RESUMO: O presente trabalho é resultado de uma investigação científica bibliográfica cujo objetivo foi compreender e analisar o direito à vida embrionária a partir da construção da personalidade pré-natal. Para tanto, inicia-se esse trabalho científico com os primeiros sopros históricos, advindos dos gregos e romanos, que inspiram a discussão quanto à personalidade embrionária. Posteriormente, segue-se com o estudo do direito à vida e a delimitação do início da vida humana como elemento essencial para definir os contornos da proteção embrionária. Se for humano desde a vida embrionária porque não sê-lo pessoa jurídica desde então? Em caminhos dogmáticos que negam, consideram em parte e aceitam a personalidade pré-natal constroem-se as linhas mestras para a discussão em defesa da vida do feto como um direito subjetivo, contribuindo para uma proteção concreta e efetiva dos direitos humanos fetais. Ao final, em caráter conclusivo, realizou-se um estudo da proteção embrionária enquanto direito subjetivo do feto em estreita relação com a prática abortiva.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. VENTOS HISTÓRICOS DE PROTEÇÃO DO NASCITURO. 3. O DIREITO À VIDA - início da vida. 4. PERSONALIDADE DESDE A VIDA EMBRIONÁRIA? 4.1. Personalidade jurídica pré-natal e concessão de direitos aos embriões. 4.1.1 Laivos teóricos de personalização pré-natal. 4.1.2. Personalização do nascituro. 5. "GRITO SILENCIOSO" – breves apontamentos críticos da prática abortiva perante a personalização embrionária. 6. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
1. INTRODUÇÃO
A proteção da vida humana requer um apreço dogmático e jurídico atencioso, isso porque a vida é aquele primeiro ponto de toda a existência humana. O direito à vida representa exatamente um direito natural de origem que viabiliza e impulsiona o exercício de todos os outros.
Garantir com completude a tutela da vida perpassa analisar onde se inicia o objeto de proteção e essa resposta é elaborada com clareza e objetividade pelos estudos técnico-científicos da biologia, em especial na embriologia humana.
Uma vez analisando o início da vida a partir da concepção, a proteção da vida intrauterina não mais pode ser ignorada pelo Direito. Entretanto, como deve ser essa proteção? Trata-se de uma tutela objetiva ou permeia-se de subjetividade e, reconhecendo a personalidade embrionária, concede-lhe um direito subjetivo à vida?
A investigação da personalidade embrionária surge como vetor essencial na proteção da vida pré-natal, uma vez que a compreensão da pessoalidade fetal a partir da ontologia humana irradia seus efeitos em discussões jurídicas sobre a prática abortiva. Isso porque, enquanto compreendida como um bem objetivamente tutelado, a vida intrauterina padece de subjetivação e, em um diálogo ponderativo realizado quanto à interrupção voluntária da gravidez, está destinada a fragilidade do seu peso argumentativo perante os direitos subjetivos da mulher.
Essa investigação se propõe, então, a observar a personalidade do embrião enquanto sujeito de direito e titular próprio dos direitos subjetivos que o ordenamento especifica a todos os homens e, assim, desconstruir o abismo criado entre a realidade de hominicidade fetal e a concepção positivista de personalidade, no intuito de elevar e subjetivar a proteção da vida embrionária.
Dessa forma, partindo-se de uma navegação histórica grega e, principalmente, romana, analisa-se as primeiras linhas dogmáticas da personalidade embrionária, bem como a relação entre concessão de direitos ao feto e a atribuição de personalidade. Posteriormente, iniciar-se-á o estudo do direito à vida no intuito de compreender onde começa a vida e, consequentemente, a tutela do direito. Dada as linhas biológicas do início da vida, será realizado um estudo das teorias que correlacionam a concessão de direitos aos embriões e a atribuição de personalidade e, ao final, observar-se-á a relação entre os direitos do feto e da mulher diante da prática abortiva: teria o feto direitos subjetivos oriundos da sua personalização?
2. VENTOS HISTÓRICOS DE PROTEÇÃO DO NASCITURO
Um breve passeio histórico com partida nas tradições gregas, uma parada apreciativa do direito romano e a chegada aos dias atuais nos mostrará como a proteção ao nascituro foi sendo considerada em diversos contextos históricos. Nesse primeiro momento passearemos apenas em tempos remotos.
Nos estudos de Platão e Aristóteles[1] percebe-se uma admissão das práticas abortivas por inspirações relacionadas ao crescimento demográfico em função dos meios de subsistência. Platão apresentava uma preocupação com a pureza da raça o que legitimava o aborto eugênico. Aristóteles com igual razão defendia a exposição do recém-nascido disforme. O aborto estava relacionado com a dotação de alma e, enquanto o feto ainda não tivesse alma (até os quarenta dias para o homem e até os três meses para a mulher) poderia ser retirado do ventre materno.
Os gregos foram os responsáveis pelos primeiros estudos relacionados à embriologia registrados nos livros de Hipócrates (século V a.c.)[2] e em seu famoso juramento já se observa o comprometimento médico em não dar presságio abortivo as mulheres.[3]
As maiores contribuições são percebidas em nossa passagem pelo direito romano, mas há que perceber as contradições observadas nas interpretações dos tradicionais escritos romanistas.
A aquisição da personalidade jurídica[4] dependia de duas dimensões, natural e civil, que se consolidavam no nascimento e no status[5]. O nascimento deveria reunir quatro condições fundamentais sendo elas: a separação completa do ventre materno, nascer vivo, ter forma humana e ser viável.
Antes da separação do corpo da gestante, o embrião é considerado “mulieres portio vel viscerum”[6], e entende-se por nascido quando é expulso e extraído do ventre materno[7]. Para a comprovação dos sinais vitais, os Proculeianos afirmavam a necessidade de um gemido para a comprovação da vida, os Sabinianos defendiam que bastava qualquer movimento ou respiração do nascido[8], e foi essa última doutrina a adotada por Justiniano. Ressalte-se que para o parto ser considerado perfeito era necessário que tenha ocorrido no tempo ideal que, para a experiência médica inspiradora da época, nomeadamente Hipócrates, circundava o período mínimo de seis meses completos [9].
Quanto à forma humana, os romanistas apontam que o monstrum ou prodigum não gozam de personalidade jurídica[10], apesar de não explicarem com detalhes o que caracterizaria essas formas, e apontam que possui forma humana ainda que a pessoa tenha maior ou menor número de membros que o normal[11].
A viabilidade é a condição mais discutida pelos romanistas e promove grande divergência quanto à necessidade e as dimensões desse requisito para a aquisição da personalidade. Ser viável significava possuir aptidão para a vida[12]. Tratando-se da constatação de que, após o nascimento, a criança não viria a falecer após algumas horas ou poucos dias. Uma vez verificada a impossibilidade de sobrevivência, postulava-se uma recusa da personalidade jurídica, ainda que o nascido tenha experimentado o sabor da vida por alguns instantes.[13]
Os adeptos da viabilidade consideram que nos escritos romanos apenas é pessoa aquele que nasce vivo e tem condições de continuar a viver, em razão do período gestacional normal mínimo estabelecido por Hipócrates de seis meses completos.[14] Comprovam essa interpretação quanto à exigência da viabilidade a partir do texto de PAULO[15], segundo o qual para as mulheres terem direito ao ius leberorum seria necessário, além de outros requisitos, que haja dado à luz a pelo menos três ou quatro filhos, contanto que nasçam vivos e a tempo. [16]
Outro texto utilizado pelos defensores da maturidade fetal é uma constituição de Diocleciano[17] pelo qual o aborto[18], feto imaturo e inviável por falta de tempo de gestação, não adquiria nem transmitia nenhum direito e assim não seria capaz de romper o testamento, a maturidade era, assim, requisito essencial. Ressalte-se que a imaturidade apenas obstava a aquisição da personalidade quando o recém-nascido vinha a falecer logo após o parto, já que se continuava a viver, por óbvio, a presunção de viabilidade.[19]
Os romanistas[20] que não entendem pela exigência da viabilidade, por sua vez, defendem que a constatação de uma vida real e positiva, ainda que breve, é razão suficiente para conferir personalidade. Destaca-se a norma romana que determina a capacidade jurídica do infante, uma vez verificado seu nascimento, ainda que venha a falecer logo após[21].
Muito embora o direito clássico não considere o nascituro como sendo pessoa, é notória, em variadas passagens romana, uma preocupação protecionista desde o momento da concepção e, então, para determinados efeitos jurídicos o não nascido já é pessoa.
Nesses termos de tutela da vida embrionária, destaca-se a possibilidade de ser nomeado um curador ventris, a pedido da genitora, para defender os direitos do nascituro[22]; e a concepção de que aqueles que estão no útero são tidos como nascido quando do seu próprio interesse, embora só possa aproveitar depois de nascido[23].
Além de proteger direitos eminentemente patrimoniais, em especial sucessórios, há que se destacar também a hipótese segundo a qual a qualidade de ingênuo é estabelecida ainda que no decorrer da gestação a mãe torne-se escrava, em atenção ao momento da concepção. Também os casos em que se consideram como sendo filhos de senador aqueles que concebidos quando o pai possuía essa qualidade, ainda que venha a perdê-la ou falecer antes do nascimento[24].
Ademais, ressalte-se, a proteção conferida à vida intrauterina de forma que a lei régia vedava o enterro de mulher grávida, determinando que antes fosse aberto o ventre materno para tentar salvar o feto[25]. E em casos de condenação a pena de morte de mulher grávida, era determinada que a execução fosse adiada para momento posterior ao parto[26].
Apesar de todos esses direitos conferidos ao nascituro, Porchat[27]considera que não há contradição em afirmar que o nascimento perfeito é o evento que garante a personalidade e, ao mesmo tempo, proteger os direitos do embrião. Segundo o Autor, o direito faria uma espécie de ficção jurídica para proteger seus interesses. Caso o nascimento não ocorra, a pessoa não se constitui e, portanto, aquelas medidas protecionistas não produzirão efeitos.
