão julgador, visto que o juiz poderá, previamente, inclinar-se em direção a uma das partes, procurando beneficiá-la. Desse modo, o magistrado não deve se agarrar à verdade real com o objetivo de participar do processo em uma função que não lhe pertence. Esse princípio da verdade real deve ser extinto do direito processual penal, haja vista ser um resquício desestabiliza a democracia e as garantias fundamentais do acusado com o advento da nova ordem constitucional.
Portanto, é necessário um Processo Penal democrático, interpretado à luz da Constituição Federal, onde as garantias individuais inerentes ao acusados sejam respeitadas, com o objetivo de evitar arbitrariedades que, eventualmente, possam ser cometidas pelos magistrados quanto à gestão da prova. Percebe-se, portanto, que uma interpretação constitucional do processo penal não deve ocorrer simplesmente pelo fato de a Constituição estar no topo da hierarquia das normas, mas sim em virtude da mesma ser oriunda de lutas históricas para a consagração de direitos e garantias fundamentais a todos.
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[1] Orientador, professor do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected].
Graduando do curso de bacharelado em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé ROBéLIO DE LEMOS AMORIM JúNIOR, . O sistema acusatório e a iniciativa probatória do juiz no processo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2019, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53934/o-sistema-acusatrio-e-a-iniciativa-probatria-do-juiz-no-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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