ANDRÉ DE PAULA VIANA
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho aborda os diferentes tipos de áreas dentro da medicina legal, dando maior foco para a tanatologia e antropologia forense, que serão a base para os estudos dentro das fazendas de cadáveres: locais onde são analisados os efeitos de decomposição de cadáveres sob diferentes efeitos, sendo eles controlados ou não. Tais locais serão descritos inicialmente pelos aspectos históricos, suas características e pesquisas realizadas, e posteriormente avaliados perante os aspectos jurídicos nacionais e internacionais. Mediante a discussão dos aspectos jurídicos envolvidos na doação de corpos para pesquisa no Brasil e nos Estados Unidos, será possível estabelecer uma conexão entre as leis, demonstrando uma relativa evolução da lei americana quando comparada a brasileira, mostrando assim a necessidade de melhor apreciação na legislação de doação de corpos.
Palavras-chave: fazenda de cadáveres; doação de corpos; medicina legal.
ABSTRACT: The present work addresses the different types of areas within forensic medicine, giving greater focus to forensic anthropology and tanatology, which will be the basis for studies within cadaver farms: places where the effects of decomposition of cadavers under different effects are analyzed. whether they are controlled or not. Such sites will be described initially by historical aspects, their characteristics and researches, and later evaluated by national and international legal aspects. By discussing the legal aspects involved in the donation of research bodies in Brazil and the United States, it will be possible to establish a connection between the laws, demonstrating a relative evolution of the American law when compared to the Brazilian law, thus showing the need for better appreciation in the legislation. of body donation.
Keywords: body farm, body donation, Forensic medicine.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO.2.A MEDICINA LEGAL. 3. AS FAZENDAS DE CADÁVERES. 4. AS FAZENDAS E O DIREITO. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6.REFERÊNCIAS.
A medicina legal é a ciência que envolve analisa sob aspectos jurídicos os assuntos relacionados a medicina, sejam eles pré ou pós mortem. É através desta que são produzidos os laudos médicos que serão analisados no caso concreto, laudos estes que darão ao juiz a capacidade de decidir sobre a lide em questão.
Um dos campos da medicina legal é a antropologia forense, que trata da identificação do indivíduo, e a tanatologia forense, que aborda os fenômenos pós mortem e suas consequências.
É a partir do enfoque dessas duas áreas que aborda-se as fazendas de cadáveres: sítios localizados em algumas regiões do mundo, nenhuma delas no Brasil, que tiveram corpos doados para estudo, colocando estes sob diferentes situações para que sejam observadas a decomposição do cadáver.
Essas áreas dedicadas à decomposição de corpos são de grande valia para o meio jurídico, ajudando a resolver casos com maior precisão devido aos estudos realizados.
Porém, tal local sofreu dificuldade para obter seus objetos de estudo no início de suas atividades, em parte pelo preconceito, em parte pelas limitações jurídicas da doação de corpos, que se faz limitada nas leis internacionais.
No Brasil, a lei de doação de corpos é mais severa, e ainda está engatinhando quando comparada com as leis internacionais, dificultando a criação de áreas de pesquisa como estas no país.
De início, é necessário conceituar a base de todo o assunto por trás do presente trabalho: a Medicina legal.
Medicina legal, dentre muitas definições, foi colocada como “ciência e arte extrajurídica auxiliar alicerçada em um conjunto de conhecimentos médicos, paramédicos e biológicos destinados a defender os direitos e os interesses dos homens e da sociedade” (CROCE; CROCE JUNIOR, 2012).
Baseado nisso, a medicina legal sob a óptica da classificação didática, existem 14 separações, sendo elas: antropologia médico-legal, traumatologia médico-legal, sexologia médico-legal, tanatologia médico-legal, toxicologia médico-legal, asfixiologia médico-legal, psicologia médico-legal, psiquiatria médico-legal, medicina legal desportiva, criminalística, criminologia, infortunística, genética médico-legal e vitimologia. (FRANÇA, 2017)
Tal área da medicina não se preocupa especificamente com o estado do objeto de estudo, tão pouco importando se este está vivo ou morto. Seu enfoque também não é direcionado a nenhuma área especifica do direito, sendo utilizado principalmente nas áreas criminais, cíveis e trabalhistas (DEL-CAMPO, 2007).
É difícil determinar qual das áreas da medicina legal possui maior relevância, sabe-se, porém, que a ausência de conhecimentos essenciais no caso concreto não dá ao magistrado todo o prospecto devido para resolução da lide, mostrando aí a importância do perito para esclarecimentos médico-legais.
