RESUMO: O presente trabalho tem como enfoque a evolução dos direitos humanos fundamentais e dos seus mecanismos de proteção. A Constituição Federal brasileira além de definir como núcleo axiológico a dignidade da pessoa humana, dispõe de uma cláusula de abertura material, a partir da qual se permite que a tutela internacional desempenhe importante função enquanto fonte normativa complementar. Todavia, é notável a carência de efetividade do aparato normativo mencionado. Por isso, o presente artigo tem como um de seus objetivos analisar o importante papel da jurisdição constitucional, que é exercida através do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardiã da Constituição e, consequentemente, dos direitos fundamentais. O trabalho desenvolvido revela-se eminentemente dogmático-instrumental e filosófico-constitucional, é essencialmente bibliográfico e será realizado utilizando-se o método de abordagem dedutivo, bem como os métodos de procedimento histórico e interpretativo.
Palavras-chave: Direitos humanos. Jurisdição Constitucional. Proteção Internacional.
Sumário: 1. Introdução; 2. Direitos Humanos Fundamentais: origem e evolução; 3. A Constituição Federal de 1988 e os Tratados Internacionais De Direitos Humanos; 4. A Jurisdição Constitucional e a proteção dos Direitos Humanos; 5. Conclusão; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente, é necessário tecer alguns esclarecimentos acerca da terminologia adotada no presente artigo. É comum na doutrina brasileira o uso das expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” em contextos diferentes, sendo a primeira utilizada para identificar os direitos do homem consagrados em tratados e convenções internacionais, enquanto a segunda é utilizada para designar os direitos do homem consolidados e positivados na Constituição do país. Ao longo desta pesquisa, esses direitos serão explorados tanto no âmbito interno, quanto no plano internacional, de modo que se utilizará as duas nomenclaturas indistintamente, tendo em vista que ambas se referem à mesma categoria de direitos, qual seja, direitos das pessoas enquanto seres humanos.
A concepção de direitos humanos sofreu grandes modificações desde sua origem até os tempos atuais, sendo incontestável a influência das mais diversas civilizações à formação do conceito atual desses direitos. A evolução histórica revela uma preocupação não só com o reconhecimento dos direitos fundamentais, mas com a criação de mecanismos de promoção e proteção que permitam, de fato, sua efetivação.
No contexto jurídico brasileiro, observa-se que a Constituição Federal além de definir como núcleo axiológico a dignidade da pessoa humana, valor supremo do qual decorrem todos os direitos fundamentais, dispõe de uma cláusula de abertura material, a partir da qual se permite que a tutela internacional desempenhe importante função enquanto fonte normativa complementar. Todavia, apesar da preocupação demonstrada pelo legislador pátrio, é notável a carência de efetividade do aparato normativo mencionado.
Nesse sentido, a jurisdição constitucional, que é exercida através do Supremo Tribunal Federal, desempenha um papel essencial enquanto guardiã da Constituição e, consequentemente, dos direitos fundamentais, conforme restará evidenciado neste artigo.
Com relação à natureza da presente pesquisa, esta se revela eminentemente dogmático-instrumental e filosófico-constitucional, tendo em vista que para realização do estudo será necessário à análise dos instrumentos de proteção dos direitos humanos reconhecidos e adotados pelo ordenamento pátrio através de um ponto de vista legal, bem como através da reflexão sobre os princípios constitucionais.
No que diz respeito ao método de abordagem, será utilizado o método dedutivo. Os métodos de procedimento utilizados serão o histórico e o interpretativo, haja vista que serão empregados elementos históricos referentes à evolução dos diretos humanos fundamentais, sendo necessário fazer a interpretação das diversas legislações abordadas.
Deste modo, preocupou-se em efetuar uma pesquisa teórica com base em material bibliográfico e documental, por não ser compatível com a natureza do estudo a comprovação empírica, devido ao longo período histórico analisado. Em consequência, a técnica de pesquisa empregada foi a bibliográfica, incluindo textos físicos e aqueles localizados na rede mundial de computadores, disponibilizados no intuito de fomentar a pesquisa científica.
2. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS: ORIGEM E EVOLUÇÃO
Os direitos humanos possuem caráter indiscutivelmente histórico na medida em que vêm sendo reconhecidos com o avanço da sociedade, através de crises e instabilidades políticas que geram providências a serem tomadas pelo Estado em prol dos indivíduos enquanto cidadãos. Nesse contexto, são mutáveis e acompanham a evolução da humanidade, de modo que a concepção de direitos humanos sofreu muitas alterações ao longo dos anos até atingir as feições atuais.