Savigny doutrina que o nascituro não possuía nenhuma personalidade jurídica[28], porque não podia participar de relações de propriedade, contrair créditos, não tinha necessidade nem a possibilidade de ser representado e nem podia ser chamado de pupilo. Para o Autor, os direitos conferidos (normas que protegiam a vida e normas que conferiam direitos a serem adquiridos quando do nascimento) faziam parte de uma ficção jurídica[29] que se ocupava da iminente vida real do infante.
Silmara ALMEIDA[30] discorda e destaca que assegurar direitos significa, de fato, atribuir personalidade, porque somente quem é pessoa é capaz de ter direitos e obrigações no mundo jurídico.
Pelo que se denota, então, o embrião, no direito romanista, possui direitos independentes do nascimento com vida, tal qual a curatela instituída pela “bonorum possessio ventris nomine”, que proporcionava à mãe recursos financeiros necessários para garantir a alimentação e demais necessidades importantes, para que a criança nascesse saudável. Depreende-se, portanto, que a finalidade era exatamente garantir o nascimento e não ser condicionado a este[31].
3. O DIREITO À VIDA - início da vida
Se assistirmos ao espetáculo orquestral dos direitos humanos, a dignidade da pessoa humana será o maestro, enquanto máxima axiológica fundamental que alicerça e coordena os demais direitos e, certamente, o primeiro acorde será tocado pelo direito à vida.
Reconhecer a dignidade do homem perpassa o respeito pelos direitos que lhe são inerentes e que o Estado não pode negligenciar. Assim, a primeira expressão do respeito à pessoa humana é a inviolabilidade daquele direito anterior a todos os outros e possibilitador dos demais: a vida.
O direito à vida[32] é primordial, impulsionador e viabilizador do exercício de quaisquer outros direitos. Essa qualificação de essencialidade não decorre apenas da lógica cronológica dos fatos humanos, vamos além para perceber, nas palavras dos professores Canotilho e Vital Moreira, que "o direito à vida é material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto[33]”.
Dada à dinamicidade da vida humana, pode-se falar não apenas em um direito de conservação da vida já existente (direito de vida), mas também em um direito ao desdobramento da vida até a consecução do nascimento (direito à vida no complexo do direito ao nascimento), de forma que são vedados, em respeito a esse direito, atos que ameacem a natural evolução humana[34].
Dentro do arcabouço dogmático do direito á vida, destaca-se o direito à existência[35] entendido como o direito de permanecer vivo, de defender a própria vida, de tutelar todo o processo vital, que não pode ser interrompido senão pela morte espontânea e inevitável.
Desde o momento em que se determina a existência de vida humana[36], o Direito deve garantir e proteger contra atos que violem a dignidade dessa vida[37]. Daí surge o cerne da discussão envolta do início da vida. Quando começa a vida[38]? Onde estão os primeiros pontos do laço vital? Nessa resposta é que encontraremos os fundamentos iniciais para a tutela da vida intrauterina.
Apesar dessa discussão envolver principalmente concepções teológicas, entende-se que para uma resposta mais teórica e objetiva seja necessário abraçar os contributos advindos dos estudos científicos da embriologia[39].
O início do desenvolvimento humano[40] coincide com a fertilização, processo no qual o espermatozoide (gameta masculino) se une ao ovócito (gameta feminino) e dá origem ao zigoto, primeira célula humana. O zigoto é uma célula totipotente formada a partir dos cromossomos paterno e materno, de forma que possui contribuição genética em igual proporção de ambos os progenitores, mas em uma combinação cromossômica única e específica.
Após a formação do zigoto inicia-se a clivagem, que consiste no processo de múltipla divisão celular mitótica originando os blastômeros e quando há cerca de doze blastômeros o ser humano passa a ser denominado de mórula (a nomenclatura decorre da semelhança com a fruta amora devido ao conglomerado de pequenas células).
Depois será formada uma cavidade blastocística na mórula convertendo-a em um blastocisto formado por duas porções, uma externa denominada trofoblasto (dará origem à placenta) e uma interna embrioblasto (constituirá o embrião propriamente dito). Esse aglomerado celular irá ligar-se ao endométrio no processo denominado de nidação ou implantação, é nesse estágio que se iniciam as alterações hormonais femininas decorrentes do estado gravídico. Com a implantação completa do blastocisto na parede do útero, passa-se a denominação de embrião.
Devido à importância da nidação para garantir o prosseguimento do processo vital embrionário, muitas vezes considera-se que somente a partir dessa implantação uterina é que será iniciada a vida. Ocorre que a nidificação nada mais é que uma etapa[41], tal quais as outras, no processo de desenvolvimento humano que teve início desde a fecundação[42] e nem se pode tratá-la com essencialidade se tomamos como exemplo os casos de gravidez ectópica[43].
Nesses termos, não se pode negar que todas as características individualizadoras do ser humano em formação já podem ser codificadas naquela primeira célula zigótica originada na fecundação e, então, os momentos posteriores nada mais são que o desenrolar da vida humana já iniciada[44].
Muito embora seja notório o expressivo desenvolver da formação humana (partindo de uma única célula), cada etapa é apenas um momento na linha evolutiva, de forma que, após a concepção, cada fase posterior é um estágio diverso do mesmo ser humano[45].
Nas lições do professor catedrático da Universidade de Paris Jérôme Lejeune: "A genética moderna se resume num credo elementar, que é este: no princípio há uma mensagem, esta mensagem está na vida e esta mensagem é a vida... Por quê? Porque sabemos com certeza toda informação que definirá a um indivíduo...sabemos que todas as características estão escritas nas primeiras células. [46]"
Assim, somos a mensagem escrita naquela primeira célula e o processo de desenvolvimento que percorre a vida do ser humano nada mais é que a leitura do que já veio prescrito na primeira célula zigótica: sempre fomos o mesmo desde nossa primeira expressão celular.
3. PERSONALIDADE DESDE A VIDA EMBRIONÁRIA?
É consenso técnico-científico[47] que o início da vida humana coincide com o momento da concepção, mas essa solução biológica não afasta a discussão dogmática sobre considerar, ou não, o embrião como pessoa[48], como titular de personalidade jurídica[49].
Ser pessoa[50] é atributo essencial para o reconhecimento de direitos humanos, de forma que apenas o ser dotado de pessoalidade adquire qualificação jurídica garantidora da posse de direitos.
Personalidade[51] é a qualidade de ser pessoa, a qual o Direito não pode ignorar ou recusar, mas apenas constatar e respeitar a partir das suas normas. A personalização decorre do simples reconhecimento jurídico de uma qualidade já pertencente ao homem pelo simples fato de o ser; surge de uma realidade extralegal, amparada no Direito Natural e que o positivismo apenas reconhece, em respeito à centralidade da pessoa na órbita jurídica[52].
"A personalidade jurídica é a tradução forçosa, no mundo jurídico, da realidade da pessoa[53]” e, dessa forma, estabelecer a qualificação jurídica do nascituro enquanto ser dotado de personalidade é liame essencial para ditar seu perfil na ordem jurídica[54].
O estudo da personalidade jurídica abrange duas concepções diversas[55]: uma fundamentada na dogmática formal positivista e a outra no realismo jusnaturalista.
Para os adeptos do formalismo, a personalidade jurídica decorre de expressa previsão legal, não é necessariamente um atributo de todos os indivíduos humanos, depende do nascimento, de forma que o nascituro não possui a qualidade de sujeito de direito e o conceito de pessoa é um artifício jurídico utilizado para a imputação de direitos e obrigações.
A personalidade, nessa concepção, está intimamente relacionada ao caráter positivista do ordenamento, na medida em que cria uma ficção legal[56] que independe do caráter ontológico do homem. O indivíduo é, portanto, pessoa desde que a ordem normativa assim o reconheça.
A (não) identificação da pessoa jurídica singular com a essencial figura humana decorre do entendimento de que a personalidade jurídica não é qualidade inerente ao homem e, então, a qualificação como pessoa encontra forte dependência dos postulados de direito positivo. Nesse sentido, a concepção formalista afasta-se do caráter ontológico do homem e ampara-se no discurso jurídico convencionalista.
A personalização, portanto, delineia-se como um produto racional, originado de escolhas formais, à margem da realidade natural do homem. Apreende-se que nessa concepção as realidades não são assumidas tais quais elas são, mas sim a partir de construções artificiais, como um produto do "voluntarismo positivista[57]".
A concepção realista, por outro lado, assenta em três considerações fundamentais[58]: a) a coincidência entre pessoa natural e pessoa jurídica, se é pessoa ontológica também o é no sentido jurídico, já que a personalidade é um atributo inerente à essência humana; b) para a compreensão da condição ontológica é necessária a apreensão substancial da pessoa, capaz de sentir o seu caráter único e individual e a sua originalidade peculiar; c) além de agasalhar-se no princípio da dignidade da pessoa humana enquanto expressão de singularidade e respeito pelo homem, manifestando o valor intrínseco de todos os indivíduos.
O realismo substancialista assume que todo indivíduo humano possui personalidade jurídica derivada exatamente da qualidade inata enquanto homem, independente de qualquer estágio no processo de desenvolvimento biológico. Não há como considerar que um indivíduo humano não seja também pessoa no amparo legal, de forma que, se assim for, restará a sua reificação, já que no direito ou somos pessoas ou coisas.
No instante em que as teses positivistas vinculam uma qualidade inerente ao homem (personalidade) às circunstâncias especificadas na normatividade jurídica, encontra-se um abismo entre a realidade ontológica do ser humano e a sua realidade jurídica, culminando em uma leitura redutora e parcelada do homem e desatentas à substância precípua da pessoalidade.
Os defensores da concepção personalista consideram a personalidade jurídica atributo do indivíduo em estreita relação com sua qualidade natural humana, em reconhecimento do seu valor ontológico; é uma qualidade inerente a todos os homens, desde o momento da fecundação e o conceito de pessoa, segundo essa concepção, é "uma categoria-chave da ciência jurídica, necessária e adequada à representação do ser humano como sujeito de direito."[59]
Nesse percurso dogmático para a qualificação do embrião enquanto pessoa, merecem destaque duas teorias[60], as quais retiram a identidade pessoal do nascituro, fundadas em concepções predominantemente filosóficas, desconsiderando os atuais conhecimentos biotecnológicos.
