É consensual a ideia de que o objetivo da execução é satisfazer o exequente. Quanto a isso, não há controvérsias. Ocorre que, conforme dispõe o art. 805 do Novo Código de Processo Civil[1], é necessário observar, nas execuções, o princípio da menor onerosidade possível, ou seja, quando houver mais de um meio para satisfação do crédito, a execução deverá ser realizada de modo a causar o mínimo de sacrifício possível ao devedor. Tal princípio demonstra uma preocupação do sistema processual para que os procedimentos executivos ocorram de forma humanitário, de modo a respeitar a dignidade do executado.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente na lei 8.009/90, passou a proteger o imóvel residencial próprio da entidade familiar ao dispor sobre a impenhorabilidade do bem de família, com o intuito principal de proteger o direito constitucional à moradia, que reflete na dignidade acima mencionada.
Na prática, vez por outra essa questão volta a ser discutida nos Tribunais para saber se, diante da situação fática apresentada, a regra da impenhorabilidade poderá ser afastada.
Assim, o presente artigo tratará brevemente sobre o instituto da penhora, trazendo seus conceitos e aspectos mais gerais para, em seguida, abordar especificamente sobre a impenhorabilidade do bem de família e, por fim, trazer algumas exceções a tal impenhorabilidade, com base no posicionamento jurisprudencial, especificamente do STJ.
A penhora, stricto sensu, é um ato de constrição ou afetação de parte do patrimônio do devedor para um processo de natureza de execução, seja de título judicial de cumprimento de sentença ou de título extrajudicial de execução. Nas palavras de Alexandre Câmara[2], a utilização dos bens pode ser:
direta (que se dá quando o próprio bem apreendido é entregue ao exequente a título de pagamento da dívida, por intermédio de uma técnica de expropriação chamada adjudicação) ou indireta (que ocorre nos casos em que o bem penhorado é expropriado e transformado em dinheiro, usando-se esta verba, obtida com a alienação do bem penhorado, para pagar o credor).
Embora haja controvérsia doutrinária sobre a natureza jurídica da penhora, no Brasil predomina o entendimento que ela tem natureza jurídica de ato executivo. Isso significa dizer que só cabe penhora em execução, jamais em processo de conhecimento ou cautelar, por exemplo. Caso haja constrição de bens nesses processos, tratar-se-á de ato de constrição diverso da penhora.
Quanto aos efeitos, a penhora produz três efeitos processuais e dois efeitos materiais.
Um dos efeitos processuais é a garantia do juízo, ou seja, assegurar que os bens reservados sejam suficientes para satisfazer o executado. Em outras palavras, podemos afirmar que se considera garantido o juízo quando os bens penhorados possuam valores iguais ou excedem o valor que está sendo executado.
Além do efeito de garantia do juízo, a penhora ocasionará a individualização dos bens que irão suportar a execução. Enquanto antes o devedor respondia com a totalidade de seus bens, a partir da individualização, a atividade executiva recairá apenas sobre o valor do débito. Por exemplo, caso o débito do executado seja de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) e seu patrimônio seja de R$ 100.000,00 (cem mil reais), antes da individualização ele responde, em regra, com todo o seu patrimônio. Após a penhora, haverá a constrição dos R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais) e o restante do patrimônio, de R$ 65.000,00 (sessenta e cinco mil reais), está liberado em relação aquela obrigação objeto da execução.
O terceiro efeito processual consiste em gerar o direito de preferência. Quando não houver preferência legal entre credores e sobre o mesmo bem incidir mais de uma penhora, a preferência na satisfação do crédito será dada aquele exequente que constituiu a primeira penhora, a fim de beneficiar, em regra, o credor mais diligente.
Quanto aos efeitos materiais, ou substanciais, tem-se que a penhora retira do executado a posse direta do bem, que passará a ser do Estado. Ainda que o próprio executado seja o depositário do bem penhorado e permaneça, neste caso, com o bem, ficará privado do uso, pois estará atuando como mero auxiliar eventual da justiça, sendo, portanto, apenas mero detentor do bem.
Por fim, o segundo efeito material consiste em tornar ineficazes os atos posteriores de alienação ou de oneração de bem. Detalhe importante é que, para que a penhora produza tal efeito, é necessário que ela tenha sido averbada no registro do bem.
Há duas espécies de bem de família, quais sejam: a legal e a convencional. Antes de adentrar ao tema propriamente dito, é importante conceituar o que se entende como bem de família. Para tanto, adotaremos a conceituação de Paulo Lobo:
Segundo Paulo Lôbo[3]:
é o imóvel destinado a moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem, que não pode ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida. Tem por objetivo proteger os membros da família, que nele vivem da constrição decorrente da responsabilidade patrimonial, que todos os bens econômicos do devedor ficam submetidos, os quais, na execução, podem ser judicialmente alienados a terceiros ou adjudicados ao credor.
Ainda nesse sentido, é importante salientar que o STJ[4], em entendimento sumulado, ampliou o conceito, ao mencionar, na súmula 364 que "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Nota-se, portanto, que segundo o STJ, o bem de família não se restringe, como defendiam alguns, apenas aqueles decorrentes de casamento ou união estável, por exemplo.
Quanto à impenhorabilidade legal, vejamos o que está contido no art.
1º da lei 8.009/90[5], abaixo transcrito:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Já a impenhorabilidade do bem de família convencional encontra-se prevista no Código Civil, art. 1.711[6], que dispõe que “podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família”.
Passadas estas análises, e sabendo que, em regra, prevalece o direito à moradia sob o de crédito, passaremos a analisar as situações em que a impenhorabilidade poderá ser flexibilizada, a depender do caso concreto.
