RESUMO: O artigo parte de uma abordagem de elementos históricos e dos fundamentos da República Federativa do Brasil para analisar as relações entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A hipótese de pesquisa é que a defesa das prerrogativas do Poder Legislativo deve alcançar a defesa dos parlamentares para que não seja tolhida a sua atuação. A pesquisa é eminentemente bibliográfica. Os fenômenos do ativismo judicial e da demonização da política têm contribuído para um constante ataque às Casas legislativas e seus parlamentares. Concluímos que só há soberania popular com um Poder Legislativo pujante e a defesa efetivada pelos órgãos jurídicos próprios não deve se cingir à defesa da instituição e deve alcançar os parlamentares porque se estará defendendo um efetivo Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Legislativo, ativismo, demonização, defesa, soberania, democracia.
SUMÁRIO: Introdução. 1.Os conceitos e as categorias meta-históricas. 1.1. Os conceitos jurídico-políticos. 1.2. Espaço da experiência e horizonte das expectativas. 2. Fundamentos da República Federativa do Brasil. 2.1. Soberania. 2.2. Cidadania. 2.3. Dignidade da pessoa humana. 3. Fatores que podem solapar o Estado Democrático de Direito. 3.1 Ativismo judicial ou judicialização da política. 3.2 Demonização da política. 4.1. A defesa das Casas Legislativas. 4.2. A defesa dos parlamentares. 5. Conclusão: O protagonismo do Poder Legislativo como expressão da soberania popular. Referências.
Introdução
A nossa herança cultural decorre em sua maior parte do legado greco-romano e da tradição judaico-cristã, por essa razão recorremos ao mito para apresentar o quadro em que nós nascemos a partir do qual desenvolvemos nossa visão de mundo (weltanschauung).
.O mito de Prometeu[1] traz a narrativa sobre a vida de dois titãs, Prometeu e Epimeteu que juraram lealdade a Zeus e aos deuses olímpicos e com eles lutaram na guerra entre os titãs. Zeus compensou os irmãos por sua lealdade e permitiu que eles criassem as primeiras criaturas para habitar a terra. Epimeteu criou os animais e deu-lhes uma habilidade especial para se proteger. Prometeu moldou o homem a partir do barro e da água, como demorou mais tempo que o irmão não havia mais proteção para dar ao homem. Prometeu pediu a Zeus para permitir que o homem utilizasse o fogo, Zeus negou. Prometeu, então, roubou o fogo dos deuses e entregou aos homens.
Zeus puniu Prometeu fazendo com que ele fosse amarrado em uma montanha para todos os dias ter seu fígado comido para durante a noite ser reconstituído, num flagelo incessante. A punição aos homens não tardaria. Zeus criou a primeira mulher Pandora, dotada da beleza de Afrodite e de outros dons que encantaram Epimeteu que com ela se casou. Como presente de casamento Zeus deu uma caixa com a advertência de que ela não deveria ser aberta. Pandora, não resiste à tentação e abre a caixa deixando sair toda a sorte de males, doenças, guerras, dor, fome, ódio, inveja e morte. Na caixa ficou apenas a esperança.
O preço pago pelo acesso ao conhecimento da arte de fazer o fogo foi ter que suportar uma pletora de infortúnios cujo impacto é atenuado pelo alento oriundo da esperança.
O presente artigo procura empreender uma análise de uma questão dogmática que é a definição dos lindes da atuação dos órgãos jurídicos das Casas Legislativas partindo de premissas zetéticas, mormente da História do Direito.
Como preconiza Ricardo Marcelo Fonseca, o presente deve ser vislumbrado como contingente e provisório, não natural, como consectário da historicidade imanente ao direito[2].
O viés histórico assumido decorre do propósito de se efetivar um estudo do direito, com uma imprescindível apreciação de experiências passadas e atuais, assim como, o futuro e suas conjecturas.
Imersos na seara da história geral com inúmeras teorias com seus respectivos enfoques, optamos por trilhar o caminho da história dos conceitos por julgá-la mais apta a nos fornecer as ferramentas para o nosso estudo. Começando pela semântica constitucional, o estudo dos conceitos avança para temas relevantes do sistema social no qual os diversos subsistemas interagem e imbricam-se, como acontece com o subsistema jurídico e o político.