A primeira delas é a teoria da animação mediata ou retardada[61], sua importância decorre da inspiração que proporciona em sistemas que adotam o modelo de prazos para a permissibilidade da prática abortiva[62], além de iluminar renomada doutrina moderna[63]. Essa teoria foi defendida por Tomás de Aquino, com os contributos Aristotélicos, e preconizava que o embrião apenas possuiria a alma racional depois de transcorridas algumas semanas; antes teria de possuir a alma meramente vegetativa e, sucessivamente, a alma sensitiva.
Consideravam-se períodos diferentes em relação ao gênero para a aquisição da animação racional, dependente da maturação fisiológica com a formação dos órgãos vitais (coração e cérebro), de forma que nos homens a alma racional adviria quando decorridos quarenta dias, enquanto nas mulheres apenas depois de sucedidos os noventa dias. Com as atuais pesquisas científicas desenvolvidas no âmbito da embriologia, entretanto, esta teoria demonstra-se carente de substrato técnico[64].
Outra teoria negatória da identidade pessoal do nascituro é a do filósofo australiano Peter Singer[65]. Segundo sua tese, há duas denotações para o termo “ser humano”: tanto pode designar o membro da espécie Homo sapiens, e para saber a espécie basta a avaliação da natureza dos cromossomos, como também compreender a ideia de pessoa como autoconsciente e possuidor da capacidade de relacionar-se com o meio.
Em aproximação da pessoa de Locke, caracterizada como ser pensante dotado de razão, Singer defende a concepção de pessoa[66] como aquele que conjugue duas qualidades essenciais: a autoconsciência e a racionalidade. Dessa forma, apenas aqueles que possuíssem essas qualificações poderiam ser considerados como pessoa na ordem jurídica excluindo, portanto, os nascituros e recém-nascidos, em apreço a uma denotação filosófica que afasta a pessoalidade da realidade concreta e real do homem.
Contrapondo-se à concepção que afasta a identidade pessoal do nascituro alegando argumentos voltados para a autoconsciência, Antonie SUAREZ[67] reflete a partir de situações da vida humana em que realizamos atividades nas quais os movimentos podem ser expressões de desejos ou apenas reações involuntárias.
O Autor exemplifica com o homem no ato de dormir, enquanto dorme o homem precisa ver respeitada a sua pessoalidade com base nos movimentos involuntários que realiza: respiração, movimentos na cabeça, lábios, mãos, etc. Esses movimentos espontâneos são do mesmo tipo daqueles realizados quando acordado, daí a dificuldade de distinguir quando realizados de forma consciente ou não. E a constatação de que a ação foi realizada com ou sem espontaneidade não pode ser determinante para o tratamento como homem[68].
3.1. Personalidade jurídica pré-natal e concessão de direitos aos embriões
A ordem civil da maioria dos países, em especial a luso-brasileira[69], apesar de vincular ao nascimento a aquisição da personalidade jurídica, tutela os nascituros garantindo-lhes determinados direitos. Dessa forma, ainda que não sejam pessoas na alma do ordenamento jurídico[70], os embriões possuem certos direitos, principalmente de caráter patrimonial.
Várias são as teorias que buscam justificar qual a situação jurídica dos embriões, já que, apesar de serem detentores de direitos, não possuem qualidade de pessoa, uma vez que essa designação depende do nascimento com vida.
As lições de Carvalho FERNANDES e Galvão TELLES[71] recusam a personalidade do nascituro invocando a teoria dos “direitos sem sujeitos”. Segundo esses Autores, enquanto pendente a incerteza quanto ao nascimento, os direitos deferidos ao embrião encontram-se sem sujeito, pois já saíram da esfera de titularidade do doador ou de cujos, mas ainda não pertencem ao nascituro.
Esse momento de incerteza é solucionado por duas vias: ou há o nascimento com vida e, assim, adquire-se personalidade e titularidade dos direitos; ou não nasce com vida e esses direitos terão o destino estabelecido pela norma jurídica, não havendo que se falar em qualquer titularidade do nascituro já que não nasceu e, portanto, não adquiriu personalidade.
Os Autores asseveram o caráter temporário da subsistência do direito sem um titular efetivo e aponta para a necessidade de meios protecionistas a serem utilizados nesse inter, a fim de garantir a conservação do bem objeto do direito.
Apontando a impossibilidade de haver um direito sem titular, já que todo poder implica necessariamente um agente que o possua, deve sempre estar “conexionado a um sujeito[72]”, MANUEL ANDRADE[73] propõe a teoria do estado de vinculação de certos bens, afirmando que o objeto de direito não estaria livre nem vinculado a nenhuma relação jurídica, ele encontrar-se-ia tutelado por uma relação jurídica enquanto pendente a concretização de um evento futuro, qual seja o nascimento com vida.
Defendendo a tese da personalidade retroativa, em solução à problemática dos direitos conferidos aos nascituros e afastando a tese dos direitos sem sujeito, por entender que todo direito subjetivo deve radicar em alguma pessoa, Dias MARQUES[74] propõe que a personalização tem efeitos sobre o passado, de forma que retroage ao momento da atribuição do direito, repondo um sujeito em uma relação a qual ele, de fato, não estava.
VARELA[75] doutrina de forma diversa considerando tratar-se de direitos de expectativa, os quais correspondem a uma realidade na qual a elevada probabilidade de consumação do direito encontra suporte jurídico que permita a formação de relações jurídicas como se os direitos já existissem, muito embora ainda presentes em uma esfera de expectativa.
Esses direitos seriam adquiridos por escalonamento, de forma que há uma aquisição “por degrau dos poderes que caracterizam o direito subjectivo para cuja constituição tende a expectativa ou o direito de expectativa[76].”
O Autor, vale ressaltar, justifica a condição do nascimento com vida em relação a aquisição da personalidade jurídica asseverando que o nascimento é fato notório e de fácil constatação e, ademais, afirma que, muito embora a vida inicie com a fecundação, as propriedades fundamentais do homem oriundas do desenvolvimento psico-somático (consciência, vontade, razão) está mais próxima do momento do nascimento.[77]
Essas teorias procuram justificar a situação jurídica do nascituro enquanto titular de alguns direitos, mas destituídos de personalidade, e, para tanto, agasalham-se em construções de caráter jurídico fictício, já que procuram uma justificativa maquiadora da realidade fática dos nascituros.
Ou seja, essas teses modelam a realidade substancial do embrião, enquanto ser humano, afastando a sua perfeita pessoalidade jurídica e, considerando apenas aspectos eminentemente teórico-positivistas, buscam justificar a incongruência normativa que afasta a personalidade pré-natal, muito embora reconheça direitos embrionários.
Amparadas no tecnicismo jurídico, essas teses afastam a pessoa como titular efetiva de direitos e conferem um tratamento indigno àquele que desde a concepção sempre foi, biologicamente, um ser humano.
Em que pese a justificativa jurídica apresentada por essas teses, a personalização do nascituro é aspecto essencial para a proteção concreta e subjetiva dos embriões, que tem respaldo na efetividade de direitos humanos, tal qual o direito à vida.
3.1.1 Laivos teóricos de personalização pré-natal
Algumas teorias, por outro lado, surgem mais sensíveis à personalização do embrião e, ainda que algumas não reconheçam plenamente a personalidade pré-natal, já demonstram importantes rudimentos de uma pessoalidade embrionária, em um movimento evolutivo das tradicionais concepções formalistas.
A tese de Capelo de SOUSA[78] parte da ideia do ciclo do bem da personalidade, compreendendo a dinamicidade da evolução humana, originando na concepção e perpetuando-se até o fim da memória pós-morte.
A vida humana é formada por uma evolução de processo físico-biológico e também de desenvolvimento volitivo e intelectual, que vai determinando a formação do ser humano no decorrer do ciclo vital, desde momentos de maturidade reduzida até esferas de consciência lapidada.
Acrescenta o Autor, relacionando a complexidade evolutiva da vida do homem e a conformação da personalidade que “a evolução física e a evolução espiritual do homem não se processam em separado mas concomitantemente e com influências recíprocas, sendo certo por isso, nomeadamente, que a personalidade humana não é mero dado da natureza mas também um ser permanentemente trabalhado[79].”
Nesses termos, dado o fluxo de desenvolvimento da vida humana, tem-se que a personalidade também vai sendo moldada na intensidade da evolução do homem, respeitando as fases e intensidades deste movimento.
Por conseguinte, a personalidade conferida ao nascituro, em atenção à teoria do ciclo do bem da personalidade, seria “parcial[80], reduzida e fraccionária”[81], de forma que apenas com o nascimento completo e com vida poderia ser conferida personalidade jurídica plena.
O Autor destaca a proteção da vida humana, prescrita no artigo 24°[82] da norma fundamental, independentemente do grau de evolução, tomado como uma tutela decorrente da própria natureza humana. Analisa-se apenas a estrutura e dinamicidade e, em se tratando dos nascituros, já é possível observar estrutura e dinâmica autônomas, ainda que haja dependência funcional em relação à genitora.
As lições de Oliveira ASCENSÃO[83] demonstram uma aproximação da personalidade ontológica e jurídica ao compreender que a pessoalidade legal é uma tradução forçosa, na ordem jurídica, da própria realidade enquanto ser humano. A própria pessoa é objeto de tutela jurídica e não apenas um objeto de proteção.
Os ensinamentos de Menezes CORDEIRO[84] demonstram que os atuais contributos da biologia afastam uma concepção personalística diferenciadora do período pré e pós-natal. E, em apreço a cultura humanista, propõe uma reformulação da exigibilidade do nascimento para a personalização, compreendendo que essa deve iniciar-se na concepção, em respeito ao “princípio básico de que todo ser humano é pessoa[85].”
