RESUMO: O Poder Legislativo e o Tribunal de Contas são responsáveis pelo julgamento das contas de gestores públicos. Quanto ao Chefe do Poder Executivo municipal, a Corte de Contas do Estado exerce importante missão, consoante art. 31, §§ 1º e 2º, e art. 71, I da Constituição Federal de 1988, oferecendo parecer prévio que só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal. Esse entendimento foi reafirmado no julgamento do Recurso Extraordinário no 848.826 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob a sistemática da repercussão geral. Todavia, ainda que as balizas iniciais da tese estabelecida pelo STF circunscrevessem ao efeito da inelegibilidade, o Poder Judiciário desconstituiu pronunciamentos do Tribunal de Contas em face do Chefe do Poder Executivo municipal aplicando o precedente de modo irrestrito. Essa posição afronta a interpretação literal da Constituição Federal que resguarda ao Tribunal de Contas a eficácia de título executivo aos seus pronunciamentos que imputem débito e multa (art. 71, § 3º).
Palavras-chave: Julgamento de Contas de Prefeito. Tribunal de Contas. Título executivo.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A análise pelo Tribunal de Contas e a lista dos gestores com contas rejeitadas. 3 A decisão do Supremo Tribunal Federal e os seus limites. 4 Expansão da tese fixada e a natureza de título executivo do ato do Tribunal de Contas que impute débito ou multa. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
O julgamento do Recurso Extraordinário no 848.826 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob a sistemática da repercussão geral, desencadeou o ajuizamento por ex-prefeitos na Justiça estadual de ações para desconstituir os acórdãos do Tribunal de Contas do Estado (TCE) que rejeitavam as contas apresentadas, inclusive com fixação de multa e ressarcimento ao erário, sob o fundamento da usurpação de competência exclusiva das câmaras municipais.
Diversas questões surgiram com a fixação da tese e encontram-se em reflexão diante do novo rumo estabelecido pela Corte Suprema, como o destino das decisões administrativas pretéritas e mesmo a natureza jurídica de título executivo da decisão que resulte imputação de débito ou multa em face do prefeito.
2 A ANÁLISE PELO TRIBUNAL DE CONTAS E A LISTA DOS GESTORES COM CONTAS REJEITADAS
O Poder Legislativo e o Tribunal de Contas são responsáveis pelo julgamento técnico-político das contas de gestores públicos. Quanto ao Chefe do Poder Executivo municipal, a Corte de Contas do Estado exerce importante missão no controle externo do Poder Público, consoante delimitação da Constituição Federal de 1988 (art. 31, §§ 1º e 2º e art. 70 e seguintes), oferecendo parecer prévio que só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
Além do modelo traçado inicialmente pelo constituinte originário, algumas atribuições definidas em legislação esparsa conferem maior relevância ao múnus do Tribunal de Contas, o qual não mais se restringe à análise do correto emprego de recursos públicos pelos gestores.
Nesta senda, a Lei das Eleições (Lei Federal n.º 9.504/1997) confiou a atribuição de compilar lista de gestores de recursos públicos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, nos moldes da disciplina do art. 11, § 5º[1], in verbis:
Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 15 de agosto do ano em que se realizarem as eleições. (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)
(...)
§ 5º Até a data a que se refere este artigo, os Tribunais e Conselhos de Contas deverão tornar disponíveis à Justiça Eleitoral relação dos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, ressalvados os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, ou que haja sentença judicial favorável ao interessado.
A finalidade da criação do dever jurídico contido no art. 11, § 5º, da Lei das Eleições está diretamente relacionada à obrigação constitucional de “proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições” (art. 14, § 9º, da Constituição Federal).
Bem por isso, a grave violação ao patrimônio público foi alçada à caracterização de causa de inelegibilidade, desde que preenchidas, cumulativamente, determinadas condições, estabelecidas na Lei das Inelegibilidades (art. 1º, I, “g”, da Lei Complementar nº 64/1990, com redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
A legislação eleitoral exige que as contas sejam rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa e, como esperado, incumbe à própria Justiça Eleitoral, aferir a reunião de todos os requisitos do art. 1º, I, “g”, da Lei Complementar n.º 64/1990, consoante posição sedimentada da Corte Superior Eleitoral[2], com vistas a reconhecer a inelegibilidade.
Logo, a lista elaborada pelo Tribunal de Contas possui mera natureza informativa. Nesse aspecto, o Tribunal Superior Eleitoral[3] assevera que “a mera inclusão do nome do agente público na lista remetida à Justiça Eleitoral (...) não gera, por si só, presunção de inelegibilidade e nem com base nela se pode afirmar ser elegível o candidato, por se tratar de procedimento meramente informativo”.