Para dar enfoque ao assunto do presente trabalho, duas áreas da medicina legal serão esmiuçadas: a antropologia e a tanatologia forense.
A antropologia forense trata da identificação do indivíduo, seja vivo, morto, inteiro ou em pedaços. Identifica as características do objeto de estudo que o distingue dos demais. Aborda principalmente a identidade objetiva da pessoa, com as particularidades permanentes de seu ser, e não a identidade subjetiva, ou seja, a visão e ideia que cada pessoa tem de si mesma (FRANÇA, 2017) (GRECO et al., 2010).
A identificação do indivíduo pode ser separada em duas categorias: a médico-legal e a judiciária (ou policial). A médico-legal, separado em suas categorias, analisa aspectos como raça, sexo, idade, altura, sinais e cicatrizes, voz, aptidão, força, as características de identidade subjetiva. A identificação judiciária é dada pelas impressões genéticas de DNA, biometria, fotografias e retratos falados.
Nas análises médico-legais, são vistos aspectos como tamanho e formato do crânio, que dão característica da raça do sujeito, por exemplo; informações sobre a arcada dentária, que consegue demonstrar a idade; medições sobre os ossos, como fêmur ou separação dos ossos e cartilagens da mão, que demonstram a idade do indivíduo, ou ainda a analise do osso pélvico, que consegue demonstrar o sexo do espécimen; tatuagens, que muitas vezes conseguem qualificar a vida pregressa de um indivíduo baseado no desenho.
Das identificações judiciárias, a mais proeminente é sem duvida a datiloscopia, que é o estudo da impressão digital deixada pela marca dos dedos de cada um, que não pode ser copiada, e pode ser encontrada em diversos locais, como móveis, vidros, armas, e até folhas e frutos (CROCE; CROCE JUNIOR, 2012).
O segundo enfoque que será dado no presente trabalho, como já dito, é em relação a tanatologia forense, que é o estudo da morte e de suas consequências.
Assim como é difícil definir o conceito de vida, o significado da palavra morte também não é exato. Tal conceito antes era definido como “a cessação total e permanente das funções vitais”, sendo que hoje este não é mais aceito, em primeiro caso pelo avanço da medicina e possibilidade de reversão do quadro quando tais funções se encerram, segundo pela criação da Resolução CFM nº 1.480/97, que define a morte para fins de doação de órgãos a morte encefálica.
A determinação da morte encefálica é dada em vários países de formas diferentes. No Brasil, a método para atestar a morte encefálica, bem como todos os aspectos iminentes a ela, está definido na Resolução CFM 2.173/17 (FRANÇA, 2017).
Os aspectos referentes a posse e uso do corpo será discutido em capítulo próprio do trabalho.
A morte real, onde não há mais o que se discutir ou fazer, é sucedida pelos chamados fenômenos cadavéricos, que são separados em abióticos e transformativos. Os primeiros, podendo ser imediatos ou consecutivos, consistem nas primeiras demonstrações corporais pós mortem, como a perda da consciência, cessação da circulação, imobilidade, ausência de pulso, relaxamento de esfíncteres, o resfriamento corporal, a rigidez, os espasmos, as manchas e livores cadavéricos e o dessecamento; os transformativos alteram a composição corporal e variam de acordo com a causa da morte e o ambiente em que o corpo está, podendo ser destrutivos (autólise, putrefação e maceração) ou conservadores (mumificação, saponificação, calcificação e corificação) (CROCE; CROCE JUNIOR, 2012) (DEL-CAMPO, 2007).
O exame do local de morte é comum nos casos criminalísticos. A data aproximada da morte pode ser determinada pela analise dos índices já ditos anteriormente, por exemplo pelo equilíbrio térmico entre o ambiente e o cadáver, pode-se presumir morte aproximada de 15/24h, e a analise da fauna cadavérica, que varia tanto seu local quanto o tempo de presença do corpo naquele sítio.
Ainda no aspecto criminal, a tanatologia é a ciência responsável por responder as questões a respeito da classificação jurídica da morte, ou seja, se ela foi homicídio, suicídio ou morte acidental, bem como a hora de provocação das lesões, se estas foram antes ou após a morte.
Sempre que um profissional da área é convidado a dar seu parecer em um caso jurídico, este o fará por meio de perícia, que será o instrumento constituinte do laudo emitido por este. O requisito dos laudos para cada ramo do direito é definido em lei, em seus livros próprios.