Não podemos deixar de registrar que a nossa abordagem pressupõe a viragem linguística que muda o prisma da filosofia da consciência e da anterior filosofia ontológica nas quais se pressupunha uma relação sujeito/objeto para enfocar a relação sujeito/sujeito realizada por meio da linguagem[3]. Noutras palavras, não há a pretensão de verdade típica do ontologismo, mas a constatação de que lidamos com a linguagem e nela se relacionam os sujeitos.
1.Os conceitos e as categorias meta-históricas
1.1. Os conceitos jurídico-políticos
O saber jurídico trabalha com conceitos como cidadania e soberania que não possuem uma correspondência empírica. Eminentemente teóricos, os conceitos fazem com que Ulfrid Neumann fale do risco de hipostasiação, da aceitação de um domínio de essências fictícias [4].
Luiz Alberto Warat aduz que os termos possuem dois níveis de significação: o significado de base e o significado contextual. O significado de base é aquele que se encontra no vínculo denotativo com a abstração do prisma contextual. O segundo é o que resulta dos processos de comunicação social [5].
Dentre os inúmeros conceitos que permeiam a realidade politico-jurídica selecionamos três: a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Fundamentos do Estado Democrático de Direito insculpidos no art. 1º da Constituição Federal, serão o norte para a compreensão da questão de fundo do presente trabalho.
1.3 Espaço da experiência e horizonte das expectativas
No processo meticuloso de exame dos conceitos, mormente, as significações e ressignificações dos conceitos na história e na historiografia, passamos ao que reputamos ainda mais relevante para a nossa abordagem, qual seja, o estudo que Koselleck empreendeu sobre o tempo e as instâncias de temporalidade. Esse percurso foi assim descrito:
Ela começou como crítica à tradução descontextualizada de expressões cronologicamente relacionadas ao campo semântico constitucional; em seguida essa especialização pretendeu uma crítica à história das ideias, compreendida como um conjunto de grandezas constantes, capaz de se articular em diferentes formas históricas sem qualquer alteração essencial. Ambos os impulsos conduziram a uma delimitação metodológica mais precisa, pois, ao longo da investigação de um conceito, tornou-se possível investigar também o espaço da experiência e o horizonte de expectativa associados a um determinado período, ao mesmo tempo em que se investigava também a função política e social desse mesmo conceito. Em uma palavra, a precisão metodológica da história dos conceitos foi uma decorrência direta da possibilidade de tratar conjuntamente espaço e tempo, com a perspectiva sincrônica de análise[6].
As categorias meta-históricas espaço de experiência e horizonte de expectativas, apresentadas por Koselleck, são também adotadas por Paul Ricoeur e são fundamentais para entender o tempo histórico/ tempo social.
Ricoeur assevera que a palavra alemã Erfahrung tem uma amplitude abrangente que abarca a experiência privada e a experiência transmitida pelas gerações anteriores ou instituições atuais, um saber adquirido que se transformou em habitus[7]. A experiência é um passado atual ou na expressão de Agostinho, o passado presentificado.
Utiliza-se a expressão espaço para a experiência porque aglomera um enorme conjunto de coisas conhecidas nos quais muitos estratos de tempos anteriores estão simultaneamente presentes sem que haja referência a um antes ou depois. O espaço permite múltiplos percursos em todas as direções.
José D’assunção Barros sugere o espaço de experiência com a figura de um semicírculo para ressaltar que o passado incognoscível representa uma infinita região do passado que está fora do semicírculo, por não ter deixado vestígios, nem fontes para os historiadores. Tudo que está no espaço de experiência se projeta no presente de alguma maneira e pode ser vislumbrado pelos historiadores[8].
Expectativa é o futuro transformado em presente (vergegenwärtigte Zukunft), voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. O temor, a esperança, o desejo, o projeto, a preocupação, a curiosidade, o cálculo racional fazem parte da expectativa. A metáfora do horizonte reflete uma linha por trás da qual se apresenta um novo espaço de experiência que ainda não pode ser contemplado e que se afasta de nós à medida que caminhamos em sua direção[9].
