LYSLLEM HELLEM DE OLIVEIRA PESSOA DE SÁ LIMA[1]
JORGE LUIZ DA SILVA FERREIRA[2]
(Coautores)
RESUMO: O presente artigo, busca analisar a relação que pode existir entre o direito e as manifestações artísticas, a partir de uma incursão histórica sobre o surgimento das artes e seu caminho de expressão até a atualidade, com enfoque no julgamento de Sócrates e na produção cinematográfica produzida por Roberto Rosselini para, ao final, tratar da união vantajosa entre direito e arte, com a finalidade de promover importantes reflexões para a humanidade.
Palavras-chave: Direito. Arte. Sócrates.
ABSTRACT: The present article seeks to analyze the relation that can exist between the law and the artistic manifestations, starting from a historical incursion on the emergence of the arts and its way of expression until the present time, focusing on the judgment of Socrates and the produced cinematographic production by Roberto Rosselini, in order to deal with the advantageous union between law and art, in order to promote important reflections for humanity.
Keywords: Law. Art. Socrates.
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma breve incursão na história da arte e sua importância para o direito. 3. Sócrates na sétima arte: um olhar sobre a obra de Rossellini. 4. Direito e arte: uma simbiose profícua. 5. Considerações finais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a relação existente entre direito e arte, com especial enfoque ao filme Sócrates, dirigido por Roberto Rosselini, em 1971 que retratou os momentos finais do grande filósofo, mostrando um pouco de sua rotina, os momentos iniciais da acusação que ensejou a instauração de um processo, seu julgamento e, por fim, a execução da pena de morte a que fora condenado.
A arte é uma manifestação cultural que se dá de diversas formas, incialmente, tem-se os registros rupestres que faziam referência ao que o homem da era pré-histórica tinha ao seu redor, com o passar do tempo foram se acrescentando novas formas de expressão artística, como a literatura, pinturas, a própria arquitetura, a música, as fotografias e, por fim, a imagem em movimento, que revolucionou a humanidade, o cinema.
A invenção dos irmãos Lumière na França, modificou a humanidade, pois permitiu a visualização de lugares, acontecimentos históricos, como a Segunda Grande Guerra que foi documentada pelos próprios militares, e, claro, a representação de fatos históricos, como o julgamento de Sócrates e sua morte, um dos objetos do presente ensaio.
Com a missão de responder a problemática principal: haveria alguma relação entre direito e Arte?
O objetivo principal, da presente pesquisa, centra-se em analisar a relação existente entre direito e arte com especial enfoque ao julgamento de Sócrates que fora abordado por escritos da época e retratado em um filme, em 1971.
Como objetivos específicos analisar a história da Arte, abordar alguns aspectos do julgamento de Sócrates, a partir de relatos da época, tendo como parâmetro o filme e, por fim, analisar a relação entre direito e arte.
O primeiro tópico da pesquisa, concentra-se na historicidade das artes fazendo, em poucas páginas, um panorama geral acerca das principais expressões artísticas da humanidade, iniciando com a fase pré-histórica e chegando até a atualidade.
Já o segundo capítulo tem a finalidade de tratar dos aspectos jurídicos do julgamento de Sócrates, bem como da forma que fora retratado na produção cinematográfica que possui seu nome. Por fim no terceiro ponto, analisar a relação simbiótica que existe entre o direito e as artes.
São vários os autores que percebem essa aproximação da arte com o direito, alguns como Carnelutti defendiam que a “a arte e o direito servem para ordenar o mundo” (2005, p. 10), deixando evidente que o mister dos operadores do direito também se mostra uma autêntica expressão artística.
2. UMA BREVE INCURSÃO NA HISTÓRIA DA ARTE E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO
O ser humano, ao longo de sua existência na Terra, criou diversos instrumentos utilitários que foram, inicialmente, essenciais para sua sobrevivência, porém, a partir da análise destas criações é possível perceber que em alguns momentos ela serve para demonstrar seus sentimentos, visões e momentos históricos, por isso a arte está intrinsecamente ligada a existência do ser humano.