Pais de VASCONCELOS doutrina em maior apreço à personalização do nascituro, asseverando que o embrião é um ser humano vivo com toda a dignidade que é inerente aos homens, “não é víscera da mãe[86]”. A sua proteção jurídica possui caráter subjetivo e a qualificação pessoal decorre da hominidade do nascituro e, perante sua qualidade de pessoa humana, já possui personalidade jurídica.
Postula que a personalidade jurídica do homem independe de uma formalização normativa, sendo um atributo pré-legal, anterior a qualquer consagração no ordenamento, em respeito à natureza ontológica humana.
Apesar de defender a personalidade embrionária, ao tratar da solução em caso de não nascimento com vida o Autor parece afastar-se delicadamente de uma plena personalização, se não vejamos:
O Autor doutrina que em caso de falecer antes do nascimento completo e com vida, o nascituro é tido como se nem tivesse chegado a existir, não desencadeia a sucessão e os direitos personalíssimos extinguem-se com o fim da personalidade. Os direitos de caráter patrimonial são extintos retroativamente, e “tudo se passa como se não tivesse chegado a existir”. Considera essa solução como uma ficção legal trazida como uma forma de simplificar a complexidade entre a vida e a morte.[87]
3.1.2. Personalização do nascituro
O processo ontogenético humano constitui-se de sucessivas fases que se iniciam na concepção, quando um novo ser humano é originado a partir das contribuições genéticas de ambos os genitores. A autogênese embrionária se processa em continuidade de forma que as fases posteriores não eliminam as anteriores, mas apenas as absorva e prossigam no desenvolvimento do ser humano já particularizado[88].
Assim sendo, a partir da primeira célula zigótica o que se percebe, então, é o desenvolvimento ininterrupto daquele que, desde a fecundação, sempre foi ser humano.
Considerando, cientificamente, que todos aqueles detentores de uma linha cromossômica específica são pertencentes à espécie humana, não há fundamento que afaste a humanidade do embrião amparando-se apenas no seu provisório ambiente de vida (intrauterino), já que não restam dúvidas científicas que desde a concepção sempre fomos seres humanos.
O nascimento, critério utilizado para vincular a aquisição da personalidade, é tão somente mais um evento, de grande importância, compreende-se, mas apenas mais uma etapa no desenvolvimento. Com o nascimento não se altera a natureza humana e, tampouco, se pode falar em independência já que por algum tempo o recém-nascido ainda dependerá de muitos cuidados[89].
A importância do nascimento está no relacionamento social[90], já que, uma vez retirado do espaço uterino, a criança passa a interagir diretamente com os demais entes sociais, ingressando na vida social.
Em que pese a relevância do nascimento como fato permissivo do contato interpessoal, não se pode vincular uma qualificação essencial do homem, enquanto pessoa ontológica, a um momento do seu desenvolvimento biológico que não altera a essencialidade e unicidade humana já oriunda na fecundação. Toda a vida intrauterina permite a interação fisiológica do ser humano com o desenvolver das células e tecidos, de forma que tudo se passa em um processo evolutivo que em nada altera a substancialidade da pessoa, sempre fomos a mesma pessoa, em conformação com o princípio da conservação biológica da identidade[91].
A condição ontológica da pessoa imprime a necessária dimensão jurídica, de forma que sendo pessoa por sua própria natureza, também o é na ordem do Direito. “A pessoa comporta em si própria, ex natura, a dimensão da subjetividade jurídica[92].” Ao Direito cabe apenas reconhecer, desde a concepção, uma qualidade pré-jurídica, inata a todo ser humano[93].
A personalidade jurídica não é uma criação normativa, mas sim o reconhecimento pelo Direito de uma realidade amparada em um direito inato ao homem, verdadeiro atributo da pessoa em sentido ontológico. A personalidade apreendida pelo ordenamento é inseparável da personalidade humana[94].
Dotados, portanto, de personalidade desde a concepção, os nascituros são titulares do direito à vida, especialmente em atenção ao respeito que o Direito deve conceder àqueles mais fragilizados e dependentes de proteção.
As normas que orientam a aquisição da personalidade não têm caráter constitutivo, mas apenas reconhecem um direito (anterior e superior)[95]. E então, sob as coordenadas da biologia, o Direito apenas norteia as exigências da vida e consolida na norma aquilo que já é de fato.
Nas precisas lições do Doutor Diogo Leite de CAMPOS[96], “assente na biologia, na essência do homem que é a vida, o Direito reconhece o início da personalidade jurídica no começo da personalidade humana – na concepção.”
Afastando-se da artificialidade jurídica e com amparo na essencialidade da pessoa humana, a personalização dependente do nascimento não encontra suporte na concepção realista, sensível à qualidade pessoal do embrião. Se é pessoa ontologicamente falando também o é em sentido jurídico. Não se justifica uma artificialidade terminológica que ignore a realidade e vitalidade humana oriunda na concepção.
4. "GRITO SILENCIOSO[97]" – breves apontamentos críticos da prática abortiva perante a personalização embrionária
Dignificando o valor da vida e compreendendo-a como impulsionadora da órbita dos direitos, sem o qual “todas as outras referências axiológicas perdem sentido e soçobram[98]”, o estudo da vida embrionária recebe cada vez maiores atenções. Isso porque, o nascituro, enquanto ser humano, expressa aquele primeiro ponto de todo o laço vital e, assim como o já nascido, é titular de personalização jurídica decorrente da sua hominidade ontológica.
A personalização embrionária, amparada na concepção realista substancial da personalidade, é vetor essencial na tutela da vida pré-natal, nomeadamente na proteção anti-abortiva[99].
Compreende-se que uma concepção subjetivista é capaz de imprimir maior tutela ao nascituro, reconhecendo juridicamente a sua qualidade de pessoa e atribuindo-lhe o respaldo e valor necessário na interação ponderativa.
“Numa época como a nossa, em que o aborto representa autenticamente <‘um método contraceptivo da Idade da Pedra>’, não parece desajustado exigir que se reconheça à totalmente indefesa criança ainda não nascida, como suum mais originário e indefectível, o direito à ‘<sua vida>’[100].
Compreender a vida embrionária apenas como um bem constitucionalmente tutelado pela ordem jurídica, no amparo de uma concepção objetiva, certamente diminui seu peso ponderativo perante os direitos da mulher gestante[101]. Por outro lado, uma concepção subjetivista do nascituro, capaz de compreender a personalização embrionária, confere maior respeito à vida do ser humano ainda não nascido, mas detentor da mesma pessoalidade conferida a todos os indivíduos[102].
No famoso caso norte-americano Roe v. Wade[103] (410 U.S. 113 (1973)) a suprema corte norte americana fundamentou a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas que proibia o aborto a partir da negação da subjetividade jurídica do nascituro, desconhecendo a sua pessoalidade e deu prevalência aos interesses da gestante. Para o Tribunal, o nascituro não seria pessoa, muito embora pudesse ver tutelado alguns dos seus direitos (concepção positivista da personalidade)[104].
O Tribunal Constitucional Português[105], quando instado a se pronunciar sobre a constitucionalidade da resolução sobre realização do referendo[106] que questionava os cidadãos quanto a despenalização da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras dez semanas a pedido da gestante, asseverou argumentos pautados na proteção objetiva da vida embrionária.
A fundamentação primordial da Corte Constitucional foi traçada em um raciocínio voltado para uma proteção não subjetivada da vida intrauterina, diferente do direito subjetivo à vida titularizado pelas pessoas[107], e a harmonização ponderativa com os interesses maternos. Reconheceu, o Tribunal, a constitucionalidade do referendo o qual culminou na realização da pesquisa popular e, após o resultado, na modificação da legislação penal a fim de incluir a descriminalização do aborto nos moldes da pergunta referendaria[108]-[109].
Estabelecer um patamar de superioridade do direito materno perante o direito do filho recai em uma desvalorização da vida humana[110], em contraposição à proteção da vida amparada, inclusive, em diversos tratados internacionais[111] , com particular destaque para a Convenção Interamericana de Direitos Humanos[112] que expressamente garante a tutela desde a concepção.
Ademais, o relatório-parecer sobre a experimentação com embrião humano emitido pelo Conselho Nacional de Ética para as ciências da Vida, assevera que “a vida humana merece respeito, qualquer que seja o seu estádio ou fase, devido à sua dignidade essencial. O embrião é em qualquer fase e desde o início, o suporte físico e biológico indispensável ao desenvolvimento da pessoa humana e nele antecipamos aquilo que há-de vir a ser: não há, pois, razões que nos levem a estabelecer uma escala de respeito[113].”
Argumentos voltados para o embrião como parte do corpo da mãe[114], como fundamento que legitima o direito a dispor do próprio corpo não encontram grande respaldo quando tomados em consideração a individualidade do nascituro e a sua independência fisiológica em relação à gestante[115].
Carneiro da FRADA assevera a importância da proteção embrionária perante a interrupção voluntária da gravidez com assento na pessoalidade pré-natal, afirmando: “Se nenhuma razão conseguiu demonstrar até hoje, inequivocamente, que o ser em gestação não é de considerar plena e essencialmente humano, nenhuma medida legislativa pode também importar o risco sério de representar a violação do direito à vida[116].”
Na harmonização de direitos conflitantes, a vida intrauterina, enquanto tutelada objetivamente, encontra na vontade materna um obstáculo quase instransponível. Isso porque, enquanto bem jurídico protegido, mas não pessoa detentora de direitos, a vida embrionária padece de maior valor e suporta o seu sacrifício perante a vontade da gestante[117].
Ainda que afaste a discussão da personalização embrionária, embora a reconheça, merecem destaque as lições de Paulo OTERO[118] quando compreende que o respeito à dignidade humana e a inviolabilidade da vida são fundamentos que acarretam importantes consequências na solução de tensão entre direitos, em especial na problemática abortiva.