A tensão entre experiência e expectativa que ocorre no presente e de formas diferentes faz surgir o tempo histórico. Não obstante, não são conceitos opostos, são assimétricos. O que distingue a experiência é se fundar em acontecimentos passados que se tornam presentes, ou seja, estar saturada de realidade[10].
Para que possamos nos valer num estudo jurídico das categorias espaço de experiência e horizonte de expectativas precisamos ressaltar que as consideramos categorias formais, vez que não veiculam conteúdo da experiência ou do que se espera. Com essa abordagem formal se busca estabelecer as condições das histórias possíveis e não as histórias mesmas. Na dicção de Koselleck, as categorias “indicam a condição humana universal, remetem a um dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia sequer ser imaginada” [11].
2 Fundamentos da República Federativa do Brasil
2.1. Soberania
A soberania, primeiro fundamento e conditio sine qua non para a própria existência do Estado e para que se estabeleçam os demais fundamentos. É assim definida por Celso Ribeiro Bastos:
Soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. (...) indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. (...) a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da cooperação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à nação intervir nos seus negócios[12].
Diz-se soberana a República Federativa do Brasil porque não se submete a comandos externos agindo em situação de igualdade com os demais Estados. No plano interno, acentua-se a exclusividade dos poderes definidos no texto constitucional para regrar e conduzir os destinos do país e de sua população.
Se soberania é expressão de poder, o parágrafo único do art.1º da Lei Maior não se furtou em identificar o seu titular, nos seguintes termos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
2.2. Cidadania
A expressão cidadania surge na Grécia associada à participação política, participação nas decisões e na gestão da polis (Cidade/Estado). Inicialmente a participação era restrita a algumas classes sociais, vigorava a aristocracia. José Alfredo de Oliveira Barracho afirma que cidadão era o que morava na cidade e participava de seus negócios[13]. Adstrita à territorialidade, foi aos poucos alcançando estrangeiros e abrangendo um maior contingente, mormente em Atenas com o advento da democracia. Neyde Theml apresenta o quadro político ateniense com ênfase na figura do cidadão, senão vejamos:
Os cidadãos eram considerados como o povo (dêmos), exercendo o controle político, e não se confundiam com a população. A pólis era a koinonía politiké, de homens adultos, de condição livre eleutheroí, com direito à participação política, à propriedade da terra e a defesa do território cívico, soldados (hoplitas). Eles tinham os mesmos direitos e deveres, as mesmas instituições, os mesmos cultos e gerenciavam coletivamente o interesse do grupo (politaí) e da população global. Os politaí, eleutheroí eram aqueles que possuíam os direitos políticos, elegendo ou sendo eleitos para exercerem uma função pública, participando ativamente no espaço político. O direito de cidadania em Atenas advinha do fato de ser homem, livre, nascido em Atenas, ser filho de pai ou mãe ateniense, ser reconhecido pela phatria de seu pai, inscrito nos registros cívicos (dêmos) e cumprir com as obrigações militares. Assim sendo, a pólis era o conjunto dos cidadãos (politaí), que não se confundiam com a população do território cívico[14].
Mesmo sob a égide da democracia, em Atenas a participação política não alcançava um largo contingente de pessoas que não eram cidadãos. Na idade Média Ocidental a política e a correlata cidadania e tais questões, segundo Hannah Arendt, perdem espaço para o plano religioso[15]. Retomada com o Iluminismo a cidadania tem hoje uma acepção que pressupõe uma igualdade política e mais que o direito de participação política representa direito a prestações estatais assim como a assunção de deveres. Lamenta-se registrar que a igualdade política representada pela cidadania não tem logrado abrandar a desigualdade econômica que remanesce e serve de entrave para um melhor exercício da formal paridade politica.
Observando o vocábulo cidadania e ultrapassado séculos, salta aos olhos que da mesma palavra foi forjado um novo conceito a partir de uma nova situação histórica. A questão torna-se mais compreensível se nos valermos de duas partes da semiótica, quais sejam: a pragmática e a semântica. O viés pragmático que segundo Luis Alberto Warat se refere à relação do signo com os seus usuários, aponta para o caráter único da utilização da língua, no contexto histórico irrepetível[16]. Todavia, no que concerne ao prisma semântico, no qual se vislumbra o significado do signo representativo do conceito há uma repetição que viabiliza a comunicação com base num sentido preestabelecido. Destarte, a partir de uma semântica conhecida é que o uso pragmático vai alterando paulatinamente o conteúdo dos conceitos sem modificar os vocábulos.