A origem desses direitos é tão antiga que não há um consenso quanto ao ponto exato de seu nascimento. Parte da doutrina não reconhece a existência da ideia de direitos humanos no período pré-Estado Constitucional, tendo em vista que as regras da época não asseguravam ao indivíduo direitos de contenção ao poder estatal.[1] O constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho é um dos juristas que refuta a existência desses direitos na antiguidade e justifica “basta recordar que Platão e Aristóteles consideravam o estatuto da escravidão como algo natural”.[2]
Entretanto, não se pode negar a influência das civilizações antigas para a afirmação dos direitos humanos. Registros apontam que no Antigo Egito houve tenuemente o reconhecimento de direitos de indivíduos na codificação de Menes (3100-2850 a.C), conforme ensina André de Carvalho Ramos.[3] Ainda segundo o autor, é possível identificar a criação do Código de Hammurabi (1792-1750 a.C) como o primeiro código de normas e condutas preceituando esboços de direitos dos indivíduos.
A cultura da Grécia Antiga também mostrou-se de extrema relevância na consolidação dos direitos humanos, contudo, é no Direito Romano que encontramos as sementes da limitação ao poder estatal. A base do princípio da legalidade teve origem na Lei das Doze Tábuas que, ao estipular a lex scripta, deu um passo na direção da vedação ao arbítrio.[4] Ademais, com a instauração da república romana, o poder político passou a sofrer limitações em razão da elaboração de um complexo sistema de pesos e contrapesos entre os diferentes órgãos políticos.[5]
Passando pela idade média, especialmente na Inglaterra, é editado um diploma reconhecendo a primazia das liberdades públicas face o abuso do poder estatal, trata-se da Magna Charta Libertatum (1215). Embora o documento não contivesse a ideia de direitos fundamentais inatos e sim de direitos estamentais, fornecia abertura para transformação dos direitos corporativos em direitos do homem.[6]
Ao lado deste, outros importantes diplomas foram produzidos no país, dentre os quais merecem destaque a Petition of Right (1628), o Habeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1689) e o Act of Settlement (1701). Nesse contexto, ocorria a chamada “Revolução Inglesa”, que consagrou a supremacia do Parlamento e o império da lei.[7]
Posteriormente, outras duas importantes revoluções marcaram definitivamente o nascimento dos direitos fundamentais: a “Revolução Americana”, referente ao processo de independência das colônias britânicas na América e que ensejou a edição da “Declaração do Bom povo de Virgínia” em 1776, e a “Revolução Francesa”, que culminou na adoção da “Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão” pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 1789.[8] Após essas declarações, quase todas as Constituições começaram a dispor de uma Declaração de direitos, a começar pela Constituição dos Estados Unidos da América e suas dez emendas.
A grande diferença entre a declaração francesa e a norte-americana foi a vocação universalizante da primeira, que apresentava como uma de suas características mais marcante a visão universal dos direitos do homem[9].
Não obstante, o efetivo universal dos direitos humanos foi uma lenta conquista, conforme ensina Norberto Bobbio.[10] Para o jurista é possível identificar três fases desse processo: a primeira possui cunho filosófico e está ligada a ideia de que o homem possui direitos naturais que ninguém, nem o Estado e nem ele mesmo, podem subtrair-lhe. Trata-se de uma fase marcada pela universalidade do conteúdo das teorias e por suas limitações em relação à eficácia.
O segundo momento consiste na passagem da teoria à pratica, o direito antes idealizado ganha concreticidade mas perde em universalidade, uma vez que passam a valer apenas no âmbito dos Estados que os reconhecem. Por fim, é na terceira fase que a afirmação dos direitos humanos é universal e positiva, na medida em que esses direitos passam a ser dirigidos não apenas aos cidadãos de determinado Estado, mas a todos os homens, de modo que os direitos do homem não devem ser apenas proclamados, e sim efetivamente protegidos.