É certo que a arte desenvolvida antes da escrita é denominada de pré-histórica (ALTET, 1990, p. 39) se manifestavam como pinturas classificadas como rupestres, as quais buscavam retratar os animais e a natureza percebida pelo artista.
Impende destacar que, sobre o período pré-histórico, a humanidade não possui registros e foi a partir da análise de utensílios forjados por artífices, bem como das pinturas deixadas em cavernas que os historiadores conseguiram reconstituir um pouco da cultura e modo de viver da referida época (SANTOS, 2000, p. 10), comprovando a importância do estudo da arte para determinar e melhor entender a visão de mundo experimentada pelo momento histórico que se vivia.
Desde a civilização egípcia a arte foi influenciada pela religião, as tumbas, as construções, as pinturas, giravam em torno das crenças da civilização, sendo um período de bastante desenvolvimento de esculturas e construções que eram verdadeiras obras de arte e que resistem à ação do tempo.
Ainda na Antiguidade, a arte grega, se destaca por seu viés crítico, bem como pelo exercício livre da arte (SANTOS, 2000, p. 27), destacando-se nas esculturas, na literatura e dramaturgia, estas últimas com especial enfoque nas tragédias.
Com a disseminação do Cristianismo, na Idade Média, a arte passa por momentos ligados as fases do referido período, assim, são características típicas do seu início a forte influência da Igreja Católica, pois era uma instituição que detinha o monopólio da educação e da construção de igrejas sendo estas as manifestações artísticas da época em que a humanidade experimentou uma forte crise.
A arte só se desvencilhou das amarras da época no período de transição para a Alta Idade Média, mesmo conservando seus aspectos religiosos e espirituais (HAUSER, 2000, p. 124), de toda forma as construções de igrejas com seus vitrais e afrescos se mostram como imponentes obras de arte.
A partir do período Romântico, as obras de arte, tratavam de questões relacionadas a realidade política, econômica e social (ARGAN, FAGIOLO, 1990, p. 59), retratando os aspectos dos acontecimentos sociais.
O Renascimento pautado no ideal de humanismo que valorizava o homem e a natureza em oposição a religião e as crenças, permitiu o surgimento de expressões artísticas mais complexas, incorporando técnicas como a perspectiva e o realismo, buscando demonstrar os principais valores da época que eram a racionalidade e a dignidade da pessoa humana (SANTOS, 2000, p. 78).
O período Neoclássico, em decorrência do Renascimento, a arte se insere nesse contexto de complexidade, passando a ser analisada através de diversos conceitos e visões amplos e articulados, englobando cada vez mais elementos e formas de manifestação, muitas vezes até impopulares (GASSET, 2001, p. 21), mas que não deixavam de ser manifestações artísticas.
A partir do século XX, com o desenvolvimento das ciências, da indústria e das conquistas técnicas, introduz-se novos conceitos a partir da multiplicidade das formas, como bem marcado por movimentos como impressionismo, expressionismo, cubismo, abstracionismo, dentre outros, chegando ao futurismo, momento em que a ficção se sobrepõe a realidade.
Neste ínterim, o conceito de arte possui várias percepções, em determinado momento seria a idealização da vida, em outros a reprodução destinada a preservação da existência (HAUSER, 2000, p. 01), porém uma coisa é certa: a ligação do homem com a arte, como forma de expressão da sua existência e cultura.
Em que pese as controvérsias que se apresentam quando se tenta definir arte, percebe-se que ela se mostra como uma experiência que deve ser compartilhada, por possuir a essência do que é humano, permitindo a construção e uma forma à experiência humana (HAYMAN, 1975, p. 19), assim, pode-se dizer que a arte está presente em todos os aspectos da história e da vida humana, integrando a cultura, a política, a religião, a economia e o próprio direito.
No que diz respeito a ligação do direito com a arte, objeto do presente estudo, pode-se dizer que “a arte e o direito servem para ordenar o mundo” (CARNELUTTI, 2005, p. 10), tendo em vista que tanto o direito quanto a arte fazem uma ponte entre o passado e o futuro.