Lamenta-se registrar que a igualdade política representada pela cidadania não tem logrado abrandar a desigualdade econômica que remanesce e serve de entrave para um melhor exercício da formal paridade política.
Mais a frente, examinaremos as formas como a cidadania é exercida e sua relação estreita com a atuação do Poder Legislativo.
2.3. Dignidade da pessoa humana
A posição de destaque dos seres humanos foi evidenciada nos versículos 26 e 27 do Capítulo 1 do Livro de Gênesis que integra a Bíblia cristã e o Pentateuco Judaico que está assim vazado:
26 Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão.
27 Criou Deus o homem à sua imagem,
à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou [17].
É sob o pálio dessa matriz judaico-cristã de homem forjado à imagem de Deus que a tradição religiosa afirma a dignidade da pessoa humana.
A exaltação da estatura do ser humano está subjacente no pensamento grego, mas é bem traduzida, segundo Bertrand Russel, na assertiva do sofista Protágoras de Abdera: “O homem é a medida de todas as coisas, do ser daquilo que é, do não-ser daquilo que não é”[18] .
A dignidade humana em seu cariz igualitário logrou institucionalização recente e só com o advento do Iluminismo passou a ser consistentemente apregoada. Para que se propugne pela dignidade do indivíduo se pressupõe a antecedente dignidade da "espécie humana". Na dicção de Antonio Pelè, a compreensão moderna de dignidade humana tem um duplo alcance: vertical, que expressa a superioridade dos homens sobre os animais e; horizontal, que reflete a igualdade entre os homens entre si, independentemente das funções que desempenhem na sociedade[19].
A dignidade da pessoa humana que está positivada no inciso III do art. 1º da Constituição é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Conquanto a posição de destaque ateste de forma inequívoca a grande relevância que lhe foi conferida não tem o condão de delinear o conteúdo.
A mera previsão legal ou constitucional, nem mesmo o discurso político têm o condão de dar efetividade à dignidade da pessoa humana. Exemplo elucidativo são as palavras do ditador argentino Jorge Rafael Videla que foram consignadas por Gherardo Colombo, senão vejamos: “para nós, o respeito aos direitos humanos não nasce somente do mandamento da lei ou das declarações internacionais, mas é resultante da nossa cristã e profunda convicção de que a dignidade do homem representa um valor fundamental” [20]. Nada mais incongruente que um dirigente, que foi responsável por milhares de assassinatos, apresentar-se como prosélito da dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana pode representar um óbice a comportamentos e normatizações que contra ela se rebelem. Maria Celina Bodin de Moraes assevera que é “contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (sujeito de direitos) à condição de objeto” [21].
Luís Roberto Barroso buscou um conceito de dignidade da pessoa humana de validade universal e com esse escopo apresentou o que denominou “conteúdo mínimo da dignidade humana” que se desdobra em três elementos: valor intrínseco, autonomia e valor comunitário. O valor intrínseco ressalta que a pessoa (como fim) não pode ser transformada em meio disso decorrendo os diretos à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica. A autonomia abrange tanto a esfera privada, “autogoverno do indivíduo” como a esfera pública, participação nas deliberações democráticas. A autonomia garante um mínimo existencial que propicia as condições materiais para o exercício das liberdades. O valor comunitário apresenta um viés heterônomo da dignidade por dar ensanchas a restrições às liberdades individuais com vistas à proteção de direitos de terceiros, da dignidade do próprio indivíduo e de valores morais compartilhados[22]. Para nós, sobreleva-se o conteúdo autonomia consubstanciado na participação das deliberações democráticas que em grande escala se concretizam nas atividades dos parlamentos.
3 Fatores que podem solapar o Estado Democrático de Direito
3.1 Ativismo judicial ou judicialização da política
Partindo das premissas teóricas do presente artigo, pinçamos do espaço de experiência dois fatores que podem comprometer a consolidação ou concretização do Estado Democrático de Direito. São encontradiços num passado recente e no presente, no Brasil e em outros países, quais sejam: o ativismo judicial e a demonização da política.
