RESUMO: O presente artigo pretende abordar a teoria da boa-fé objetiva, analisando suas etapas de evolução, desde o direito romano, passando pelo direito canônico, pelo direito francês (principalmente através da escola da exegese), pelo direito germânico e culminando em sua aplicação e concretização no Direito Brasileiro. Procura traçar ainda um paralelo comparativo entre os conceitos da boa-fé objetiva e da boa-fé subjetiva, buscando uma melhor compreensão através de suas aplicações na realidade. Visa também gerar um melhor entendimento do princípio da boa-fé objetiva e de sua necessidade nas relações atuais, demonstrando que há de ser aplicada no plano real, ultrapassando o plano de ideias e intenções.
PALAVRAS-CHAVE: Boa-fé objetiva. Boa-fé subjetiva. Obrigações.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. CONCEITUAÇÃO DE BOA-FÉ. 3. DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E BOA-FÉ SUBJETIVA. 4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 5. FUNÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA. 6. CONCLUSÃO. 7. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Constituindo um tema de grande relevância jurídica na sociedade atual, a boa-fé objetiva se apresenta como uma evolução da boa-fé subjetiva, deixando de pertencer apenas ao plano intencional e passando a sua concretização no plano real, através da lealdade entre as partes. Assim, é demonstrado o progresso vivenciado na legislação brasileira, em que o Código Civil de 1916, de caráter individualista e patrimonialista, cede lugar ao Código Civil de 2002, sendo, então, pautado pelos princípios de eticidade, sociabilidade e operabilidade. Princípios estes que se concretizam através da aplicação da boa-fé objetiva, ocorrendo sua positivação através de sua cláusula geral, encontrada no Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90.
O princípio da boa-fé objetiva trata dos deveres de cuidado, respeito, transparência, confiança e colaboração entre as partes envolvidas, devendo-se sempre agir com honestidade, lealdade e razoabilidade. Norteia as relações de modo a revolucionar o direito privado, analisando a situação de acordo com o comportamento das partes; cita-se, como exemplo, o surgimento da venire contra factum proprium, pelo qual se proíbe o comportamento contraditório e se firma o princípio em estudo.
2. CONCEITUAÇÃO DE BOA-FÉ
O conceito de boa-fé deve, primeiramente, ser compreendido por meio de sua origem etimológica, derivando do termo em latim bona fides (lealdade, fidelidade, confiança). A expressão fides, em sentido lato, significa coerência e honestidade no cumprimento da expectativa de terceiro, como conceitua Cláudia Lima Marques, “Fides significa o hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromisso assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a “fidelidade” e coerência no cumprimento da expectativa alheia independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído”.
3. DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E BOA-FÉ SUBJETIVA
Para uma efetiva compreensão do conceito de boa-fé objetiva e de sua aplicação no Direito Brasileiro, faz- se mister sua comparação com o conceito de boa-fé subjetiva. De acordo com o mestre Carlos Roberto Gonçalves, “o princípio da boa-fé se biparte em boa-fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé, e boa-fé objetiva, também denominada concepção ética da boa-fé”.
Entende-se, de tal modo, que a boa-fé subjetiva diz respeito a uma motivação íntima do sujeito, a substâncias psicológicas próprias do agente, ou seja, faz referência a uma decisão da vontade, representando a motivação interior da parte de agir de acordo com o direito. Nas palavras do professor Miguel Reale (2003, A boa-fé no Código Civil) “[...] corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito”. Contrária à boa-fé subjetiva encontra-se a má-fé, consistindo na intenção de prejudicar a outra parte envolvida no negócio ou terceiro.
Já a boa-fé objetiva caracteriza-se por ser um modelo de conduta social, isto é, é um principio que estabelece o modo de atuação nos negócios jurídicos, primando pela honestidade, lealdade e probidade. Sob a perspectiva da boa-fé subjetiva, o aplicador do direito deverá ater-se ao comportamento individual, a sua vontade. Em contrapartida, tendo como prisma a boa-fé objetiva, deverá se considerar conduta do homem médio para, então, analisar o caso em questão.