Pode-se observar o direito nas modalidades de expressões artísticas, como por exemplo, na literatura, tema este que foi objeto de estudo de um movimento, denominado de Law and Literature que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1980, encontrando pontos de apoio para o direito na literatura (COSTA; CAMPELLO, 2016, p. 59), sendo seguido pelo movimento Law and film, que estuda a relação do direito com o cinema, tendo em vista as importantes reflexões que podem ser suscitadas.
Pode-se destacar, como exemplo, a tragédia grega, escrita por Sófocles, em 446 a.C., que retrata a briga pelo poder na cidade de Tebas, tratando de temas como o conflito entre o direito natural e o direito positivo e a democracia, tal abordagem virou o roteiro de um filme lançado em 1961, dirigido por Yorgos Javellas.
Outra obra da literatura que se destaca é Il Mercante di Venezia, escrita por Shakespeare, que desponta uma reflexão sobre o poder dos contratos, liberalismo e a atuação do advogado, por apresentar uma história clássica que se aplica a contemporaneidade, transformou-se em filme, sob a direção Michael Radford, em 2004.
Impende destacar as reflexões do livro O processo, de Franz Kafka, que apresenta grandes discussões acerca da morosidade do Poder Judiciário, burocracia, religiosidade, bem como o papel do advogado, a referida história virou um filme que a retrata quase fielmente, em 1962, produzida e roteirizada por Orson Wells, e, da mesma forma que as demais, aborda importantes temas relacionados a atualidade.
Neste diapasão, percebe-se a intensa ligação entre Arte, em suas várias modalidades, e Direito, pois através da literatura as importantes reflexões do direito podem ser repassadas de uma forma mais compreensível para pessoas que não estão familiarizadas com os termos técnicos da ciência jurídica, sendo certo que ao transformar tais obras em filmes, utiliza-se outra percepção de arte, que alcança um número bem maior de espectadores, consequentemente a manifestação da arte alcança uma finalidade social.
Adentrando, especificamente, na seara que se pretende abordar com a presente pesquisa, o cinema, se mostra como uma das materializações da arte mais difundida, que alcança todas as camadas da sociedade, pois as imagens em movimento podem retratar histórias verídicas, de ficção, documentários, todos com a finalidade de reflexão.
É certo que o ordenamento jurídico não se resume a um conjunto de regras organizadas e escritas, existem importantes noções que encontram-se por trás da ideologia constitucional protegida pelo Estado, como, por exemplo, a ideia de direitos fundamentais, Justiça, perpassando por reflexões filosóficas e sociais que podem ser objeto desta expressão artística.
3. SÓCRATES NA SÉTIMA ARTE: UM OLHAR SOBRE A OBRA DE ROSSELLINI
De várias obras que poderiam ser analisadas, no presente ensaio, elegeu-se o filme, que tem por título original Sócrates, lançado no ano de 1971, produzido com a direção de Roberto Rossellini, tendo como roteiro os momentos finais da vida do grande filósofo Sócrates, que, estima-se, ter vivido no período de 470 a 333 a. C.
Impende destacar, antes de tratar do filme, alguns aspectos acerca dos aspectos históricos e sociais da Grécia, na época em que viveu o grande Sócrates.
A Grécia é uma das civilizações mais antigas da humanidade e tem como grande característica o amor aos esportes e a representações culturais, tais como literatura, dramaturgia, música, esta última, inclusive, objeto de vários elogios na obra de Platão que a tratava como expressão cultural soberana capaz de atingir a alma (2003, p. 401), percebe-se que, tratando especificamente, de Atenas, o povo respirava arte, de todas as formas e em todos os recantos da cidade.
Uma característica muito forte da arte grega é a liberdade de expressão, de pensamento e de conduta vivenciada pelo povo ateniense (RIBEIRO, 2012, p. 67), somados a democracia que permitia a participação ativa dos cidadãos nas decisões do Estado.
O filme começa tratando do momento em que Atenas, liderada por Alcibíades, tinha acabado de ser derrotada por Esparta, liderada por Lisandro, na Guerra do Peloponeso, assim, Atenas, passava por uma grande crise social e política.