É possível identificar o pós-guerra como o marco inicial dessa última fase. A internacionalização dos direitos humanos surgiu como reação à barbárie cometida durante o nazismo. Nos dizeres da professora Flávia Piovesan:
Desenha-se o esforço da reconstrução dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.[11]
Nesse contexto, foram criadas várias organizações internacionais com o propósito de cooperação internacional, dentre as quais merece destaque a Organização das Nações Unidas (ONU), criada na Conferência de São Francisco através da Carta das Nações Unidas.
Esse documento, apesar de apresentar a expressão “direitos humanos” em várias passagens, não listou o rol de direitos que seriam essenciais,[12] motivo pelo qual foi necessária a edição de um diploma próprio para tratar do tema. Em 10 de dezembro de 1948 foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pela primeira vez na história um sistema de princípios fundamentais de conduta foi livre e expressamente aceito pela maioria dos governos, conforme explica Bobbio.[13]
Segundo o autor, esse consenso geral pode representar a única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e reconhecido, de modo que o grande problema atual não é mais fundamentar os direitos humanos, e sim protegê-los.
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continuamente violados.[14]
Diante da necessidade incessante de garantir cada vez mais a efetivação dos direitos humanos surgem, ao lado do sistema global, sistemas regionais de proteção: o europeu, o americano e o africano. Consoante os ensinamentos de Flavia Piovesan, “o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – é, pois, ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos”.[15]
Enquanto direitos intrinsecamente mutáveis, os direitos dos homens estão em constante evolução, necessitando, portanto, de um forte aparato jurídico de proteção que atenda às demandas da sociedade. Assim, mesmo com a existência de sistemas específicos voltados à tutela dos direitos humanos no plano internacional, é essencial e indispensável que se busque por mecanismos para concretização e proteção desses direitos no âmbito do direito doméstico.
3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
As Constituições brasileiras não ficaram para trás quanto à proteção dos direitos humanos fundamentais. Desde a primeira carta política do Brasil, ainda na época do Império (1824), já era possível identificar um extenso rol de direitos humanos fundamentais. Contudo, conforme ensina Ramos, esse diploma mascarava a realidade fática da época: havia escravidão, voto censitário e exclusão das mulheres do processo eleitoral.[16]
Com o advento da República, a existência de um rol específico de direitos humanos foi mantida. Assim, a Constituição de 1891 apresentava, além dos direitos e garantias já consagrados pela constituição anterior, novas previsões. Dentre as novidades trazidas, merece destaque o reconhecimento do princípio da não exaustividade dos direitos fundamentais.[17] Esse rol específico de direitos tornou-se tradição e repetiu-se em todas as demais constituições do Brasil, até mesmo na Constituição polaca (1937) e na Constituição da ditadura militar (1967).
Entretanto, é a Constituição Federal de 1988 que representa um marco histórico no que diz respeito à defesa dos direitos e garantias fundamentais no Brasil, motivo pelo qual ficou amplamente conhecida como Constituição Cidadã. Como explica José Afonso da Silva:
É a Constituição Cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte que a produziu, porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania.[18]
Da leitura dos princípios fundamentais da República, estampados no Título I da Carta de 1988, é possível observar que todos convergem para a tutela dos direitos humanos, merecendo especial atenção o princípio dignidade da pessoa humana. Esse não é apenas fundamento do Estado Brasileiro, mas “constitui-se no valor constitucional supremo em torno do qual gravitam todos os direitos fundamentais”.[19] Ao se reconhecer a dignidade da pessoa humana como cerne de todo ordenamento jurídico, é possível constatar que todo o texto constitucional encontra-se permeado pelo princípio em questão, não apenas o título destinado aos direitos e garantias fundamentais.
Ademais, a Carta Magna brasileira adotou no § 2º de seu artigo 5º uma cláusula de abertura material dos direitos fundamentais pela qual determina que os direitos expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios que ela adotou ou dos Tratados Internacionais em que o Estado faça parte. Para Flávia Piovesan, este dispositivo permite a incorporação pelo ordenamento jurídico de direitos internacionais, que passam a ter natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional.[20]
Todavia, a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos não é pacífica.[21] O §2º do art. 5º da Constituição fomentou grandes discussões sobre o tema, tendo a questão se tornado ainda mais complexa com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Durante muito tempo o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da tese que os tratados de direitos humanos teriam a mesma hierarquia dos demais tratados, ou seja, teriam natureza de lei ordinária federal. Esse posicionamento foi fortemente criticado visto que negava qualquer aplicabilidade ao citado §2º do artigo 5º.[22]
Diante da resistência da Suprema Corte em reconhecer a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, o Congresso Nacional aprovou uma emenda constitucional contendo tal reconhecimento. Essa emenda introduziu no artigo 5º da Carta Magna brasileira o §3º, que confere aos Tratados e Convenções Internacionais que versarem sobre direitos humanos e que forem aprovados por um procedimento especial, “status” de emendas constitucionais.