Dessa forma assevera que, em se tratando da interrupção voluntária da gravidez, não se pode equacionar a vida embrionária com um suposto direito a dispor do próprio corpo[119]. Essa ponderação está fundamentada na individualidade do embrião, o qual não é um órgão ou parte do corpo da mulher e sim um ser humano com vida dotado da completude da sua pessoalidade, possuidor de uma codificação genética única e irrepetível.
Ademais, afirma que não haveria direitos fundamentais passíveis de contraposição perante o direito à vida, incluindo o período intrauterino e, dessa forma, não reconhece alegação de direito de recusar a procriação natural ou direito ao aborto.
5. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
O direito à vida humana é primordial e impulsionador de todos os outros direitos, é aquela primeira nota orquestral na partitura dos direitos humanos, é aquele sem o qual nenhum outro seria capaz de ser efetivado.
Para proteger a completude da vida é necessário firmar o ponto de início da vida humana e, conforme demonstrado a partir da biologia médica, o primeiro laço vital é dado na concepção.
O processo ontogenético constrói-se a partir de fases sucessivas que vão sendo realizadas em conjunto para consolidar a formação completa daquele ser humano já individualizado e particularizado desde a união das contribuições genéticas dos seus progenitores. Tudo se passa em caráter evolutivo, mas não transformativo. Sempre fomos os mesmos biologicamente.
A teoria amplamente adotada pelos países na construção da personalidade jurídica está ancorada no positivismo, de forma que se adquire a qualidade de pessoa para o Direito a partir do nascimento. Em um processo de artificialismo jurídico, onde nega-se a hominidade do embrião e posterga a personalização para um momento fixado na legislação.
A realidade humanista do embrião requer uma visão diferenciada que seja capaz de reconhecer o que a ciência já comprovou: a vida começa na concepção. O suporte científico ampara uma nova ideia de personalização voltada para o reconhecimento do homem enquanto pessoa em todas as fases da sua vida.
Desde a formação zigótica, o homem sempre foi o mesmo ser individualizado, com uma linha genética particular e que perdurará por toda sua existência. Não há razão que fundamente o abismo ontólogico que desconhece a personalidade de um ser humano ainda no ventre materno. Se a flecha da vida foi lançada desde a concepção, cabe ao Direito apenas reconhecer uma qualidade inerente ao ser humano, decorrente da simples humanidade: a personalidade.
Considerando, então, uma reconstrução da personalidade humana que seja capaz de reconhecer a pessoalidade embrionária, constrói-se um alicerce fundamental na proteção da vida intrauterina, afastando o pensamento figurativo da personalidade conformado na ordem jurídica.
Isso porque, enquanto a vida embrionária for considerada apenas como um bem de proteção constitucional objetivo, o ser humano não será tutelado em sua completude, já que, quando confrontado com outros direitos, como no caso do direito materno na discussão abortiva, os interesses do feto são quase sempre sopesados de forma diminuta.
Compreender-se que o embrião possui personalidade jurídica e, portanto, é detentor de direitos subjetivos próprios fortalece a proteção da vida humana, a medida que, no diálogo ponderativo com os direitos da mulher o embrião adquiriria maior força argumentativa e, consequentemente, reforçava a proteção da vida embrionária.
Assim sendo, propõe-se a transposição do círculo de objetividade que demarca a proteção da vida intrauterina e a consolidação da personalidade embrionária a partir da percepção ontológica humana, a fim de garantir uma proteção mais eficaz da vida pré-natal.
Se ainda restarem dúvidas quanto à personalização embrionária, em um sentimento conclusivo que se pretende ter transposto; se ainda se questiona a suficiência humana do nascituro para gozar do estatuto de pessoa, acolhe-se do postulado ético fundamental in dubio pro persona[120] para alicerçar a tutela da vida pré-natal e a pessoalidade do feto.
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[1] PLATÃO. A república. São Paulo, Livr. Exposição do Livro, s. d. p. 141 apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela Civil do Nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 18 e ARISTÓTELES. La Politique, Livre IV, Chapitre XVI, §10, trad. Thurot, Paris, Ed. Garnier, s. d., p. 191-192 apud Ibid., p. 19.
[2] MOORE, Kleith L.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia Básica. Tradução de Maria das Graças Fernandes Sales ... [et.al.]. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 10.
[3] O juramento de Hipócrates. disponível em <https://www.ordemdosmedicos.pt/?lop=cont eudo&op=67e103b0761e60683e83c559be18d40c&id=6b8b8e3bd6ad94b985c1b1f1b7a94cb2>
[4] JUSTO, A. Santos, Direito Privado Romano I – Parte geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos). 5. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2011. p.107-108; SAVIGNY, M. F. C. de. Sistema del Derecho Romano Actual... p. 185 e s.s.; PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Tomo I – Parte introdutória e geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 265-273; CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 85-86; PORCHAT, Reinaldo. Da pessoa physica em Direito Romano: sua condição natural, nascimento perfeito; sua condição civil, o status, in Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, Typ. Siqueira Nagel & Cia., 1913, ano 1911, v.19, p. 9-33 apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit. p. 24.
[5] Sobre a dimensão do status, conferir, com destaque, JUSTO, A. Santos, op. cit. p. 110 e s.s.
[6] D. 25, 4, 1, 1. (Apud JUSTO, A. Santos, op. cit. p. 107).
[7] Discute-se quanto à necessidade de haver o corte do cordão umbilical para concretizar da separação do ventre materno. Peixoto defende que, embora ainda preso ao cordão umbilical, já se considera nascido. O autor contrapõe a opinião de Pacchioni, por ele citado, segundo o qual, ainda que o recém-nascido tenha forma humana e seja viável ainda assim não poderá ser considerado como pessoa se ainda ligado à gestante pelo cordão umbilical. (In: PEIXOTO, José Carlos de Matos. Op. cit. p. 265 e nota 3).
[8] C. 6, 29, 3. (Apud JUSTO, A. Santos, op. cit. p. 108).
[9] D. 1, 5, 12. Justo (In: JUSTO, A. Santos, op. cit. p. 108) ao tratar dos requisitos da aquisição de personalidade, em específico a exigência de vida própria, aponta que o parto deveria ser considerado perfeito. Nesse específico aspecto, o Autor acaba por asseverar o requisito da viabilidade nos termos em que Porchat (PORCHAT, Reinaldo. Da pessoa physica em Direito Romano: sua condição natural, nascimento perfeito; sua condição civil, o status, in Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, Typ. Siqueira Nagel & Cia., 1913, ano 1911, v.19, p. 9-33 apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit. p. 25) considera, qual seja, relação direta com a maturidade fetal, decorrente do período gestacional mínimo.
[10] D. 1, 5, 14. (Apud JUSTO, A. Santos, op. cit. p. 108).
[11] Nas precisas lições de SAVIGNY: “pero hay que añadir que uma simple desviación de lãs formas normales de la figura humana, v. gr., um miembro de más o de menos, no ES obstáculo a la capacidad.” (In: SAVIGNY, M. F. C. de. Sistema del Derecho Romano Actual. trad. M. Ch. Guenoux ; pról. Don Manuel Durán y Bas; vertido al castellano por Jacinto Mesía, Manuel Poley. Granada: Editorial Comares, 2005. p.188). Conferir também PEIXOTO, José Carlos de Matos. op. cit. p. 266.
[12] Essa aptidão era verificada a partir do nascimento em tempo “normal”, em oposição aos nascimentos prematuros, esses tidos como inviáveis.
[13] SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit. p. 1573.
[14] ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit. p. 25-26. SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit. p. 1576-1577 aponta o prazo de 182 dias depois da concepção. O Autor, opositor do requisito da viabilidade, contrapõe-se a esse critério apontando, dentre outros argumentos, o caráter cíclico dessa doutrina, isso porque era impossível determinar o dia exato da concepção já que a forma de cálculo era realizada a partir do dia certo do nascimento.
[15] Sententiae, IV, 9, 1 (Apud PEIXOTO, José Carlos de Matos. op. cit. p. 271).
[16] Os que negam a necessidade de viabilidade fetal, por sua vez, entendem que a exigência feita para o ius liberorum é uma circunstância específica para garantir esse benefício à mãe e não para a aquisição de personalidade. PEIXOTO opõe-se a essa interpretação alegando sua fragilidade, pois entende que não haveria sentido excluir um filho capaz, entretanto imaturo, na contabilidade para fins da concessão do benefício. Notoriamente, em se tratando de benefício assistencial seria mais adequado computar ao invés de excluir o filho imaturo. Seria controverso exigir a maturidade para a concessão do benefício e ignorá-la quando da aquisição da personalidade.
[17] C. 6, 29, de postumis, 2. (Apud PEIXOTO, José Carlos de Matos. op. cit. p. 271).
[18] Nas precisas palavras de PEIXOTO, aborto designava “o feto imaturo, quer nascesse vivo, quer morto”. (In: op. cit. p. 271). O texto, segundo o Autor, referia-se apenas ao feto imaturo que nascesse vivo, já que em se tratando de natimorto seria indiferente já que não poderia ser sujeito de direitos.
[19] PEIXOTO, José Carlos de Matos, op. cit., p. 272.
[20] SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit., p.1573-1586.
[21] L. 2, 3. C. de posthumis (VI 29) (Apud SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit., p. 1577)
[22] D. 26, 5, 20 pr (Apud JUSTO, A. Santos. op. cit., p. 108)
[23] ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 27. A Autora destaca também o D. 1. 5. 26, o qual afirma que “aqueles que estão no útero, em quase todo o direito civil, são tidos por nascidos e a eles se entregam as heranças legítimas”.
[24] I. 1. 4 pr. e D. 1, 5, 12, respectivamente (Apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 27-28).
[25] D. 11, 8, 2. (Apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 29. Citado também por SAVIGNY, M. F. C. de. op. cit., p. 187; PEIXOTO, José Carlos de Matos. op. cit., p. 274.
[26] D. 48, 19, 3 e D. 1, 5, 18 (Apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 29).