3 A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E OS SEUS LIMITES
A grande mudança no cenário jurídico ocorreu com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário sob a sistemática da repercussão geral[4], em que se fixou a seguinte tese:
Para fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores.
A primeira observação necessária é que a competência discutida envolve apenas o Chefe do Poder Executivo, não abarcando outros cargos políticos, como o Presidente da Câmara Municipal, os quais estão sujeitos à prestação de contas perante o Tribunal de Contas, com base no art. 71, II, e art. 75, da Constituição Federal.
Portanto, a discussão está centrada na figura do Chefe do Poder Executivo, cuja competência, em regra, recai sobre o Poder Legislativo, como típico mecanismo de freios e contrapesos da separação de poderes.
A parte inicial da tese, ao assentar que “Para fins do art. 1º, inciso I, alínea ‘g’, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010”, delimita o âmbito de abrangência da tese quanto à inelegibilidade.
Assim, a rigor, colhe-se que o debate sobre o reconhecimento da inelegibilidade de ex-prefeito pela Justiça Eleitoral deve respeitar a competência exclusiva das Câmaras Municipais.
O STF compreendeu dentro da competência exclusiva do Legislativo, não só as contas de governo, mas também as de gestão, reduzindo significativamente o âmbito de atuação do Tribunal de Contas.
Contudo, outros temas escapam da delimitação do STF, seja por não terem sido decididos expressamente, seja por terem sido afastados em outras ocasiões.
Nesse contexto, não se incluem os processos que versam sobre convênio, porquanto não abrangidas no julgamento dos RE no 848.826 e nº 729.744 pelo Supremo Tribunal Federal[5].
Da mesma maneira, os recursos repassados pela União ou pelo Estado, como as transferências fundo a fundo, não são enquadrados como julgamento de contas de prefeito/ordenador perante o Poder Legislativo[6].
Logo, a Câmara Municipal não possui competência absoluta para tratar sobre todas as prestações de contas realizadas pelo Chefe do Poder Executivo.
Com base nessas considerações, a aplicação irrestrita da tese pode levar à desconstituição de acórdão válido proferido pelo TCE, já que algumas das matérias são de competência da corte de contas.
Cabe registrar que foram rejeitados os embargos de declaração no RE nº 848.826 opostos pelo Procurador-Geral da República, tendo transitado em julgado em 08/10/2019, sem alteração da tese firmada.
4 EXPANSÃO DA TESE FIXADA E A NATUREZA DE TÍTULO EXECUTIVO DO ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS QUE IMPUTE DÉBITO OU MULTA
A decisão tomada pela Corte Suprema, ainda que inserida em ação eleitoral de impugnação ao registro de candidatura, passou a significar a incompetência do Tribunal de Contas para controle sobre atos do Chefe do Poder Executivo municipal.
Isso porque houve o ajuizamento por ex-prefeitos para a desconstituição dos acórdãos do TCE, os quais veiculam, não raras vezes, multas e imputações de débito a cargo dos responsáveis e a Justiça estadual no Rio Grande do Norte acolheu o pleito dos demandantes, sem fazer qualquer ressalva à restrição da tese ao efeito da inelegibilidade e tampouco à natureza de título executivo da decisão que impute débito ou multa, nos moldes do art. 71, § 3º, da CF/88.
O Supremo Tribunal Federal ainda não apresentou posicionamento definitivo sobre a possibilidade de manutenção da parte do acórdão da Corte de Contas, com fulcro no art. 71, § 3º, da CF/88.
A decisão da lavra do Ministro Alexandre de Moraes[7], em caráter monocrático, desconstituiu julgamento de apelação cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que mantinha acórdão do Tribunal de Contas, com fundamento na natureza de título executivo da decisão do órgão de controle.
Contrasta com o pronunciamento da Primeira Turma que, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso[8], na mesma situação fática, manteve o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a partir de uma visão sobre os recursos extraordinários discutidos.
Mais recentemente, também em pronunciamento monocrático, o Ministro Luiz Fux, no RE nº 1231883[9], entendeu que os efeitos de ordem civil e administrativa do acórdão do Tribunal de Contas estão submetidos ao crivo do Poder Legislativo Municipal, ao levar em consideração os argumentos apresentados pelo Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do RE nº 848.826. Veja-se:
Saliento que as consequências de ordem civil e administrativa advindas de eventuais irregularidades cometidas pelos Prefeitos na ordenação de despesas independem de deliberação das Câmaras Municipais, mas não podem ser impostas diretamente pelos Tribunais de Contas, havendo a necessidade de manejo das ações judiciais próprias.