Recentemente, o STJ decidiu que não se pode considerar que o bem de família seja inalienável quando foi da vontade de seu proprietário dá-lo como garantia. Isto porque é principio básico das relações contratuais a presença da boa-fé entre os contratantes. Logo, não é razoável que o contratante possa oferecer seu bem de família como garantia fiduciária, para, propositalmente, alegar a impenhorabilidade do mesmo para auferir vantagens.
Quando um bem imóvel é espontaneamente oferecido como garantia, há ciência por parte do praticante do ato que, caso ele fique em mora, corre o risco de perder o bem. Ora, se sabendo disso ele oferece seu bem de família, inexiste ofensa à lei nº. 8.009/90. Se o devedor o fez com o intuído de anular, posteriormente, a constrição imposta ao bem para obter benefícios, há notória violação da boa-fé objetiva, que não deve ser tolerada por estar em desconformidade com o ordenamento jurídico como um todo. Vejamos abaixo a ementa do REsp 1.560.562[7], que tratou do caso:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL RECONHECIDO COMO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE.
CONDUTA QUE FERE A ÉTICA E A BOA-FÉ. 1. Ação declaratória de nulidade de alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.
2. Ação ajuizada em 23/08/2013. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73. 3. O propósito recursal é dizer se é válida a alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família. 4. A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais. 5. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório). 6. Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais. 7. Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário. 8. Não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu Documento: 1807304 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 04/04/2019 Página 1 de 6 Superior Tribunal de Justiça proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97. 9. Recurso especial conhecido e não provido. (grifos nossos)
Outra hipótese em que a impenhorabilidade poderá ser desconstituída diz respeito a fraude à execução. O STJ, em sede de Recurso Especial 1.575.243[8], definiu que a alienação do único imóvel dos executados a um de seus parentes era causa de afastamento da impenhorabilidade. A ministra Nancy Andrighi defendeu que, se o intuito do executado ao alienar o bem era impedir o pagamento do débito, restaria configurada a fraude à execução, em manifesta violação à boa-fé objetiva, bem como evidente abuso de direito.
Diante do exposto, conclui-se que, embora o direito à moradia seja de suma importância, sendo garantido, inclusive, constitucionalmente, por refletir na dignidade da pessoa, não se trata de um direito absoluto do devedor. É preciso analisar detalhadamente o caso concreto para decidir se o que irá prevalecer é a impenhorabilidade do bem de família do executado ou se será o direito ao crédito do exequente. A regra é que se proteja o direito à moradia, mas cabe ao julgador ponderar, com muita cautela, a narrativa do caso, bem como as provas apresentadas em juízo, a fim de verificar se houve abuso de direito ou má-fé por parte do devedor. Nestes casos, quando houver notória violação da boa-fé objetiva, a garantia de impenhorabilidade do bem de família será afastada, não sendo permitido, com isso, que o devedor se beneficie da própria torpeza.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Thomas Ubirajara Caldas de. A impenhorabilidade do bem de família sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça: Contornos sobre a flexibilização da impenhorabilidade por abuso de direito e violação ao princípio da boa-fé. Disponível em: https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53293/a- impenhorabilidade-do-bem-de-famlia-sob-a-tica-do-superior-tribunal-de-justia- contornos-sobre-a-flexibilizao-da-impenhorabilidade-por-abuso-de-direito-e-violao- ao-princpio-da-boa-f. Acesso em: 11 out. 2019.
BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Senado Federal, 29 de março de 1990; 169º da Independência e 102º da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8009.htm. Acesso em: 23/09/2019.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil.. Diário Oficial da União: Brasília, 16 de março de 2015; 194º da Independência e 127º da República.]
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº. 364. Disponível em: http: :// https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0. Acesso em: 24/09/2019.
CÂMARA, Alexandre de Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 5ª edição Revista e Atualizada. São Paulo: Editora Atlas Ltda, 2019
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1560562 – SC 2015/0254708-7. Relator (a): MINISTRA NANCY ANDRIGHI. DJe 02/04/2018. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1807304&num_registro=201502547087&data=20190404&formato=pdf Acesso em: 10/10/2019
STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1575243 / DF 2015/0093616-3. Relator (a): MINISTRA NANCY ANDRIGHI. DJe 02/04/2018. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&seque ncial=1671937&num_registro=201500936163&data=20180402&formato=HTML Acesso em: 10/10/2019
[1] Art. 805 do Novo CPC: Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.
[2] CÂMARA, Alexandre de Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 5ª edição Revista e Atualizada. São Paulo: Editora Atlas Ltda, p. 385, 2019
[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, p. 358, 2014.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº. 364. Disponível em: http: :// https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0. Acesso em: 24/09/2019.
[5] BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Senado Federal, 29 de março de 1990; 169º da Independência e 102º da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8009.htm. Acesso em: 23/09/2019.
[6] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
[7] STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1560562 – SC 2015/0254708-7. Relator (a): MINISTRA NANCY ANDRIGHI. DJe 02/04/2018. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1807304& num_registro=201502547087&data=20190404&formato=pdf Acesso em: 10/10/2019
[8] STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1575243 / DF 2015/0093616-3. Relator (a): MINISTRA NANCY
ANDRIGHI. DJe 02/04/2018. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1671937& num_registro=201500936163&data=20180402&formato=HTML Acesso em: 10/10/2019
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Ana Gabriela Tolentino de Melo. Da impenhorabilidade do bem de família: possibilidade de flexibilização do instituto no caso concreto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jan 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54084/da-impenhorabilidade-do-bem-de-famlia-possibilidade-de-flexibilizao-do-instituto-no-caso-concreto. Acesso em: 23 dez 2024.
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