De forma bastante prática e didática a doutrinadora Judith Martins-Costa apresenta em seu livro um exemplo extraído do direito alemão:
A senhora W, de manhã, às 8hs e 45min. , entra na casa comercial de têxteis K para, na seção de miudezas, comprar botões. Ela tropeça, cai, sofre uma fratura no colo da coxa. Uma investigação constata que ela veio a cair devido a um botão esférico que, na seção de miudezas, estava no chão. K, o dono da casa comercial, acha que, presumivelmente, uma freguesa tirara o botão de uma gaveta e deixara cair. Sobre a limpeza do estabelecimento, que diz estar muito bem organizada, nunca ouvira queixas. Apesar disso, a senhora W pede indenização de K. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, p.413).
O caso supracitado se resolvido de acordo com o principio da boa-fé subjetiva, levaria a um julgamento a favor da casa, pois nem o dono, nem seus funcionários queriam que tal fato ocorresse. No entanto, se o mesmo caso fosse analisado sob o prisma do principio da boa-fé objetiva, levaria a um julgamento a favor da senhora, pois, apesar de não ser da vontade do dono e de seus funcionários o tal acidente, a fábrica descumpriu o dever de diligência, não bastando a intenção, mas se primando pela ação.
4. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A teoria da boa-fé, no âmbito do direito, surge com os romanos, para quem esta servia como referência para as relações entre cidadãos livres e clientes (tais relações deviam ser regidas pela fides), para os negócios contratuais e para a proteção possessória. Durante esse período, a fides, ou seja, a ideia de confiança e de honestidade que deveria haver entre as partes, caracterizava-se como um conceito ético, não sendo adotada expressamente como uma técnica jurídica.
Sob influência do cristianismo, se dá uma maior consolidação da teoria da boa-fé objetiva, através da máxima de que não é suficiente que se esteja bem intencionado, mas de que há de se agir de acordo com tais intenções. Assim, a boa-fé passa a ser entendida e conceituada, nas palavras de Judith Martins-Costa, como "a consciência intima e subjetiva da ausência de pecado, isto é, de se estar agindo corretamente, de não estar lesando regra jurídica ou direito de outrem”.
A escola da exegese surge na França, caracterizada por um extremo sentimento de fidelidade e observância aos códigos, os quais eram entendidos como obras perfeitas e destituídas de quaisquer erros e falhas. De tal forma, os códigos eram adotados como a fonte única e incoercível do direito. Através do método adotado por essa escola, a teoria da boa-fé enfrenta uma notável redução e atrofiamento em sua aplicação, passando a ser adotada sem nenhuma possibilidade de interpretação, como um dispositivo fechado, sendo proveniente da legislação codificada e, portanto, não comportando maiores interpretações ou aplicações.
É na Alemanha pós-guerra que o conceito de boa-fé objetiva ganha um novo desenvolvimento. Fundamentada no § 242 do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch – Código Civil alemão de 1900), a boa-fé é adotada como princípio que deve reger a relação entre as partes, surtindo, assim, efeitos em toda a teoria alemã de contratos. O referido dispositivo estabelece que o devedor é obrigado a realizar a prestação da maneira exigida pela boa-fé e pela intenção das partes, determinada de acordo com seus usos. Nessa fase, a boa-fé objetiva é consolidada como deveres anexos ou laterais, inerentes a qualquer contrato, qualquer obrigação e determina uma boa conduta dos participantes, passando a ser entendida como uma fonte autônoma de direitos e deveres.
Outra notável mudança concernente à teoria da boa-fé objetiva se dá através do surgimento de uma sociedade coletiva, de um ambiente massificado. Com essas mudanças, a boa fé objetiva ganha uma diferente interpretação, passando a ser entendida, em seu sentido coletivo, como uma forma de não agir de maneira contrária à justiça, ou seja, torna-se proibido que se pactue opostamente aos objetivos da justiça. Surge, no Código Comercial de 1850, a primeira manifestação da boa-fé na nação brasileira, não possuindo, entretanto, grande efetividade, pelo não reconhecimento de sua função. Assim, ressurge no Código Civil de 1916, apresentando demasiada preocupação com a segurança, ficando, de tal forma, isolada apenas a casos de direito de família e casos possessórios. Consagra-se a boa-fé objetiva no Direito Brasileiro através do Código de Defesa do Consumidor de 1990, tornando-se essencial no relacionamento entre as partes e trazendo um conjunto de deveres anexos às relações contratuais.
