Resumo: O presente artigo possui a finalidade de analisar as premissas relacionadas à construção social do crime e da criminalidade a partir do modelo da criminologia crítica. O tema envolve variáveis sociais, jurídicas, políticas e econômicas que podem ou não influenciar direta ou indiretamente na complexa interação social. O reconhecimento das causas associadas a criminalidade possibilita a elaboração de políticas públicas voltadas ao combate desse flagelo social. A pesquisa é de caráter qualitativo e bibliográfico de modo a possibilitar a discussão teórica sobre a questão por meio de uma análise crítica.
Palavras-Chaves: Criminalidade. Criminologia. Crítica.
Abstract: This article aims to analyze the premises related to the social construction of crime and criminality based on the critical criminology model. The theme involves social, legal, political and economic variables that may or may not directly or indirectly influence the complex social interaction. The recognition of the causes associated with crime makes it possible to develop public policies aimed at combating this social scourge. The research is of a qualitative and bibliographic character in order to enable the theoretical discussion on the issue through a critical analysis.
Keywords: Crime. Criminology. Criticism.
1. Introdução
A criminalidade, no curso da história, se mostra como um entrave social. Inúmeros são os fatores que influenciam diretamente no seu aumento progressivo, o que passou a ser, a partir da década de 80, no cenário nacional, objeto de muitos estudos, inclusive sob o enfoque criminológico, com base nas mais diversas teorias.
Os estudos da construção social do crime e da criminalidade passam por uma transição de modelo teórico. Diante da complexidade da interação social e do desenvolvimento socioeconômico, a criminologia tradicional abre espaço para a crítica. Este modelo criminológico parte de análises pautadas na relação entre o acúmulo de riqueza com a criminalidade, considerando a estigmatização dos indivíduos estratificados em classes sociais e a estrutura do poder político, econômico e jurídico.
2. Criminologia crítica
Para Baratta (2002, p. 209), a criminologia crítica representa uma mudança de paradigma, uma maneira diferente de compreender a criminalidade daquela examinada sob o aspecto da dogmática tradicional. Essas duas concepções correspondem a dois modelos diferentes de ciência social e de Criminologia.
Baratta (2002, p. 215) sustenta que:
Comparada com a criminologia tradicional, a criminologia crítica se desloca em uma relação radicalmente diferente quanto à prática. Para a criminologia tradicional o sistema penal existente e a prática oficial são os destinatários e beneficiários de seu saber, em outras palavras, o príncipe para o qual é chamada a conselheira. Para a criminologia crítica o sistema positivo e a prática oficial são, antes de tudo, o objeto de seu saber. A relação com o sistema é crítica; sua tarefa imediata não é realizar as receitas da política criminal, mas examinar de forma científica a gênese do sistema, sua estrutura, seus mecanismos de seleção, as funções que realmente exerce, seus custos econômicos e sociais e avaliar, sem preconceitos, o tipo de resposta que está em condições de dar, e que efetivamente dá, aos problemas sociais reais. Ela se coloca a serviço de uma construção alternativa ou antagônica dos problemas sociais ligados aos comportamentos socialmente negativos. (BARATTA, 2002, p. 215)
Enquanto a criminologia tradicional parte de premissas destinadas à compreensão da criminalidade sem considerar as violências institucionais produzidas pelo Estado, tão somente sob o aspecto patológico da criminalidade ou relacionando-a com as características biológicas e psicológicas do “delinquente”, a criminologia crítica busca entender o fenômeno da criminalidade à luz da ciência sociológica, trabalhando tanto com a macrossociologia como com a microssociologia, ao considerar elementos tais como o crime, o criminoso, a vítima e o controle social, circundando o processo de criminalização, o sistema punitivo, a estrutura econômica, sobretudo, as violências institucionais praticadas pelo Poder Público.
3. Processo de criminalização
Lopes (2002, p. 1), ao fazer uma releitura da obra de Baratta (2002), aduz que o modelo delineado pela criminologia crítica trabalha, sobretudo, com a ideia de desvio social e processo de criminalização, tendo como objeto a análise das relações sociais, considerando a estrutura econômica à luz da compreensão do cenário jurídico-político de controle social.