Neste ínterim, surge Sócrates, com vestes simples e rústicas, andando por Atenas cercado de alunos ou, como se costumava dizer na época discípulos, falando sobre assuntos como virtude e sabedoria, tocando em temas sensíveis da sociedade, como por exemplo o fato de não defender a democracia como sistema de governo, por entender que o governo não deveria ser da maioria nem da minoria, mas daquele que sabe, ou seja daquele que detém o conhecimento (STONE, 2005, p. 31).
Pelos relatos sobre a vida de Sócrates, deixados por Platão e Xenofonte, percebe-se que ele fazia parte de uma classe média da época, pois mesmo se declarando pobre, criticava os sofistas, os quais cobravam pelos ensinos dispensados, enquanto ele se orgulhava de levar conhecimento sem cobrar nada em troca (STONE, 2005, p. 150), isto não significa afirmar que Sócrates era rico ou que sua família, composta por sua esposa Xantipa e seus três filhos, passassem grandes necessidades, mas percebe-se, pelas narrativas, algumas privações.
No filme é possível visualizar um pouco das condições de vida e do método desenvolvido e utilizado por Sócrates para ensinar aos seus alunos, denominado de maiêutica, baseado na dialética que visa a elucidação do conhecimento de um assunto, a partir da reflexão sobre as respostas obtidas a partir de perguntas simples. Assim, era através de perguntas que Sócrates proporcionava a reflexão de seus alunos, extraindo deles o conhecimento, o qual era transmitido oralmente.
Manteve seu jeito tranquilo e confiante em meio aos acontecimentos da época da crise vivenciada por Atenas, porém seus ensinamentos começam a incomodar e por isso, Sócrates, é denunciado pelo poeta Meleto, pelo empresário e político Ânito e pelo orador Lícon.
Estima-se que a sessão do júri grego era um espetáculo que se desenrolava em um cenário extravagante, pois se passava em praça pública, com toda a população, o tribunal era composto por jurados que eram convocados das dez tribos que povoavam Atenas e em cada julgamento sorteavam de 200 a 501 jurados (RIBEIRO, 2012, p. 298).
O julgamento inicia-se com a chegada da população em praça pública, em seguida são anunciadas as acusações e, em continuação, os acusadores passam a ter a palavra para discursar e demonstrar os motivos da acusação.
Eram duas as acusações que pesavam sobre o grande filósofo, reproduzidas por Platão “Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades novas” (1974, p. 11), como se pode perceber as duas acusações possuem um conceito muito vago, tomando-se por base, inclusive, os costumes da cidade.
A cena do julgamento é completamente retratada no filme, o que permite ao expectador a visualização clara deste momento, sendo certo que seus acusadores se limitavam a falar que os discursos do grande filósofo influenciavam negativamente os jovens e a afirmar que tudo era por amor a Atenas.
A partir da análise de todo o contexto é possível entender que os acusadores não estavam preocupados com discursos relacionados a religião, mas era uma forma de tocar nas críticas contra a democracia, realizadas pelo acusado, inflamando os ânimos e a raiva dos juízes e da população contra Sócrates (ROCHA, 2001, p. 62).
O ponto alto do julgamento foi a defesa do grande pensador, ele inicia falando que seus acusadores descrevem um outro Sócrates que ele não conhece, pois seu único intuito era a busca da verdade e, em mais uma demonstração de humildade, explica que se tivesse o conhecimento poderia fazer como outros da época que cobravam para transmiti-lo, mas ele só tinha a certeza que nada sabia, por isso não teria condições de vender esse conhecimento.
Das várias perspectivas que se pode ter a partir dos poucos relatos da época Xenofonte afirma que “Sócrates só ensinava seus discípulos a se absterem de toda ação ímpia, injusta e reprovável, não somente na presença dos homens como também na sociedade, visto convencê-los de que nada do que fizessem escaparia aos deuses” (1974, p. 51).
Ao tentar demonstrar o motivo das acusações ele utiliza o argumento de que possuía sabedoria e, antes que pudesse explicar, a plateia tenta interrompê-lo, em seguida ele chama uma testemunha que confirma a resposta dada pela deusa Pitonisa a Clerofonte, no oráculo de Delfos, de que não existia homem mais sábio do que Sócrates.