O Código Civil Brasileiro de 2002 é revolucionado pela implementação da boa-fé objetiva, alcançando a teoria seu apogeu, causando notáveis mudanças no direito obrigacional clássico e estabelecendo que compete a todos o dever de agir com lealdade, honestidade e probidade nas relações recíprocas, independente do tipo de contrato. (HENTZ, André Soares. Origem e evolução histórica da boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro).
Por fim, consagra-se expressamente o princípio no Código de Processo Civil de 2015 em seu art. 5º, que trata da boa-fé como um dever de todas as partes que participam do processo, inclusive do magistrado.
5. FUNÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA
A boa-fé objetiva possui, precipuamente, três funções, sendo elas as de interpretação do negócio jurídico, de controle e de integração.
Quanto à primeira função, prevista no artigo 113 do Código Civil, entende-se que o negócio jurídico deve ser interpretado da maneira mais favorável àquele que está de boa-fé, isto é, aquele que está de boa-fé possui o “efeito escudo”, protegendo de possíveis eventos como o ato nulo ou anulável.
A segunda função, chamada função reativa ou de controle, trazida no texto normativo do Código Civil de 2002, afirma que quem viola os princípios da boa-fé objetiva comete abuso de direito. Com relação a tal função, torna-se importante a interpretação depreendida pelo STJ no Enunciado no37 da 1a Jornada de Direito Civil que diz “A responsabilidade civil decorrente de abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
A terceira e última função, a de integração, prevista no artigo 422 do Código Civil diz que a boa-fé tem aplicação em todas as fases do contrato, fase pré-contratual, contratual, e pós-contratual. Exemplo de aplicação da boa-fé na fase contratual é a trazida pela Súmula no308 do STJ que afirma que “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
6. CONCLUSÃO
Após exposição e explicação da teoria da boa-fé objetiva, sendo esta ainda apresentada em contraste com a boa-fé subjetiva, infere-se que, através de mudanças, tal teoria passou a influenciar concreta e intensamente as relações jurídicas, apresentando-se, por vezes, como princípio norteador das relações entre as diferentes partes. De tal maneira, nota-se que a simples intenção de bem agir, foi sendo, ao longo do tempo, substituída pelo dever de assim fazer. Assim, o Estado obtém a tarefa de garantir o cumprimento daquilo que foi pactuado entre as partes e de assegurar a não violação das garantias fundamentais constitucionais, tendo forte ênfase o princípio da dignidade humana, nitidamente ligado ao princípio da boa-fé.
Através de sua consolidação no Código de Defesa do Consumidor, no Código Civil e no Código de Processo Civil, o ordenamento brasileiro abraça a teoria da boa-fé em sua forma objetiva, ou seja, sendo esta um requisito das relações entre as partes e entendida como o ato de agir com lealdade e honestidade, depositando confiança na outra parte para que em si também seja esta depositada. Tendo aplicação real na sociedade atual e buscando resgatar valores presentes entre os indivíduos, conclui-se que a teoria da boa-fé objetiva possui grande importância e necessidade de eficácia nas relações jurídicas e sociais, apresentando-se como um caminho a ser seguido e traçado ao longo dos anos.
7. REFERÊNCIAS
AMARAL, Diego Martins Silva do. O Princípio da Boa-Fé e suas diferenças entre objetiva e subjetiva. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=1781>. Acesso em: 28 jul. 2009. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Salvador: Saraiva, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011. 2 v.
HENTZ, André Soares. Origem e evolução histórica da boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9693-9692-1-PB.pdf. Acesso em: 02 jun. 2012.
PRETEL, Mariana. A Boa-fé: conceito, evolução e caracterização como princípio constitucional. Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1346/1285. Acesso em: 02 jun. 2012.
REALE, Miguel. A Boa-fé no Código Civil. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm. Acesso em: 02 jun. 2012
RECLA, Cristina Sirtoli. A boa-fé objetiva como novo paradigma do Direito Contratual. Unesc, Espirito Santo, p.24-32, 2005.
Advogada, Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Joana Nogueira. Teoria da boa-fé́ objetiva e sua concretização no direito brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54270/teoria-da-boa-f-objetiva-e-sua-concretizao-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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