Conhecidas como “fazendas de cadáveres” (originalmente “body farm”, em inglês), o Anthropology Research Facility (ARF), foi o primeiro centro de pesquisas antropológicas, que faz parte do Centro de Antropologia Forense, na Universidade do Tenesse, em Knoxville.
William M. Bass, idealizador do projeto, viu a necessidade de maiores pesquisas relacionadas a decomposição de cadáveres quando em 1977, após um ato de vandalismo em um túmulo de uma baixa provocada pela Guerra Civil Americana (1861-1865), os investigadores notaram um corpo ainda em estado de decomposição, fato que os levou a acreditar que um homicídio havia sido cometido, e que o cadáver do crime teria sido ocultado nesse velho túmulo.
Convidado para analisar a idade dos restos mortais, Bass deu uma estimativa de aproximadamente um ano. Ao levar o espécime para o laboratório, o professor Bass e seus estudantes descobriram que aqueles restos eram de fato da vítima morta no período da Guerra Civil, errando sua aproximação por uma média de 100 anos, mostrando a necessidade de maiores pesquisas sobre decomposição e identificação de corpos. (JANTZ; JANTZ, 2008)
Após perceber a escassez de material para sua pesquisa, Bass foi em busca de patrocínio perante a Universidade do Tenesse, onde na época lecionava e era chefe do departamento de antropologia do instituto. A localização inicial fornecida era dentro da área do Instituto de Agricultura da faculdade, que ficava próximo a uma unidade prisional.
Devido a baixa segurança da unidade, os presos frequentemente escapavam, invadiam a área de pesquisa, e acabavam por contaminar e prejudicar os dados coletados. Preocupado com os sujeitos de pesquisa, Bass requisita a mudança de local, sendo colocado por volta de 1980 em uma área desativada do hospital da Universidade, onde pôde dispor dos mecanismos de segurança necessários para continuidade de seu projeto. (SHIRLEY; WILSON; JANTZ, 2011)
A primeira doação de corpo para objeto de estudo foi feita em1981, quando após estar instalado na nova área, Bass comunicou médicos examinadores da necessidade de cadáveres para sua pesquisa. Naquele primeiro ano somente quatro indivíduos foram doados, porém atualmente as doações crescem exponencialmente, compondo o maior centro de estudos antropológicos dos EUA.
Hoje, os corpos recebidos no local são derivados de doação própria, da família, ou corpos não reclamados doados pelo estado do Tenesse. Indivíduos que possuam doenças infectocontagiosas não terão seus corpos aceitos como doação, mas suas cinzas derivadas do processo crematório (até o estágio anterior à transformação dos ossos em cinzas) podem ser aceitas para pesquisas no laboratório. É importante salientar que os corpos doados para o Instituto, ao contrário das doações para escolas de Medicina, não serão devolvidos para os familiares (JANTZ; JANTZ, 2008).
As pesquisas realizadas abrangem as transformações pós morte do corpo, seja por longos ou curtos períodos, como as roupas afetam o processo de decomposição, a fauna e a flora próxima dos cadáveres e como ela é afetada, a composição do solo, comparações com a decomposição humana e animal, as alterações químicas no corpo e nos arredores deste no processo de decomposição (WOLFF, 2015) (WELCOME... 2016).
Quando o doador morre, os familiares, hospital ou outro local que o corpo esteja comunica o ARF sobre a possível doação, que passará por um processo legal que tem sua dificuldade variada de acordo com cada caso. Após chegar no local de pesquisa, o corpo (que já foi previamente identificado pelo próprio doador ou hospital) é colocado em um campo aberto dentro da própria universidade, para decompor-se até o estado de esqueletização, onde será fotografado e catalogado.
Cada corpo passa pelo protocolo do projeto que integra, que será responsável pela demarcação e posicionamento do corpo, bem como escolha do local onde este será colocado. Todos os corpos em uso são colocados em uma base de dados com coordenadas e localização em mapa da instalação. Terminados os trabalhos com aquele projeto, os ossos são retirados, limpos e ensacados, onde serão armazenados para outras pesquisas que os requisitem.
Por volta de 1990 o ARF começou a trabalhar com o FBI, proporcionando alguns treinamentos que se consistem em aulas e treinamento de campo, que tentam simular verdadeiras cenas de crime. Em 2001 foi fundada a Academia Forense Nacional (National Forensic Academy – NFA), dentro do Centro de Inovação de Aplicação da Lei (Law Enforcement Innovation Center), na Universidade do Tenesse, que oferece um curso de 10 semanas para agentes da polícia para coleta de evidencias e preservação de procedimentos, estando o ARF entre um dos assuntos lecionados no curso (JANTZ; JANTZ, 2008).