Contudo, a redação dos §§ 2º e 3º do artigo 5º geraram uma grande dicotomia. Conforme entendimento de boa parte da doutrina, o primeiro determina que os tratados de direitos humanos são normas materialmente constitucionais por força de seu conteúdo; o outro confere a estes diplomas o “status” de emenda constitucional por força de um procedimento formal. Nesse contexto, houve quem alegasse a inconstitucionalidade da emenda por considerar que essa teria piorado a hierarquia dos tratados de direitos humanos e, assim, violado cláusula pétrea (art. 60, § 4º da Constituição).[23]
Para Flávia Piovesan, com o advento da Emenda nº 45 é possível identificar duas categorias de tratados internacionais de direitos humanos: os materialmente constitucionais e os material e formalmente constitucionais, de modo que a diversidade dos regimes atém-se à denúncia dos tratados, que só é possível em relação àqueles materialmente constitucionais.[24] Isto porque ao conferir “status” de Emenda Constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados na forma estabelecida pelo §3º do art. 5º da Constituição, é reconhecido também o “status” de cláusula pétrea desse instrumento, não podendo, portanto, o Estado se retirar do tratado e desincorporá-lo do ordenamento jurídico pátrio.
O Supremo Tribunal Federal não adotou a tese, embora tenha modificado seu posicionamento em razão da inovação trazida pelo §3º do art. 5º, conforme se extrai do julgamento do RE 466.343.[25] Nos dizeres de Flávia Piovesan, a decisão “conferiu aos tratados de direitos humanos uma hierarquia especial e privilegiada, com realce às teses da supralegalidade e da constitucionalidade desses tratados, sendo a primeira majoritária”.[26]
Segundo a tese da supralegalidade, os tratados de direitos humanos que não forem aprovados pelo rito especial disposto no § 3º do artigo 5º serão hierarquicamente superiores à legislação infraconstitucional e inferiores a Constituição. Conforme ensina Ramos:
Ficou consagrada a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humano: natureza constitucional para os aprovados pelo rito do art. 5º, §3º; natureza supralegal, para todos os demais, quer seja anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 45 e que tenham sido aprovados pelo rito comum (maioria simples, turno único em cada Casa do Congresso).[27]
Independentemente do posicionamento adotado, é incontestável que o legislador pátrio optou por não limitar os direitos fundamentais, bem como reconheceu os tratados internacionais como importante fonte jurídica de natureza complementar em relação às normas constitucionais.
Esse perfil constitucional favorável ao Direito Internacional introduzido pela Constituição Federal de 1988 levou o Brasil a celebrar os mais importantes instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, tendo reconhecido em 1998 a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Nesse contexto, insta destacar que o Brasil adotou no artigo 4º, II, de sua Carta Política a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios que devem reger suas relações internacionais.
Ante todo o exposto, vislumbra-se que a Constituição brasileira apresenta um texto extremamente abrangente e avançado no que tange à tutela dos direitos humanos. Entretanto, a falta de instrumentos suficientes para sua concretização implica na existência de uma “constitucionalização simbólica”,[28] de modo que faz-se necessária uma atuação independente do Poder Judiciário, tendo em vista que a jurisdição constitucional deve possibilitar meios de instrumentação e defesa, bem como respostas judicativas condizentes com o nível de exigência das demandas sociais, da cidadania e da dignidade humana[29].
4. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A atual Constituição brasileira é um documento político capaz de demonstrar extrema preocupação com a proteção aos direitos humanos fundamentais. Além de consagrar diversos direitos fundamentais espalhados por todo texto constitucional e adotar uma cláusula de abertura material, a Constituição de 1988 inovou ao conferir ao Poder Judiciário autonomia institucional, financeira e administrativa. Essa inovação representa um importante passo na busca pela plena efetivação dos direitos fundamentais, como leciona de Alexandre de Moraes:
Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado de direito democrático sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois, como afirmou Zaffaroni, “a chave do Poder Judiciário se acha no conceito de independência”.[30]
Essa autonomia torna-se ainda mais imprescindível diante da função do Poder Judiciário de exercer o último controle da atividade estatal, destacando-se, nesta perspectiva, o controle de constitucionalidade. Esse instrumento, enquanto garantia da Supremacia da Constituição, é atividade de fiscalização da validade e conformidade das leis e atos do poder público à vista de uma Constituição rígida.[31]
Neste sentido, tendo em vista que a Carta Política brasileira concentra uma efervescência de direitos fundamentais de todas as naturezas, defender a supremacia da Constituição é, por consequência, defender os direitos humanos fundamentais. Assim, o controle de constitucionalidade, além de assegurar a superioridade das normas constitucionais, também se mostra como um relevante meio de conter os excessos, abusos e desvios de poder.[32]
Diante da necessidade de proteção à hierarquia normativa que coloca a Constituição no topo do ordenamento jurídico, determina o caput do art. 102 da Carta política brasileira que a guarda da Constituição compete, precipuamente, ao Supremo Tribunal Federal. Cabe ao Tribunal, portanto, exercer jurisdição constitucional de modo a proteger a Constituição considerada não apenas sob o aspecto formal, mas enquanto expressão de valores sociais e políticos.[33]
De forma bastante objetiva, o Ministro Luís Roberto Barroso define a expressão jurisdição constitucional como a “interpretação e aplicação da Constituição por órgãos judiciais.”[34] Embora o conceito pareça curto e simples, sua abrangência é ampla, uma vez que contempla toda a atuação do judiciário em busca da proteção da supremacia da Constituição.
Para Barroso,[35] é possível identificar duas funções essenciais desempenhadas pela Corte Constitucional, quais sejam, a contramajoritária e a representativa. Segundo o autor, a primeira função pode ser identificada como o papel de sobrepor as regras democráticas e de direitos humanos à vontade dos poderes representativos, mediante o controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Executivo. Já o papel representativo trataria, nos dizeres do jurista, “do atendimento, pelo tribunal, de demandas sociais e de anseios políticos que não foram satisfeitos a tempo e a hora pelo Congresso Nacional”.
Ou seja, a função contramajoritária, está presente quando o STF invalida atos dos outros Poderes em nome da Constituição. E a representativo ocorre, quando, em certas circunstâncias, a Corte adota posicionamento mais ativo e atende as demandas sociais que ficam paralisadas no Congresso.
Diante da ampliação da atuação do Poder Judiciário e da inércia dos outros poderes para atender as demandas da população, muitas questões de competência legislativa e administrativa tem sido suscitadas em recorrentes ações judiciais. Historicamente, o Supremo Tribunal Federal tem tomado importantes decisões no que tange à judicialização de políticas públicas através de discussão acerca da cláusula da reserva do possível e do dever do Estado de garantir mínimo existencial.
Esse posicionamento ativo do tribunal, apesar de gerar grande polêmica no mundo jurídico e político, mostra-se como um relevante mecanismo de efetivação dos direitos sociais, aqueles que podem consistir na edição de atos normativos pelo Estado, na criação de procedimentos e garantias judiciais, na instituição de auxílios pecuniários (v.g. benefícios assistenciais ou previdenciários), na realização de políticas públicas etc.,[36] ou seja, aqueles que demandam uma contraprestação estatal.
Nesse contexto, quando do julgamento da ADPF nº 45 a Corte firmou entendimento que o conteúdo programático das normas relacionadas à saúde não podem representar um impedimento a sua tutela em juízo. A decisão representa um precedente essencial para compreensão da judicialização das políticas públicas, conforme se observa a seguir:
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).[37] (grifo nosso)
Mediante análise da decisão, observa-se que a jurisprudência pátria tem entendimento que entre proteger a inviolabilidade do direito à vida ou fazer prevalecer um interesse financeiro do Estado, razões de ordem ético-jurídica impõem uma só opção: o respeito indeclinável à dignidade humana.
A necessidade social da atuação ativista por parte do Poder Judiciário nasce em razão da omissão legislativa e executiva. Assim, apesar das incessantes críticas endereçadas ativismo judicial, a ampla variedade de competências atribuídas ao Poder Judiciário impõe-lhe a atuação diante da materialização de injustiça e desrespeito a direitos garantidos constitucionalmente.