[27] PORCHAT, Reinaldo. Da pessoa physica em Direito Romano: sua condição natural, nascimento perfeito; sua condição civil, o status, in Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, São Paulo, Typ. Siqueira Nagel & Cia., 1913, ano 1911, v.19, p. 9-33 apud ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 30.
[28] Amparado principalmente nos textos:
L. 9, §I ad L. Falc. (XXXV,2): “…partus nondum editus homo non recte fuisse dicitur.”
L. I, §1, de inspic. Ventre (XXXV,4): “... partus enim, antequam edatur, mulieres portio est, vel vicerum.”(destaque nosso)
(SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit., p. 189, n. 21).
[29] O Autor invoca dois textos do direito romano que comprovam a concepção ficcionista protetora dos nascituros:
L. 26 de statu hom. (I, 5): “Qui in útero sunt, in toto pene jure civili intelliguntur in rerum natura esse.”
L. 231 de V. S. (L. 16): “Quod dicitur, eum, qui nasci speratur, pro supérstite esse tunc verum est, cum de ipsius jure quaeritu: aliis autem non prodest nisi natus.” (destaque nosso)
(SAVIGNY, M. F. C. de, op. cit., p. 190, n. 22).
[30] ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 30-31.
[31] Embora PEIXOTO não afirme de forma expressa que o nascituro pode ter personalidade, pode-se depreender essa interpretação quando afirma que “embora a personalidade comece em regra com o nascimento, casos há, todavia, no direito clássico, em que o seu início remonta ao tempo da concepção: para certos efeitos, o nascituro já é pessoa.” (Destaque nosso) O Autor apresenta, nesses termos, um posicionamento intermediário entre o que afirma Porchat e Almeida. In: PEIXOTO, José Carlos de Matos, op. cit., p. 273.
[32] O direito à vida está inserido nos direitos de primeira dimensão, os quais se caracterizam por protegerem o individualismo humano, estão centrados na essencialidade do homem e são tutelados em face do Estado, colocando barreiras essenciais na atuação da coletividade. Sobre a qualificação das gerações de direitos humanos, conferir, por todos, HAARSCHER, Guy. A filosofia dos direitos humanos. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 41-55.
[33] CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada - Vol. 1. 4.ed. revista e reimpressão. Coimbra: Coimbra editora, 2014. p. 447.
[34] SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 207-208.
[35] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 198-199.
[36] Sobre o desenvolvimento da vida embrionária em uma leitura biológica, jurídica e até mesmo lírica, contada com o sentimentalismo daquele que também se sente homem desde os momentos da vida pré-natal, conferir: CAMPOS, Diogo Leite de. A criança-sujeito: A vida intra-uterina. In: Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina, 2004. pp. 57-74.
[37] OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: Um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999. p.36-37.
[38] “é o momento da origem da vida que torna imperativo o postulado constitucional da sua inviolabilidade e é ainda o momento de origem da vida que faz ganhar eficácia concreta e individual o princípio da dignidade humana”. (OTERO, Paulo. Direito da vida: relatório sobre o programa, conteúdos e métodos de ensino. Coimbra: Almedina, 2004. p. 82).
[39] "(embriologia) desenvolve o conhecimento relativo ao início da vida humana e às mudanças que ocorrem durante o período de desenvolvimento pré-natal." In: MOORE, Kleith L.; PERSAUD, T. V. N, op. cit., p. 9.
[40] A explicação biológica do início e desenvolvimento da vida humana foi extraída, em apertada síntese, da obra: MOORE, Kleith L.; PERSAUD, T. V. N, op. cit., p. 18 e s.s..
[41] “Embora a nidação seja uma etapa fundamental na evolução do embrião apenas consubstancia mais uma modalidade de dependência do ser humano em relação à sua progenitora – como se verifica em diversas fases da vida pré-natal e pós-natal – permanecendo salvaguardada a autonomia intrínseca da nova pessoa.” (BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao Património Genético. Reimpressão da edição de 1998. Coimbra: Almedina, 2006. p.71.)
[42] ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e, op. cit., p. 117 e s.s.
[43] Trata-se dos casos em que a gestação ocorre nas trompas e, apesar das dificuldades de sucesso gestacional, a ciência médica tem notícia de diversos casos em que resultou no nascimento de crianças saudáveis. É exemplo o caso inglês do casal Paula Cawte e Paul Lounds, que levou a termo uma gestação ectópica, noticiado no portal eletrônico <http://www.dailymail.co.uk/health/article-2008476/The-mother-risked-ectopic-baby.html#ixzz1QUR tEQoB>. Noticia-se, também, o caso brasileiro de uma mulher que deu à luz a uma criança e no momento do parto observou-se que a gestação havia desenvolvido na região abdominal, precisamente nos ovários. In: http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/01/bebe-de-gestacao-abdominal-nasce-saudavel-no-para.html.
[44] “Fui um embrião; aquele embrião. De facto, sou aquele embrião, tal como sou o feto de oito meses, ou a criança de três anos ou o jovem de 25 anos. A identificação é perfeita”. (BARRA, Rodolfo-Carlos. Embrião Humano, estatuto jurídico do. In: Léxico da Família. Cascais: Principia, 2010. pp. 303-312. p. 309).
[45] Nas ilustres palavras de Diogo Leite de Campos, ao poetizar a singularidade humana desde a concepção, compreendendo que mudamos com o tempo, mas que preservamos nossa essência, diz: “Não me reconheceria na aparência externa do meu primeiro eu, pequeno aglomerado de células. É certo que, recém-nato, também não me reconheceria no que sou hoje. Mas a minha-tua história inicia-se com o encontro de duas células. A partir desse momento, começa a tua-minha história de ser vivo da espécie humana (ser humano)”. (CAMPOS, Diogo Leite de, op. cit., p. 58).
[46]Apud MELLO, Gustavo Miguez de. Direito Fundamental à vida. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coordenação). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. pp. 263-281. p. 267.
[47] Conforme demonstrado no tópico anterior.
[48] Em um percurso jurídico biológico, Antonie Suarez (Tradução de Urbano Ferrer) fundamenta o desenvolver da vida humana desde a primeira célula zigótica a fim de comprovar que sempre fomos o mesmo ser, originado da fecundação. O Autor segue uma linha de raciocínio voltada para a confirmação de que o crescimento contínuo humano apenas representa um processo biológico que em nada descaracteriza o que sempre fomos desde a concepção: nossas indicações genéticas permanecem. Pretende o Autor demonstrar que o embrião é pessoa já que o adulto é pessoa e, partindo do consenso de que o ser humano adulto é pessoa constrói a personalização do nascituro. (SUAREZ, Antonie. El embrión humano ES uma persona. Una prueba. In: Cuadernos de Bioética. Vol. XIII, n° 47-49, 2002. pp. 19-38).
[49] A solução legislativa adotada pela grande maioria dos países vincula a aquisição da personalidade jurídica ao nascimento com vida. Essa concepção está interligada aos contributos filosóficos de Aristóteles e a teorização da alma. Em síntese, o ser perpassava três momentos, a alma vegetativa, a alma sensitiva e, por último, a alma pensante, esta adquirida com o nascimento. CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano 67, Coimbra, 1991. pp. 129-223. p. 160.
[50] “Pessoa é aquele ente que, em virtude da especial intensidade do seu acto de ser, autopossui a sua própria realidade ontológica, em abertura relacional constitutiva e dimensão realizacional unitiva.” (GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e Direitos da personalidade. Fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008. p. 64).
[51] Sobre os tipos de personalidade psíquica e ôntica ; moral e política, conferir, respectivamente, GONÇALVES, Diogo Costa, op. cit., p. 64 e s.s. e CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano 67, Coimbra, 1991. pp. 129-223. p. 138 e 159; CAMPOS, Diogo Leite de. A gênese dos direitos da pessoa. In: Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina, 2004. pp. 13-55. p. 23-55.
[52] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2012. p. 33-35.
[53] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil - Teoria Geral - vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 48.
[54] A constatação de que o nascituro possui personalidade jurídica denota importância, inclusive, em aspectos relacionados ao aborto, o qual será tratado em tópico específico.
[55] As distinções dessas concepções foram obtidas a partir dos contributos teóricos obtidos na obra do Professor Mário Emílio F. Bigotte CHORÃO (O problema da natureza e tutela jurídica do embrião humano à luz de uma concepção realista e personalista do direito. In: O Direito. Lisboa, Ano 123, n. 4 (out./dez. 1991). pp. 571-598. p. 582-584; Concepção realista da personalidade jurídica e estatuto do nascituro. In: O Direito. Lisboa, Ano 130, n. 1-2 (jan./jun. 1998). pp. 57-88. p. 61 e s.s.. Sobre as orientações normativistas e realistas da personalização, conferir também MARQUES, J. Dias. Teoria Geral do direito civil. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora Limitada, 1958. p. 31-32.
[56] Nas lições de Reis Marques, a ficção legal é “um artifício jurídico em que o legislador assume como existente um facto que é desmentido pela realidade.” Continua o Autor, “as ficções exprimem factos contrário à natureza das coisas.” No instituto da personalidade jurídica originada com o nascimento, percebe-se uma ficção jurídica, uma vez que a realidade demonstra o início da vida desde a concepção e, sendo pessoa, necessariamente é possuidor de personalidade. (MARQUES, Mário Reis. Introdução ao Direito. vol. 1. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 389-392).
[57] CHORÃO, Bigotte. Concepção realista da personalidade jurídica e estatuto do nascituro. In: O Direito. Lisboa, Ano 130, n. 1-2 (jan./jun. 1998). pp. 57-88. p. 62, n. 3. Considerando que essa concepção se afasta da realidade natural das coisas, o Autor propõe qualificar essa concepção como "irrealista".
[58] Ibid., p. 62-63.
[59] CHORÃO, Mário Bigotte. O problema da natureza e tutela jurídica do embrião humano à luz de uma concepção realista e personalista do direito. In: O Direito. Lisboa, Ano 123, n. 4 (out./dez. 1991). pp. 571-598. p. 584.