Na mitologia grega, o julgamento de Orestes traz a primeira narrativa do que se denominou invenção da justiça. A deusa Atena institui um tribunal humano que decidirá o destino de Orestes que matou a mãe para vingar o pai. O órgão destinar-se-á a durar para sempre dotado de autonomia e heteronomia com vistas à coerência e à estabilidade na sua atuação[23]. O tribunal se divide, três votos pela absolvição e três votos pela condenação. O voto de Atena absolve Orestes. A nossa tradição consagra uma origem divina da Justiça, a quem cabe proferir a última palavra.
O art. 2º da Constituição Federal estabelece como Poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Propugna o texto constitucional pelo relacionamento harmônico entre os Poderes. Cada um dos Poderes tem sua atribuição precípua a qual se juntam outras exercidas em caráter atípico.
Na relação entre os Poderes deve ser assegurada a independência e, ao mesmo tempo, a existência de mecanismos de controle dos outros poderes, na fórmula dos freios e contrapesos apregoada nos Estados Unidos[24].
Num contexto em que as constituições assumem posição sobranceira no ordenamento jurídico, o Judiciário, especialmente nos países que têm tribunais constitucionais, passa a ser o “guardião da constituição”, fato que por si só lhe confere um destaque em relação aos outros poderes. No Brasil, o inciso XXXV do art.5º da Constituição Federal consagra o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional que garante a última palavra seja do Judiciário.
Por força do sistema de controle de constitucionalidade o Judiciário assume a condição de legislador negativo na medida em que expurgará do ordenamento jurídico lei ou ato normativo que, segundo sua interpretação, não se coadune com os preceitos constitucionais.
Aqui e alhures, membros do Judiciário resolveram ultrapassar as fronteiras delimitadas nas normas constitucionais para buscar uma atuação ainda mais efetiva, no que se vem denominando ativismo judicial ou politização da justiça.
O ativismo judicial é um fenômeno em que o Judiciário assume uma posição de proeminência na qual passa a ditar políticas públicas e a legislar , imiscuindo-se em atribuições que originalmente são afetas aos outros poderes.
Ingeborg Maus a partir da experiência alemã que a nós inteiramente aplicável assevera que a expansão do controle normativo protagonizado pelo Poder Judiciário se projeta na função de moralidade pública exercida pelo modelo judicial de decisão. De forma subliminar, por trás de generosas ideias de garantia judicial de liberdades e da principiologia da interpretação constitucional podem esconder-se a vontade de domínio, a irracionalidade e o arbítrio cerceador da autonomia dos indivíduos e da soberania popular, constituindo-se como obstáculo a uma política constitucional libertadora[25].
3.2 Demonização da política
A demonização da política e um fenômeno que acontece em escala mundial a partir de experiências com políticos que se mostraram incompetentes ou ineficientes ou, ainda mais grave, corruptos.
Como em toda atividade humana, na atividade política, os indivíduos precisam ter qualificação, assim como, ter o firme propósito de exercer diligentemente seus misteres. Nesse diapasão, os Chefes do Executivo e os Parlamentares devem cumprir suas missões com denodo e de forma proba. Experiências malsucedidas com governantes e parlamentares tem levado a população a uma perigosa generalização.
Operações de combate à corrupção ganham grande repercussão na imprensa formal e nas mídias sociais quando envolvem políticos que não raro, se tornam condenados antes do devido processo legal, e mesmo que ao cabo deste resultem inocentados.
A criminalização da política por meio de ações muitas vezes açodadas e sem respeitar o devido processo legal serve para incutir na população a ideia de que os políticos, que em sua maioria estão nas Casas Legislativas, não merecem confiança e são incapazes de responder aos reclamos da sociedade.
Nesse diapasão, demonizada a política e a correlata democracia, restaria a alternativa da autocracia na qual um ditador esclarecido e longânimo legaria um governo despido de corrupção e de incompetência. Infelizmente, a ditatura militar que findou há quase 35 anos mostrou que esse caminho antidemocrático não é adequado nem salutar.