Outros centros antropológicos de pesquisa também podem ser encontrados na Western Carolina University, Texas State University, Sam Houston University, Southern Illinois University e Colorado Mesa University (WOLFF, 2015).
Nos anos anteriores a 1900, nos Estados Unidos, as doações de corpos para dissecação e estudos médicos eram possíveis somente a partir de execuções criminais. Esse fato, tornava o número de corpos para estudos extremamente escasso, mesmo com a crescente abertura de novos cursos de Medicina.
Com a demanda de cadáveres crescendo e o modo de obtenção permanecendo o mesmo, as escolas se viram obrigadas a tomar medidas drásticas. Professores e alunos começaram a roubar os túmulos de indigentes sepultados pelo Estado, ou contratar ladrões de túmulos profissionais. Tais jazigos eram pouco seguros pela falta de interesse tanto de familiares quanto do próprio Estado, e abrigavam em sua maioria afro-americanos, prisioneiros e pobres (GARMENT et al., 2007).
Como os corpos não tinham identificação, tampouco interesse jurídico, o fato do corpo ser roubado de sua tumba era juridicamente não importante, juntamente com a incapacidade de preservar um corpo para dissecação na época, tornaram frequentes os roubos (GARMENT et al., 2007) (COSTA; MILLER, 2011).
Em 1788, próximo ao Hospital de Nova York, algumas crianças brincavam na rua. Em uma das salas do hospital um estudante de anatomia acenou um braço que estava sendo dissecado pela janela para os garotos, um deles inclusive havia perdido recentemente sua mãe, disse que o estudante ainda o provocou dizendo que seria seu corpo.
O garoto correu para contar o ocorrido para seu pai, que enfurecido, exumou o caixão de sua esposa, que para sua surpresa não se encontrava mais no local. Iniciou-se então um tumulto, onde o povo, eriçado pelo marido em luto, invadiram o hospital em busca dos professores/médicos responsáveis por tal atrocidade. Lá dentro, pegaram os corpos dos mortos e expuseram para que toda a cidade pudesse ver as atrocidades que estavam sendo cometidas com seus falecidos.
Os médicos que não fugiram, foram presos para sua própria proteção. Os participantes do tumulto correram a cidade chamando por mais pessoas para se juntarem à revolta, até que por volta de 5000 pessoas foram até o presídio exigindo justiça aos “presos”. A polícia e os militares foram chamados para conter o povo, e ficaram pela cidade por alguns dias até que os ânimos acalmassem.
Em 1789, os políticos da época, forçados pela revolta, criaram um estatuto proibindo punindo o roubo de cadáveres, onde aquele que cometesse tal atrocidade seria chicoteado, multado ou preso. Os únicos corpos disponíveis para os estudos seriam os mortos por crimes, que estavam longe de ser suficientes. A prática continuou a ocorrer, agora por “profissionais” em roubo de cadáveres (COSTA; MILLER, 2011).
Em 1833 as primeiras leis sobre disposição de corpos não reclamados para pesquisa foram criadas. Tais leis, porém foram questionadas por alguns por conta de quem seria a posse do cadáver. As normas foram sendo atualizadas, onde a decisão final do que fazer com os restos mortais de alguém seria da família, mesmo que isso fosse contra os desejos finais do morto.
Após a Grande Depressão, a população começou a se preocupar que todos, até os indigentes, tivessem um enterro digno. O Estado então, tenta, com sucesso, diminuir os custos dos funerais, entre outras políticas funerárias. O resultado disso para as escolas de Medicina foi que o número de corpos indigentes diminuiu, pois aqueles que antes não podiam pagar as custas funerárias, agora podiam.
Em 1968, depois de algumas políticas controversas com relação aos funerais e disposição dos corpos, o Estado resolve unificar as leis até então esparsas sobre o assunto. Foi criada então a Uniform Anatomical Gift Act (UAGA), que uniformiza as leis com relação a doação de órgãos e disposição de corpos para transplantes, pesquisas e educação. A legislação trouxe uma mudança importante nesse aspecto, pois a partir dali o desejo do doador era superior ao desejo de seus familiares.
Hoje, nos Estados Unidos, cada estado tem sua versão do UAGA. Apesar não haver tantos corpos indigentes como antigamente, a divulgação da importância da doação, tanto de órgãos quanto de corpos fez com que as doações aumentassem, conseguindo em partes suprir a demanda (GARMENT et al., 2007).