A atuação da Corte Constitucional é, portanto, imposta pela própria Constituição Federal e a omissão, nestes casos, é flagrantemente inconstitucional, causando inegável prejuízos ao cidadão e à toda coletividade.
5. CONCLUSÃO
Ao longo do presente artigo foi possível observar o quanto os direitos humanos evoluíram até atingirem o plano internacional de proteção. Evidenciou-se que o problema enfrentado por esta categoria de direitos na atualidade não diz respeito à definição do que seriam esses direitos ou quais seriam, mas sim em relação à melhor forma de protegê-los.
Ao analisar o aparato jurídico brasileiro, observou-se uma Constituição extremamente preocupada com a proteção dos direitos humanos. Além de colocar a dignidade da pessoa humana como base para todo o ordenamento pátrio, a Carta Magna prevê uma cláusula de abertura material dos direitos fundamentais, que reconhece os Tratados Internacionais que versarem sobre Direitos Humanos como importante fonte normativa.
Entretanto, apesar do Brasil possuir uma verdadeira “Constituição Cidadã”, o instrumento carece de efetividade em muitos pontos, especialmente no que tange às normas programáticas que tutelam direitos sociais. Nesse cenário, diante da ampliação da atuação do Poder Judiciário e da inércia dos outros poderes para atender as demandas da população, demonstrou-se a importância da atuação da jurisdição constitucional e do papel contramajoritário que o STF exerce.
Assim, apesar das incessantes críticas endereçadas às condutas ativistas, a ampla variedade de competências atribuídas ao Poder Judiciário impõe-lhe a atuação diante da materialização de injustiça e desrespeito a direitos garantidos constitucionalmente.
Conclui-se que a ação do Poder Judiciário é indispensável à concretização dos direitos individuais e coletivos previstos na Constituição, de modo que a inércia do Judiciário nesses casos implica na perpetuação das violações, além de representarem uma ameaça ao Estado Democrático Social de Direito.
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[1] RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 35.
[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 380 e 381.
[3] RAMOS, op. cit., p. 32.
[4] RAMOS, op. cit., p. 34.
[5] CUNHA JR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª ed. Bahia: Juspodivm, 2012, p. 590.
[6] CANOTILHO, op. cit., p. 382.
[7] RAMOS, op. cit., p. 38
[8] RAMOS, op. cit., p. 38.
[9] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 161.
[10] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rido de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 48.
[11] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 190.
[12] RAMOS, op. cit, p. 47.
[13] BOBBIO, op. cit., p. 47.
[14] Ibidem, p. 45.
[15] PIOVESAN, op. cit., p. 330.
[16] RAMOS, op. cit, p. 361.
[17] Ibidem.
[18] SILVA, op. cit., p. 90.
[19] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5 ed. São Paulo: Método, 2015, p. 408.
[20] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 114.
[21] Sobre o tema remete-se a SIMON, Henrique Smidt. A natureza jurídica dos tratados de direitos humanos: a incompatibilidade sistêmica da supralegalidade e necessidade de revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal. Direito, Estado e Sociedade, nº 42, p. 99-120, jan/jun 2013.
[22] SIMON, op. cit., p. 104.
[23] Ibidem.
[24] PIOVESAN, op. cit.,p. 145.
[25] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf> Acesso em: 07out.2019.
[26] PIOVESAN, op. cit.,p. 140.
[27] RAMOS, op. cit. p. 393.
[28] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 159.
[29] LIMA, Newton de Oliveira. Jurisdição constitucional e construção de direitos fundamentais no Brasil e nos Estados Unidos. São Paulo: MP, 2009, p. 24.
[30] MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência.10ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 38.
[31] CUNHA JR, op. cit, p. 269
[32] Ibidem.
[33] SILVA, op. cit., p.557.
[34] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: Direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, Vol. 12, n°96. 2010
[35] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 2013. (versão digital)
[36] ALEXY, Robert. apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. (versão digital)
[37] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45 MC, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004, publicado em DJ 04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADPF%24%2ESCLA%2E+E+45%2ENUME%2E%29&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 10.mar.2018.
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Damásio de Jesus. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Candido Mendes - UCAM Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCOLINO, Fabíola Vilela Chaves. Direitos humanos fundamentais: tutela internacional e jurisdição constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2020, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54208/direitos-humanos-fundamentais-tutela-internacional-e-jurisdio-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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