De todo modo, o Pretório Excelso não tem admitido a utilização de reclamação para desconstituir diretamente os acórdãos do TCE, sob o fundamento de que o precedente formado em recurso extraordinário com repercussão geral depende do esgotamento das instâncias ordinárias[10], na forma do art. 988, § 5º, II, do Código de Processo Civil.
5 CONCLUSÃO
A partir da fixação da tese, constatou-se que os limites iniciais não foram observados pelos intérpretes, notadamente no âmbito do Poder Judiciário, resultando na desconstituição de pronunciamentos do Tribunal de Contas em face do Chefe do Poder Executivo municipal.
A medida não se compatibiliza com as balizas iniciais da tese estabelecida pelo STF, porquanto estaria voltada à análise da inelegibilidade, tampouco com interpretação literal da Constituição Federal que resguarda ao Tribunal de Contas a eficácia de título executivo aos seus pronunciamentos que imputem débito e multa (art. 71, § 3º).
Assim, a corrente que vai de encontro a essa posição, olvida a capacidade institucional do Tribunal de Contas para aferir, no exercício de controle externo, a existência de irregularidade, estipulando com maior precisão o ressarcimento ao erário e a sanção cabível ao responsável.
Além disso, promove tratamento distinto ao Chefe do Poder Executivo municipal em relação aos demais gestores, inclusive o Presidente da Câmara Municipal. Isso porque enquanto aquele está imune à atuação do Tribunal de Contas, ainda que tenha sido liquidado o ressarcimento ao erário no ato do TCE, estes devem arcar com as consequências delimitadas no pronunciamento da Corte de Contas.
Há de se reconhecer que o pronunciamento do Tribunal de Contas, quando se amoldar ao estabelecido no art. 71, § 3º, da CF, terá natureza híbrida, de modo a constituir-se um parecer prévio a ser observado pela Câmara Municipal, sem que seja mitigada a sua eficácia de título executivo a ser exigido pelo ente titular do crédito.
Apesar do posicionamento da Primeira Turma do STF, verifica-se que os Ministros monocraticamente estão dando maior amplitude à tese firmada no Tema 835 da Repercussão Geral.
De todo modo, enquanto não solucionada a questão jurídica discutida, é imperativa a defesa dos atos dos Tribunais de Contas que imputem débito ou multa como título executivo, à luz do princípio da justeza ou conformidade funcional, sob pena de transformar em letra morta o texto constitucional constante no art. 71, § 3º, ainda que em face do Chefe do Poder Executivo municipal.
[1] No âmbito do Estado do Rio Grande do Norte, a previsão normativa foi endossada, haja vista o disposto no art. 158 da Lei Complementar 464/2012 (Lei Orgânica do TCE/RN) e art. 11, inciso XIX, da Resolução nº 009/2012-TC (Regimento Interno do TCE/RN). Havia ainda o art. 53, § 7º, da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte (CERN), mediante a Emenda Constitucional n.º 13/2014 também poderia ser citado, todavia teve a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) nº 5323, em 11 de abril de 2019.
[2] Cfr. TSE, REspe nº 19078, Rel. Min. Luiz Fux, DJE 01/03/2018; REspe nº 16813, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE 27/08/2014; REspe nº 42050, Rel. Min. Gilson Dipp, DJE 04/05/2012.
[3] Cfr. REspe nº 42781, Relª. Min. Rosa Weber, DJE 11/04/2017.
[4] Cfr. STF, RE 848826, Relator p/ Acórdão: Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2016, Repercussão Geral - Mérito DJe-187 24-08-2017.
[5] Cf. STF, MS 35757 MC, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 07/08/2018, DJe-162 10/08/2018; e TSE, REspe nº 24020, Relª. Min. Rosa Weber, DJE 17/04/2017.
[6] TSE, AgR em REspe nº 8993, Rel. Min. Rosa Weber, DJE 16/12/2016 e REspe nº 36474, Rel. Min. Rosa Weber, DJE 06/04/2017.
[7]Cfr. STF, ARE 1176601/RS, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 04/02/2019, publicado em DJe-025 08/02/2019.
[8] STF, ARE 1153832/MG AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 26/10/2018.
[9] STF, RE 1231883, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 07/10/2019, publicado em DJe-219 08/10/2019.
[10] Cfr. Rcl 35505/MT, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 24/06/2019, publicado em DJe-139 27/06/2019; Rcl 32839/RN, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/12/2018, publicado em DJe-019 01/02/2019;
Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Consultor Jurídico do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte (TCE/RN).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORDEIRO, Flavio Vinicius Alves. A prestação de contas do chefe do poder executivo municipal e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jan 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54101/a-prestao-de-contas-do-chefe-do-poder-executivo-municipal-e-a-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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