4. A defesa das prerrogativas e das competências das Casas Legislativas e dos parlamentares.
4.1. A defesa das Casas Legislativas
O Senado Federal, a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, não obstante serem desprovidos de personalidade jurídica, detêm capacidade judiciária e podem por meio de seus órgãos jurídicos estar em juízo.
O Supremo Tribunal Federal “reconhece a ocorrência de situações em que o Poder Legislativo necessite praticar em juízo, em nome próprio, uma série de atos processuais na defesa de sua autonomia e independência frente aos demais Poderes, nada impedindo que assim o faça por meio de um setor pertencente a sua estrutura administrativa, também responsável pela consultoria e assessoramento jurídico de seus demais órgãos. Precedentes: ADI 175, DJ 08.10.93 e ADI 825, DJ 01.02.93.” (ADI 1.557, rel. Min. Ellen Gracie, j. 31/3/2004, DJ 18/6/2004, p. 43).
As advocacias ou procuradorias se incumbem de prestar assessoria e consultoria jurídicas e representarem judicialmente as Casas Legislativas em diversos processos como nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (elaborando as informações ou preparando as petições iniciais nas ações ajuizadas pelas respectivas Mesas Diretoras) e nos mandados de segurança (elaborando informações ou peças vestibulares).
Se o texto constitucional preconiza a harmonia entre os Poderes, na realidade, existem momentos em que o conflito se concretiza e, mormente nessas situações, as Casas Legislativas por meio dos seus órgãos jurídicos defenderam suas prerrogativas e suas competências. Não sem razão a Constituição Federal em seu artigo 49 estabelece competências exclusivas do Congresso Nacional das quais destacamos as seguintes:
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;
A Advocacia do Senado Federal e as Procuradorias/Advocacias de diversas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores constituem o corpo jurídico das Casas Legislativas formado por profissionais recrutados por meio de concurso público. Nada mais apropriado que as Casas Legislativas por meio de um quadro próprio e qualificado terem respaldo para o desenvolvimento regular de suas atribuições, inclusive, se necessário, insurgirem-se contra violações de suas competências e prerrogativas.
4.2. A defesa dos parlamentares
No contexto de um crescente ativismo judicial, de uma atuação, muitas vezes midiática, de órgãos policiais e de fiscalização, de desmesurada ação das redes sociais de internet e da imprensa que podem ser direcionadas contra parlamentares, surge a questão: podem os órgãos jurídicos atuar em defesa dos parlamentares?
O ataque a parlamentares não é coisa nova, emblemático é o episódio que envolveu o ex-presidente da Câmara dos Deputados Ibsen Pinheiro que em novembro de 1993 foi acusado pela revista Veja de integrar a Máfia do Orçamento. Ibsen despontava como um forte candidato à Presidência da República ou ao Governo do Rio Grande do Sul, a reportagem foi devastadora para a sua trajetória política e, posteriormente, apurou-se a inveracidade das acusações.
Velar pelas competências e prerrogativas das Casas Legislativas e não defender os seus membros é permitir que pela via oblíqua do ataque ao parlamentar possa ser apoucada a relevância do Poder Legislativo que vem sendo permanentemente enxovalhado.
A defesa do parlamentar pelo órgão jurídico deve estar relacionada com a atividade parlamentar ou administrativa no parlamento ou contra ofensa a sua personalidade, não se estendendo a defesa a questões privadas não afetas ao parlamento.
Destarte, ainda que de lege ferenda quando não prevista, vislumbramos a defesa dos parlamentares pelos órgãos jurídicos das Casas Legislativas como corolário inarredável do Estado Democrático de Direito.
5. Conclusão: O protagonismo do Poder Legislativo como expressão da soberania popular
O ativismo judicial encontra guarida na origem divina apresentada pelo mito de Atena no julgamento de Orestes. No Brasil, são frequentes os casos onde o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de interpretar a Constituição ou às leis, atua como verdadeiro legislador como no caso da perda de mandato por infidelidade partidária, hipótese não prevista no art. 55 da Constituição Federal. A judicialização da política consubstancia uma atuação legiferante efetivada por quem não se submeteu ao crivo do pleito eleitoral, numa exacerbação dos poderes do Judiciário.