[60] Em que pese haverem outras teses que afastem a pessoalidade do nascituro, conforme enumeração exemplificativa trazida por CHORÃO (Ibid., p. 588).
[61] LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Tomemos a sério os direitos do embrião e do feto. In: Cadernos de Bio-ética. N° 14 – Abril / julho. Coimbra, 1997.p. 25-26; CHORÃO, Mário Bigotte O problema da natureza e tutela jurídica do embrião humano à luz de uma concepção realista e personalista do direito. In: O Direito. Lisboa, Ano 123, n. 4 (out./dez. 1991). pp. 571-598. p. 589-591.
[62] Portugal é um dos países que adota, atualmente, o modelo de prazos no regime penal da interrupção voluntária da gravidez. Esse modelo caracteriza-se por descriminalizar o aborto dentro de um determinado período de tempo gestacional, diante da simples decisão da mulher, independentemente de qualquer indicação ou motivo. O outro modelo é o da indicação, no qual a não punibilidade do aborto está condicionada à verificação de determinadas justificativas indicadas na lei. Ainda que esse modelo indique determinados prazos, a matriz da não punibilidade encontra-se nas indicações estabelecidas pela norma. Sobre a diferenciação desses modelos, conferir LOUREIRO, José Carlos Simões Gonçalves. Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 74. Coimbra, 1998. p. 336-339. Observar que atualmente houve modificação na legislação criminal portuguesa, de forma que Portugal não se encontra mais em um modelo de indicações, como coloca o ilustre Autor, mas sim em um sistema de prazos devido à nova formulação escrita do artigo 142 do Código Penal Português, modificado pela Lei 16/2007.
Artigo 142: 1—Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: [...] e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez. (destaque nosso).
[63] CANOTILHO e Vital MOREIRA doutrinam que a vida humana enquanto bem jurídico constitucionalmente protegido envolve a proteção da vida pré-natal. Entretanto, compreendem que enquanto a vida pré-natal é protegida na qualidade de bem jurídico, ela possui tutela diferente do direito à vida, de forma que essa diferenciação terá respaldo em solução de colisão de direitos ou interesses constitucionais. Continuam, ainda, estabelecendo que a vida intrauterina não tem a mesma proteção em todas as suas fases (zigoto ao nascimento). In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital, op. cit., p. 449.
[64] CHORÃO analisa a teoria Tomasiana no atual cenário da embriologia humana e, reconhecendo que a alma surge no momento em que o corpo começa a se formar, conclui que a alma estaria presente desde a formação do zigoto. (CHORÃO, Mário Emílio F. Bigotte. Concepção realista da personalidade jurídica e estatuto do nascituro. In: O Direito. Lisboa, Ano 130, n. 1-2 (jan./jun. 1998). pp. 57-88. p. 77-78, n. 24.
[65] A teoria de Peter Singer foi retirada predominantemente da sua obra Ética Prática. SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução Álvaro Augusto Fernandes. 3. ed. Lisboa: Gravida, 2012.
[66] Desagregando a terminologia pessoa para todos os membros da espécie humana, o Autor ampara a origem do termo latino “pessoa” que designava as máscaras utilizadas no teatro clássico, de forma que o ator utilizando da máscara demonstrava interpretar um personagem. (SINGER, Peter, op. cit., p. 107). Percebe-se, então, a ideia de pessoalidade desprendida da realidade natural humana.
[67] SUAREZ, Antonie, op. cit., p.31-34.
[68] “En realidad, cada uno de nosotros exige que los demás nos reconozcan como persona, com entera independencia de que perciban nuestros deseos.”(SUAREZ, Antonie, op. cit., p. 32)
[69] Código Civil Brasileiro:
Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal
Art. 1.779. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar.
Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; [...]
Código Civil Português:
Artigo 66.º (Começo da personalidade)
1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.
Artigo 952.º (Doações a nascituros)
1. Os nascituros concebidos ou não concebidos podem adquirir por doação, sendo filhos de pessoa determinada, viva ao tempo da declaração de vontade do doador.
2. Na doação feita a nascituro presume-se que o doador reserva para si o usufruto dos bens doados até ao nascimento do donatário.
Artigo 1826.º (Presunção de paternidade)
1. Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe.
Artigo 1854.º (Tempo de perfilhação)
A perfilhação pode ser feita a todo o tempo, antes ou depois do nascimento do filho ou depois da morte deste.
Artigo 1878.º (Conteúdo das responsabilidades parentais)
1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
Artigo 2033.º (Princípios gerais)
1. Têm capacidade sucessória, além do Estado, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, não exceptuadas por lei.
Artigo 2240.º (Administração da herança ou legado a favor de nascituro)
2. Se o herdeiro ou legatário estiver concebido, a administração da herança ou do legado compete a quem administraria os seus bens se ele já tivesse nascido.
[70] Segundo os autores que negam a personalidade jurídica do nascituro.
[71] FERNANDES, Luís Alberto Carvalho. Teoria geral do direito civil I: introdução, pressupostos da relação jurídica. 6. ed. revista e atualizada. Lisboa: Universidade Católica, 2012. p. 201-2016 (p. 205-206); FERNANDES, Luís Alberto Carvalho. Lições de direito das sucessões. 4. ed. revista e atualizada. Lisboa, Quid Juris?, 2012. p. 159-161 e TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao estudo do direito. vol II. 10 ed. reimpressão. Coimbra: Coimbra editora, 2010. p. 164 e s.s. (p. 167, n. 239).
[72] ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica. Sujeitos e objetos. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2003. p. 34-35 (p.35).
[73]No mesmo sentido PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 4. ed. Por: António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p. 1976-198 e p. 202-203.
[74] MARQUES, J. Dias, op. cit., p. 31 e s.s. e 53 e s.s.
[75] VARELA, Antunes. A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil. In: Estudos em homenagem ao professor doutor Pedro Soares Martínez. Vol. 1 – vária. Coimbra: Almedina, 2000. pp. 619-634. p. 626-630 e VARELA, Antunes; LIMA, Pires de. Código Civil Anotado. Vol. 1 (artigos 1° a 761°). 4. ed. revista e atualizada. Coimbra: Coimbra Editora, 1987. p. 33 a 36 (artigo 2033°).
[76] VARELA, Antunes, op. cit., p. 627.
[77] VARELA, Antunes, op. cit., p. 632-633. Discordamos do pensamento do Autor, uma vez que a ciência médica já tem demonstrado o início da vida humana desde a concepção e não haveria razões que justificassem uma arbitrariedade jurídica com o intuito de diminuir a tutela vital fundamentada apenas na suposta dificuldade em demarcar com exatidão o dia da fecundação ou, com maior repulsa, assentar em aspectos eminentemente fisiológicos, os quais apenas demonstram um desenvolvimento daquele ser que já é, de fato, homem desde quando concebido.
[78] SOUSA, Rabindranath Capelo de, op. cit., p. 155 e s.s. e p. 361 e s.s.
[79] Ibid., p. 156.
[80] O Autor aponta que o nascituro possui plenamente personalidade física e moral e apenas a personalização jurídica que é incompleta. Ibid., p. 160-161.
[81] Ibid., p. 362.
[82] Artigo 24° da Constituição da República Portuguesa: A vida humana é inviolável.
[83] ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit., p. 40-48.
[84] CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. Parte geral. vol. 1. Tomo III. 2. pré-edição. Coimbra: Almedina, 2002. p. 106-107.
[85] Ibid., p. 107.
[86] VASCONCELOS, Pedro Pais de, op. cit., p. 65.
[87] Destaca-se importante crítica trazida por Tiago Figo Freitas, quando afirma que a teoria de Pais de Vasconcelos não se diferencia substancialmente daqueles que entendem o nascimento como uma condição resolutiva, já que, segundo o Autor, os efeitos patrimoniais podem ser eliminados retroativamente se o nascituro não nascer. Freitas, questiona a tese de Pais de Vasconcelos ao afirmar a personalidade como uma qualidade incondicionável do homem mas, por outro lado, dotada de uma condição resolutiva averiguada nas soluções do Autor para o não nascimento (FREITAS, Tiago Figo. A tutela juscivilística da vida pré-natal. O conceito de pessoa revisitado. Coimbra: Coimbra Editora, 2013).
[88] GRECCIA, Elio. Manual de Bioética: fundamentos e ética biomédica. Tradução de Mário Matos. Cascais: Princípia, 2009. p. 535.
[89] VASCONCELOS, Pedro Pais de, op. cit., p. 64-66.
[90] O homem antes de ser um ser social, e essa relação na coletividade é permitida a partir do nascimento, é primeiramente um ser singular, donde extrai-se que a “personalidade não depende do estatuto social”. CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano 67, Coimbra, 1991. pp. 129-223. p. 173.
[91] Como decorrência imediata desse princípio tem-se que: todo embrião humano é pessoa (a mesma que o adulto, o qual origina-se de um embrião que desenvolveu-se em condições favoráveis) e não se pode ignorar que os óvulos fecundados são pessoas. SUAREZ, Antonie, op. cit., p. 34.
[92] CAMPOS, Diogo Leite de; BARBAS, Stela. O início da pessoa humana e da pessoa jurídica. In: Revista da ordem dos advogados. Ano 61, Lisboa, 2001. pp. 1257-1268. p. 1259.
[93] “[...] el Derecho positivo propriamente no atribuya, sino reconozca la subjetividad jurídica de los seres humanos, que cada uno de éstos tiene como propria.”(AGUIRRE, Carlos Martínez de. En torno al concepto jurídico de persona (uma contribuición teórica para la determinación del estatuto jurídico del concebido no nascido). In: Cuadernos de Bioética. Vol. XIII, n° 47-49, 2002. pp. 43-54. p. 46.)
[94] BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao Património Genético. Reimpressão da edição de 1998. Coimbra: Almedina, 2006.p. 72 e s.s.
[95] CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano 67, Coimbra, 1991. pp. 129-223. p. 160-164.
[96] Ibid., p. 162.