Em continuação, ele explica que passou a tentar entender o que o oráculo lhe disse, concluindo que inesperadamente entendeu que sua sabedoria residia no fato de que ele sempre teve consciência de sua ignorância, enquanto políticos, poetas e artífices acreditam saber tudo sem nada saber.
Em sua defesa, Sócrates exorta “o meu único negócio é o de ir e vir para persuadir, jovens e velhos, de não terem pelos vossos corpos e fortuna uma preocupação superior ou igual àquela que deveis ter no que diz respeito à forma de tornar a vossa alma a melhor possível” (DORION, 2004, p. 61).
Realmente, Sócrates tinha paixão pelo ensino, buscando sempre o bem da cidade, mas em sua visão isso só seria possível a partir de uma estruturação de ordem ética, com a finalidade alcançar a paz social (ROCHA, 2001, p. 126), tudo isso era de fácil visualização da sociedade ateniense, posto que durante sua vida, seus discursos foram proferidos em plena praça pública, para que todos pudessem ouvir e sofreu muitas críticas por não fazer parte da política (STONE, 2005, p. 131).
Durante seu discurso, ele se utiliza de seu método de perguntas e acaba deixando um dos seus acusadores, Meleto, sem resposta diante da multidão, em virtude da desconstrução dos argumentos dispendidos, a partir de perguntas em sequência, ou seja, pela aplicação da própria maiêutica, demonstrando que a acusação tratava-se de uma calúnia que poderia condená-lo a morte.
Na conclusão de seu discurso, fala sobre a morte e sobre o cumprimento de seu dever que era raciocinar, reconhece sua negligência para com sua vida pessoal, pois sua pobreza demonstrava que nunca obteve lucro com seus ensinamentos e finaliza pedindo que reflitam em seus argumentos.
Impende destacar que no fim de seu discurso, Sócrates, acaba confundindo a sua posição de réu com a de filósofo e de educador, pois ao invés de se defender ensina (MASSARA, 1960, p. 140).
Após a finalização do discurso dos acusadores e do acusado, procedeu-se a votação, cada um dos juízes depositaram seus votos e ele foi condenado pela maioria de sessenta votos, em cumprimento a lei da época, deram-lhe a palavra para que pudesse mitigar sua pena, mais uma vez ele demonstra calma, mas defende-se afirmando que faz o bem e que por isso deveria ser levado ao Pritaneu, local em que os benfeitores da cidade são levados para que não passem necessidades.
A proposta de mitigação de Sócrates pareceu uma afronta ao tribunal, pois ao fazer sua proposta estava implícito que ele queria uma recompensa por ter agido bem por toda a sua vida e não uma condenação (ROCHA, 2001, p. 67), por isso, sua proposta fora rejeitada e a condenação à morte fora imposta.
Sua proposta de mitigação foi rejeitada, porém é certo que se ele propusesse uma pena alternativa significaria que ele estava assinando uma autoconfissão (RIBEIRO, 2012, p. 342) e, assim, por acreditar que praticou o bem durante toda sua vida, ensinando sem cobrar nada em troca, fora condenado a morte.
Ao se retratar aos seus acusadores, asseverou, finalmente: “se imaginam que matando homens evitarão que os critiquem por sua vida de ignorância e vício, estão enganados: aprendam que em vez de tapar a boca dos outros é necessário preparar-se para ser o melhor possível. Para vós que me condenastes, bastam essas palavras” (XENOFONTE, 1975, p. 165).
Depois admoestou a cidade de Atenas “quem verdadeiramente me acusou e me condenou foste tu, Atenas! Portanto, condenando-me à morte, não foi a mim, mas foi a ti própria e aos teus sacrossantos ideais democráticos que, vergonhosamente condenastes” (ROCHA, 2001, p. 41).
Após o encerramento da sessão de julgamento a execução da pena, que normalmente se dava em 24 horas, ficou suspensa enquanto a cidade passava por um momento de purificação, assim, o agora condenado, foi conduzido a prisão para esperar o momento de executarem a pena.
Chega o dia de sua execução e ele rodeado de discípulos, mantendo seu comportamento de sempre, afirma que a separação de sua alma e de seu corpo lhe alegra e explica que a alma é quem dá vida ao corpo, portanto a alma não seria atingida pela morte, e assim se despede de todos, ingere o veneno e espera a morte.