No Brasil, a Constituição tutela a inviolabilidade do corpo em seu art. 5º, parágrafo X, bem como traz em seu art. 199 §4º sobre a doação de órgãos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...)
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. (...)
§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
Em consonância com a Constituição Federal, o Código Civil traz em seu art. 14 a respeito da doação:
Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Tais dispositivos trazem a proteção à personalidade jurídica da pessoa, dando a ela a liberdade de dispor de seu corpo para pesquisa, desde que de forma gratuita, se assim tiver vontade.
Com relação à disposição de cadáveres não reclamados, a Lei 8.501/92 traz eu seu texto a regulação desta prática:
Art. 1° Esta Lei visa disciplinar a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para fins de ensino e pesquisa.
Art. 2° O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.
Ainda, segundo a lei anterior, mesmo os corpos não reclamados que tenham sido vítimas de mortes criminosas não poderão ser doados a pesquisa.
Uma das principais críticas a Lei 8.501 é que os corpos somente serão direcionados às escolas de Medicina credenciados, não podendo ser utilizados por outros cursos que poderiam se aproveitar do mesmo material (ALMEIDA NETO et al., 2007).
Em 2016, foi proposto o projeto de lei nº 5.901/2016 pelo então deputado Ricardo Izar, candidato pelo PP/SP, algumas alterações na Lei 8.501. Uma delas é a possibilidade de outros cursos além da medicina utilizarem cadáveres provindos de doações para pesquisas cientificas. O projeto também contempla artigos a respeito da disposição dos corpos após o uso, bem como sanções a respeito da comercialização dos restos. O projeto atualmente apresenta a situação “tramitando em conjunto” no site da Câmara dos Deputados.
Para a doação de órgãos, o Estado criou a Lei 9.434/1997, que trata sobre a disposição de órgãos e tecidos para transplante e tratamentos. Hoje, a doação de órgãos pode ser feita com o indivíduo ainda vivo, ou pós-morte.
Existe um certo conflito entre as leis no aspecto da vontade do morto. A doação de órgãos e tecidos pós-morte, apesar de ser vontade do doador, deverá passar pela anuência de familiares. Caso essa concordância não ocorra, nada poderá ser feito. Em contrapartida, a família não poderá em momento algum dispor dos restos mortais de alguém para pesquisas se não há pedido do falecido (FRANÇA, 2017).
O presente trabalho abordou os aspectos iniciais da medicina legal, que tornou possível criar a base para a análise do processo que este está discutindo.
As leis de doação de corpos no Brasil estão passando por um lento processo de evolução. Fora do país, a lei americana para doação de corpos passou por muitos aspectos históricos dos quais a lei brasileira não passou, possibilitando assim que a lei internacional fosse juridicamente mais evoluída que a brasileira.
Vale pontuar que o Brasil, por suas proporções continentais, apresenta uma diversidade de aspectos naturais, como clima e vegetação, e tais aspectos seriam de grande valia na criação das fazendas de cadáveres, para análise da decomposição em diferentes lugares e climas.
A doação de corpos para estudo no Brasil infelizmente está limitada ao uso somente pelas escolas de medicina, e é de grande importância o projeto de lei que tramita em análise para os outros cursos, proporcionando a estes uma maior experiência acadêmica. Além disso, há de se considerar que o número de faculdades de medicina no país vem crescendo e em breve a demanda de corpos para o estudo pode não ser suficiente como aconteceu em terras americanas.
É necessária que o conflito de interesse entre a vontade do morto e a necessidade de anuência dos familiares quanto às doações seja resolvido, fato que pode auxiliar o crescimento da demanda de corpos para pesquisas científicas, podendo até eventualmente surgir a possibilidade de criação da primeira fazenda de cadáveres brasileira.
ALMEIDA NETO, João Beccon de et al. O corpo humano morto: utilização do cadáver para a pesquisa científica e para a doação de órgãos. Revista Brasileira de Bioética, [s.l.], v. 3, n. 2, p.218-235, jun. 2007. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/rbb/issue/view/790>. Acesso em: 08 out. 2019.
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Acadêmica de Direito pela Universidade Brasil; Licenciada em química pela Universidade Brasil, em 2018
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAGATO, Maiara Agustini. As fazendas de cadáveres sob análise jurídica e médico-legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54260/as-fazendas-de-cadveres-sob-anlise-jurdica-e-mdico-legal. Acesso em: 23 dez 2024.
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