Por outro lado, a demonização da política, malgrado atinja também os Chefes do Executivo, tem como alvo principal os parlamentares e as respectivas Casas Legislativas. No plano federal, o Presidente já edita medidas provisórias e detém a iniciativa para emendas constitucionais e para leis. Um estado autocrático ampliaria os poderes do Presidente e amesquinharia a atuação do Legislativo.
A soberania popular é uma expressão que tem dimensão semântica para abarcar os três fundamentos da República Federativa do Brasil, quais sejam: soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana.
Se o poder emana do povo, a soberania tem que ser popular e expressa por meio da cidadania que abrange o votar e ser votado e também fiscalizar os seus representantes, tudo sem descurar do imprescindível respeito à dignidade da pessoa humana.
O Poder Legislativo é o mais democrático dos Poderes vez que constituído por parlamentares eleitos periodicamente, sendo também o palco das grandes discussões nacionais, regionais e locais. No Legislativo convivem diferentes matizes ideológicos que mesmo após a eleição dos seus representantes enfrentaram uma praxis democrática da votação das diversas matérias submetidas à cada Casa Legislativa.
É no processo político e por meio da política que poderão ser buscados os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erigidos no art. 3º da Constituição Federal. Nesse diapasão, o Poder Legislativo deve assumir o protagonismo no Estado Democrático de Direito como expressão da soberania popular.
Ao lume do exposto, asseveramos que merecem veemente repulsa atos que representem usurpação das competências e prerrogativas das Casas Legislativas ou de seus parlamentares bem como atentem contra a dignidade dos seus membros.
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[4] NEUMANN, Ulfrid. Teoria científica da ciência do direito. In: A. Kaufmann e W.Hassemer Org: Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Trad. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Fundaçao Calouste Gulbenkian. 2002 p. 471.
[5] WARAT, Luiz Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª versão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1984 p. 65
[6] KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. 4.Reimp. Rio de Janeiro: Contraponto (PUC-Rio), 2016, p. 104.
[7] RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Volume 3 - O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. 1 ed. 3. tir .São Paulo: Martins Fontes. 2016, p. 354
[8] BARROS, José D’Assunção. Koselleck, a história dos conceitos e as temporalidades. Araucaria.Revista Iberoamericana de Filosofia, Politica y Humanidades. Año 18, nº 35. Primer semestre de 2016. p.48.
[9]KOSELLECK, Reinhart Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. 4.Reimp. Rio de Janeiro : Contraponto(PUC-Rio), 2016, p. 310-311.
[10] KOSELLECK, Reinhart Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. 4.Reimp. Rio de Janeiro : Contraponto(PUC-Rio), 2016, p.313.
[11] Ibidem 306-308.
[12] MARTINS, Ives Gandra (coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 165.
[13]BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania, a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo .Saraiva. 1994, p.1.
[14] THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1988, p.38-39.
[15] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017, p.43.
[16] WARAT, Luiz Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª versão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1984. p. 45.
[17] BÍBLIA. A.T. Gênesis, Português. Bíblia Sagrada Online. Capítulo 1, versículos 26 e 27.
[18] RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental Trad. Laura Alves e Aurélio Rabello. 3.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 64.
[19] PELÈ, Antonio. Uma aproximacion al concepto de dignidade humana. Universitas, n.1. dez/jan,2004. Disponível em: <http:universitas.idhbc.es/n01/01_03pele.pdf>. Acesso em 14 out.2017.
[20] COLOMBO, Gherardo. Sulle Regole. Milão: Feltrinelli, 2008, p.26.
[21] MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro. Renovar. 2003, p. 85.
[22] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.67-68.
[23] OST, François. O tempo do direito. Trad. Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget. 2007, p.146-153.
[24] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 119.
[25] MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Novos estudos. CEBRAP. Nº58, novembro 2000, p 183-202.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Procurador da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco e advogado. Residente em Recife.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Hélio Lúcio Dantas da. A atuação dos órgãos jurídicos das Casas Legislativas na defesa dos parlamentares como corolário do estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54272/a-atuao-dos-rgos-jurdicos-das-casas-legislativas-na-defesa-dos-parlamentares-como-corolrio-do-estado-democrtico-de-direito. Acesso em: 22 dez 2024.
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