[97] O título desse tópico é sugerido pelos estudos realizados por Bernard Nathanson, médico norte americano que realizou milhares de abortos e que, posteriormente, repensou seu comportamento e escreveu alguns trabalhos retratando a realidade abortiva. Em sua obra "the hand of god", o médico descreve as técnicas utilizadas para a interrupção da gravidez e conta um caso exemplificativo do método da aspiração; em seu exemplo retrata a experiência que acompanhou por meio de ultra-som da atuação de uma equipe médica americana. Quando o aspirador foi introduzido no útero materno o feto tentava desviar-se e observou-se uma aceleração nos batimentos cardíacos quando o aparelhou o encontrou. Quando os seus membros foram retirados sua boca abriu-se em um "grito silencioso" - nome que intitulou outro estudo do médico. (MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito do ser humano à vida. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coordenação). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. pp. 21-34.p. 30-31).
[98] BRONZE, Fernando José. A metodonomologia entre a semelhança e a diferença (reflexão problematizante dos pólos da radical matriz analógica do discurso jurídico). Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 174.
[99] A descriminalização da interrupção voluntária da gravidez é assunto que envolve uma ampla discussão. Desmistificando os argumentos a favor do direito da mulher a abortar, LOUREIRO aponta as falácias em que incorrem os defensores da despenalização. (LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Aborto a pedido: seis falácias e outras notas. In: Vida e Direito: reflexões sobre um referendo. Cascais, 1998. pp. 67-70).
[100] BRONZE, Fernando José, op. cit., p. 174. O Autor, entretanto, aponta que no diálogo ponderativo ditado pela atual consciência jurídico-cultural, a valoração dos direitos nas soluções de descriminalização do aborto estariam justificadas (p. 175).
[101] A percepção objetiva de tutela da vida intrauterina tem sido utilizada como fundamento em discussões quanto à interrupção voluntária da gravidez. Aqui, sugerimos a terminologia de Diogo Leite de Campos quando qualifica a sociedade europeia atual como "autofágica": "devora-se a si própria, nas pessoas dos mais fracos, dos indefesos,daqueles cujos gritos ninguém houve". (CAMPOS, Diogo Leite de. O estatuto jurídico do embrião. In: Revista da Ordem dos Advogados, Ano 56. Lisboa, 1996. pp. 877-886. p. 878).
[102] “Em los debates sobre el aborto [...] no está en juego sólamente la vida de los no nascidos, sino la vida de cada uno de nosotros.” (SUAREZ, Antonie, op. cit., p. 38.)
[103] Para maiores desenvolvimentos desse julgado, destacando os elementos jurídicos e apontamentos críticos, conferir MNOOKIN, Robert H.; WEISBERG, D. Kelly. Child, family and State. Problems and materials on children and the law. 4. ed. New York: Aspen Law and Business, 2000. p. 5 e s.s.
[104] Ronald Dworkin, partindo desse caso norte Americano (Roe v. Wade), apresenta uma análise do aborto transversal à personalização do feto e às consequentes atribuições de direitos aos embriões. O Autor traz argumentos voltados pra compreensão do respeito pelo valor intrínseco da vida humana que está partilhado no sentimento social, mas que deve ser densificado por cada indivíduo, de forma que cada pessoa, de acordo com suas convicções, poderá posicionar-se perante o aborto e, dessa forma, se o Estado penaliza o aborto está a impor suas próprias convicções. (DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003). A respeito da teoria de Dworkin sobre o aborto, conferir também HECK, José N. Principialismo Bioético: A posição de R. Dworkin sobre o aborto e eutanásia. In: Revista Etic@, vol. 6, n. 2. UFSC: Florianópolis, 2007. pp. 217-237. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/viewFile/17448/16070>.
[105] Sobre a realidade jurídica do aborto em Portugal, conferir as breves linhas explicativas de LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Aborto, Direito ao (situação portuguesa). In: Léxico da Família. Cascais: Principia, 2010. pp. 23-26. Conferir também a análise jurisprudencial da problemática do aborto na perspectiva do direito constitucional à vida elaborada por Jorge Miranda e Rui Medeiros (MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada: introdução geral, preâmbulo. Artigos 1° ao 79°. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.p. 503 e s.s.).
[106] Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República (publicada no Diário da República, I Série, de 20 de Outubro de 2006).
Propõe a realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115º e da alínea j) do artigo 161º da Constituição da República Portuguesa, apresentar a S. Ex.a o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
“Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”
Aprovada em 19 de Outubro de 2006.
O Presidente da Assembleia da República, Jaime Gama.
O Tribunal anteriormente já havia se pronunciado perante uma outra proposta de referendo com o mesmo teor, no acórdão n° 288/98.
[107] O Tribunal é enfático ao ponderar que a vida intrauterina não possui tutela similar à vida extrauterina, especialmente fundada na concepção objetivista do embrião. “Nem a inviolabilidade da vida humana nem sequer a necessidade de protecção da vida intra‑uterina impõem especificamente uma tutela penal idêntica em todas as fases da vida” (Acórdão 617/2006, Tribunal Constitucional Português, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html, p. 19)
[108] O Tribunal Constitucional Português tem postulado esse entendimento pela tutela objetiva da vida intrauterina em acórdãos anteriores (Acórdão n° 25/84, acórdão n° 85/85 e acórdão n° 288/98), pelo que merece destaque as próprias linhas esboçadas pela Corte: “entende-se que a vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida propriamente dito — que só cabe a pessoas —, podendo portanto aquele ter de ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou com outros valores constitucionalmente protegidos.” (Acórdão 85/85, Tribunal Constitucional Português, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19850085.html. p. 4).
[109] Vera Lúcia Raposo, em estudo intitulado "O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo", aponta, dentre outras dimensões do direito à vida, as principais decisões desse Tribunal no tocante à vida embrionária. Demonstra a Autora que o Tribunal tem se esquivado de um posicionamento firme e claro a respeito da aplicação do artigo 2° da Convenção europeia dos Direitos Humanos para os embriões. (RAPOSO, Vera Lúcia. O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo. In: Jurisprudência Constitucional. n° 14. Abril/Junho, 2007. pp. 59-87. p.76 e s.s.).
[110] “[...] os direitos da mulher não lhe conferem direito sobre a vida de outrem. Não estando aqui em jogo a sua vida ou saúde, estaremos perante um conflito aparente. [...] Atenta à especial importância do bem da vida não se vê como não terá, nessas hipóteses de lhe ser reconhecida prevalência sobre a autodeterminação da mulher.”(LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 74. Coimbra, 1998. p. 381).
[111]Declaração universal dos direitos do homem
Artigo 3- Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Artigo 2° - Direito à vida
1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.
Carta de Direitos Fundamentais da União Européia
Artigo 2 - Direito à vida
1 - toda pessoa tem direito à vida.
Pacto internacional sobre os Direitos civis e políticos
Artigo 6 - 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.
Sobre a proteção do embrião nas constituições e documentos internacionais, conferir RAPOSO, Vera Lúcia; PRATA, Catarina; OLIVEIRA, Isabel Ortigão. Humans rights in today's ethics: Human rights of unborn (embryos and foetus)? In: Cuadernos constitucionales de la cátedra fadrique furió ceriol. n° 62-63. pp. 95-111. Disponível em: <http://www.academia.edu/7823234/_Human_Rights_in_Today_s_Ethics_Human_Rights_of _the_Unborn_Embryos_and_Foetus_>. p. 100-104.
[112] Artigo 4.º Direito à vida
Toda a pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
[113] Disponível em: http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1273059306_P015_ExperimentacaoEmbriao.pdf
[114] Oliveira ASCENSÃO doutrina que essa argumentação é inadmissível por ignorar o estatuto especial do embrião. Dada a singularidade do nascituro, o Autor afasta o mero consentimento materno como elemento permissivo do aborto. (destacamos que atualmente em Portugal, até as 10 primeiras semanas o aborto não é penalizado, permitindo a sua realização pela simples vontade da gestante). (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito e Bioética. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano 51. Lisboa, 1991. pp. 429-458. p. 449, n. 34). No mesmo sentido: LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 74. Coimbra, 1998. p. 344.
[115] A regulação do desenvolvimento embrionário não surge da interação fisiológica com o corpo materno, mas sim da informação interna genética própria do nascituro. SUAREZ, Antonie, op. cit., p. 27-28.
[116] FRADA, Manuel A. Carneiro da. Aborto e Direito: reflexões a propósito de um referendo. In: Vida e Direito: reflexões sobre um referendo. Cascais, 1998. pp. 102-106. p. 103.
[117] Nesse universo argumentativo da ponderação, a superioridade conferida ao direito da mulher conferida em supostas justificativas culturais e sociais muitas vezes demonstra implicitamente “um opção deliberada por uma ‘metafísica de avestruz’ que se compraz em renunciar à possibilidade de um conhecimento objetivo da realidade e que prefere o pântano do cepticismo metódico à luz do entendimento verdadeiro”. (FRADA, Manuel A. Carneiro da, op. cit., p. 104).
[118] OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: Um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999. p. 45-46.
[119] Leite de Campos assevera que um dos planos argumentativos daqueles que concordam com a privação da vida intrauterina está pautado na negação do “ ‘contínuo’” entre pessoa em sentido biológico, a pessoa humana e a pessoa jurídica”. Continua o Autor destacando que no plano dos interesses em conflito não há interesse superior à vida humana. (CAMPOS, Diogo Leite de. O estatuto jurídico do embrião. In: Revista da Ordem dos Advogados, Ano 56. Lisboa, 1996. pp. 877-886. p. 885).
[120] OTERO, Paulo. A proibição de privação arbitrária da vida. In: Vida e Direito... p. 148.
Advogada e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, menção em Direito Constitucional, pela Universidade de Coimbra – Portugal, bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, Mylena Rios Camardella da. Máscara da personalidade pré-natal: Contributos dogmáticos em defesa da vida embrionária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2019, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53951/mscara-da-personalidade-pr-natal-contributos-dogmticos-em-defesa-da-vida-embrionria. Acesso em: 23 dez 2024.
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