Para Cirino dos Santos (2006),
A Criminologia crítica se desenvolve por oposição à Criminologia tradicional, a ciência etiológica da criminalidade, estudada como realidade ontológica e explicada pelo método positivista de causas biológicas, psicológicas e ambientais. Ao contrário, a Criminologia crítica é construída pela mudança do objeto de estudo e do método de estudo do objeto: o objeto é deslocado da criminalidade, como dado ontológico, para a criminalização, como realidade construída, mostrando o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal, que constitui a criminalidade por processos seletivos fundados em estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, desencadeados por indicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza, moradia, em favelas, etc; o estudo do objeto não emprega o método etiológico das determinações causais de objetos naturais empregado pela Criminologia tradicional, mas um duplo método adaptado à natureza de objetos sociais: o método interacionista de construção social do crime e da criminalidade, responsável pela mudança de foco do indivíduo para o sistema de justiça criminal, e o método dialético que insere a construção social do crime e da criminalidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado, que define as instituições básicas das sociedades capitalistas. (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 809-810)
A transição entre os modelos criminológicos se deu na década de 70 na Europa e na América, no início da guerra fria entre o imperialismo capitalista liderado pelos Estados Unidos da América e o socialismo sustentado pela antiga União Soviética. Os precursores da criminologia crítica foram Lan Taylor, Paul Walton e Jock Young, na obra intitulada “The New Criminology: For a Social Theory of Deviance”.
A criminologia crítica não se refere a uma tese fechada, mas sim a um novo paradigma com discursos não homogêneos, distinguindo-se da criminologia tradicional em razão da alteração de objeto e método do pensamento criminológico e sociológico-jurídico.
Cirino dos Santos (2006, p. 809) afirma que o objeto de estudo da criminologia crítica passa a ser a criminalização como realidade construída, ao invés da criminalidade como dado ontológico, e, por sua vez, o método é alterado do etiológico para o interacionista de construção social do crime e da criminalidade e para o dialético.
Segundo Baratta (2002, p. 209), o método etiológico se fundamenta em premissas ontológicas da criminalidade, as quais são predefinidas aos conceitos, a reação social, institucional e não institucional, não englobando as normas jurídicas e sociais, a ação das instâncias oficiais, a reação social respectiva e os mecanismos institucionais e sociais que estabelecem certos comportamentos como criminosos.
A escola que precedeu a mudança de paradigma da criminologia tradicional para a crítica, intitulada positivista, trabalha com o método etiológico. Essa escola, ao definir o objeto de estudo, não questiona o sistema normativo, nem mesmo as instituições que o gerenciam.
Para Prado (2008),
Os postulados basilares dessa escola são: a) o Direito tem uma natureza transcendente, segue a ordem imutável da Lei natural: O direito é congênito ao homem, porque foi dado por Deus à humanidade desde o primeiro momento de sua criação, para que ela pudesse cumprir seus deveres na vida terrena. O direito é a liberdade. Portanto, a ciência criminal é o supremo código da liberdade, que tem por objeto subtrair o homem da tirania de si mesmo e de suas próprias paixões. O Direito Penal tem sua gênese e fundamento na lei eterna da harmonia universal; b) o delito é um ente jurídico, já que constitui a violação de um direito. É dizer: o delito é definido como infração. Nada mais é que a relação de contradição entre o fato humano e a lei; c) a responsabilidade penal é lastreada na imputabilidade moral e no livre arbítrio humano; d) a pena é vista como meio de tutela jurídica e como retribuição da culpa moral comprovada pelo crime. O fim primeiro da pena é o restabelecimento da ordem externa na sociedade, alterada pelo delito. Em consequência, a sanção penal deve ser aflitiva, exemplar, pública, certa, proporcional ao crime, célere e justa; e) o método utilizado é o dedutivo ou lógico-abstrato; f) o delinquente é, em regra, um homem normal que se sente livre para optar entre o bem e o mal, e preferiu o último; g) os objetos do estudo do Direito Penal são o delito, a pena e o processo. (PRADO, 2008, p. 79-80)
Nesse contexto, a escola positivista opera sob o fundamento da ideologia da defesa social, adotando como premissas, segundo a doutrina de Baratta (2002): (a) a legitimidade do Estado para reprimir e penalizar quem violar o pacto social; (b) a sociedade constituída como representação do “bem” e o delito como “mal”; (c) a culpabilidade ou o grau de reprovabilidade social; (d) a finalidade da pena em estabelecer a prevenção social e a recuperação do “delinquente”; (e) a igualdade que determina a aplicação do sistema penal a quem infringir o pacto social, independente de quem seja; (f) o interesse social, com fulcro no direito penal mínimo, para o qual as condutas consideradas delitos estão relacionadas com os valores essenciais a uma dita sociedade.
Já o método interacionista de construção social do crime e da criminalidade busca compreender o objeto de estudo considerando, sobretudo, o “delinquente”, a vítima, o sistema punitivo, as violências institucionais, assim como a estrutura econômica do Estado.
Essa mudança de paradigma foi iniciada com a introdução do labeling approach (teoria da rotulação), baseada em teorias sociológico-fenomenológicas, o que tende a deslocar o objeto de estudo das causas do comportamento criminoso para as condições em que são praticadas, o que não é, no entanto, suficiente para qualificar a criminologia crítica, em razão de três efeitos, apontados pela crítica esquerdista, mistificantes.
De acordo com Baratta (2002), são eles:
a) avaliar a criminalidade e o desvio como resultados de um processo de definições pode provocar, nesse contexto, a ocultação de situações socialmente negativas e de sofrimentos reais, que em muitos casos pode-se considerar como o ponto de referência objetivo das definições;
b) fazer derivar do reconhecimento de efeitos estigmatizados da pena, ou de outras intervenções institucionais, a tese da “radical não intervenção”, significa criar um óbice para as intervenções socialmente adequadas e justas;
c) concentrar as investigações sobre certos setores do desvio e da criminalidade, sobre os quais, de fato, se concentram, com seu funcionamento socialmente seletivo, os processos de etiquetamento e de criminalização (as camadas mais débeis e marginalizadas do proletariado urbano), pode contribuir para a consolidação do estereótipo dominante da criminalidade e do desvio, como comportamento normal destes grupos sociais, e deslocar, assim, a atenção dos comportamentos socialmente negativos da delinquência de colarinho branco e dos poderosos. (BARATTA, 2002, p. 212)
Com o intuito de sanar esses pontos, no contexto da criminologia crítica, está sendo desenvolvida uma teoria materialista que relaciona as situações socialmente negativas e o processo de criminalização com as relações sociais de produção e com a estrutura do processo de valorização do capital.
Para Baratta (2002),
[…] a base do novo paradigma a investigação criminológica tem a tendência a deslocar-se das causas do comportamento criminoso para as condições a partir das quais, em uma sociedade dada, as etiquetas de criminalidade e o status de criminoso são atribuídos a certos comportamentos e a certos sujeitos, assim como para o funcionamento da reação social informal e institucional (processo de criminalização). (BARATTA, 2002, p. 211)
4. Considerações finais
Assim, não se pode negar que o fim ideológico operado pelas premissas da criminologia crítica é a redução do sistema penal, perseguindo as raízes do abolicionismo, de modo a sugerir uma reforma política a médio e longo prazo, posto que se busca não somente a reformulação de programas de governo, mas a mudança de comportamento social.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Renavan, 2002.
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia e a reforma da legislação penal. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil (Brasília), v. 1, p. 809-815, 2006.
LOPES, Luciano Santos. A criminologia crítica: uma tentativa de intervenção (re)legitimadora no sistema penal. De Jure, Belo Horizonte, v. 05, p. 145-176, 2002.
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP, Mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA, tendo sido bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, Pós-graduando em Constitucional pela Universidade Cândido Mendes – UCAM, Pós-graduado em Registros Públicos pela UCAM, Pós-graduado em Processo Penal pela União de Faculdade de Alagoas – UNIFAL, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Tabelião e Registrador do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGRA, MIGUEL JAIME DOS SANTOS. Construção social da criminalidade: análise à luz da criminologia crítica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 mar 2020, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54290/construo-social-da-criminalidade-anlise-luz-da-criminologia-crtica. Acesso em: 26 dez 2024.
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