A vida de Sócrates marcou a história da humanidade e, por isso, o filme dirigido por Roberto Rosselini, em 1971, fora deveras importante, para permitir que as pessoas pudessem visualizar um pouco do que fora retratado nos diversos escritos da época.
O ator Jean Sylvère, brilhantemente representa o grande filósofo, nos permitindo entender um pouco de sua personalidade que, em alguns momentos, se mostrava forte e em outros possuía a calma característica dos sábios que marcaram a história.
A representação cinematográfica, permite ao expectador perceber toda a organização do Tribunal do Júri grego que, em muitos aspectos, se parece com a dinâmica dos julgamentos atuais.
Infelizmente, Sócrates foi acusado e condenado a morte em um julgamento claramente sem fundamento, porém deixou como legado a paixão de sua vida, o ensinamento, com suas características pessoais, aceitou com respeito sua condenação injusta e se submeteu a vontade “soberana” do júri popular se negando, inclusive, a aceitar a fuga que lhe foi ofertada por seus discípulos, deixando para a humanidade um exemplo de coragem, serenidade e humildade.
4. DIREITO E ARTE: UMA SIMBIOSE PROFÍCUA
O direito ocidental ainda sofre uma grande influência do positivismo jurídico, em especial das ideias propostas por Kelsen e sua teoria pura do direito que propunha o distanciamento do Direito dos demais ramos do conhecimento como a filosofia e a sociologia, tentando a independência científica do direito a partir da utilização da norma como único objeto desta ciência (KELSEN, 1999, p. 79).
A secularidade de Kelsen, e mesmo a decadência do positivismo jurídico, não afastou a influência de sua teoria podendo-se afirmar que “ainda aplicamos os ensinamentos de Hans Kelsen, o que lhe confere a condição de ser o positivista-normativista mais sofisticado da contemporaneidade” (JECKEL; ROCHA, 2018).
A influência do positivismo jurídico e da teoria pura do direito na contemporaneidade não encerra apenas uma divisão do direito dos outros ramos do conhecimento científico, mas, transbordando este limite, e em razão da busca da cientificidade propugnada pelo positivismo jurídico, também se aparta da ciência do direito aquilo que não é científico, ou que não se utiliza de um método, criando verdadeiro abismo entre o direito e a arte, por exemplo.
Nesse ponto, onde se distingue e se aparta a arte do direito, é importante lembrar a influência fundamental da ideia trazida por Emanuel Kant, para quem “os Juízos de gosto” não servem para ampliar o conhecimento, mas para aprovar ou reprovar, de uma perspectiva puramente estética, o objeto analisado” (NOJIRI; CESTARI, 2015). A análise é realizada a partir do mero gosto do observador, não incidindo julgamentos racionais ou cognitivos (NOJIRI; CESTARI, 2015).
O pensamento Kantiniano é espelhado no seguinte fragmento da obra “Critica da faculdade do juízo”, in verbis:
Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. (2002, p. 47 a 55)
Obviamente, o distanciamento do direito e da arte não é absoluto na atualidade, havendo uma palatina aproximação e reconhecimento da importância das diversas expressões humanas para o direito, embora o estudo entrelaçado do direto com a ciência e a literatura ainda represente um prisma muito recente para juristas brasileiros e seja considerado por parte da comunidade científica “uma prática acadêmica diletantista, modista e, de certo modo, supérflua” (TRINDADE; BERNSTSO, 2017).
Diz-se que, no Brasil, embora os primórdios dos estudos entre direito e literatura tenha por marco primeiro os escritos de Aloysio de Carvalho Filho e Luiz Alberto Warat (TRINDADE; BERNSTSO, 2017), teríamos perfeitamente delimitada três fases do estudo do direito e da literatura em solo nacional, a primeira relacionada com os precursores do estudo – do qual fazem parte os dois estudiosos citados – a segunda abrangendo a sistematização dos referidos estudos a partir da década de 90 e a terceira, a partir da última década, com a expansão do estudo e pesquisa em todo o país (TRINDADE; BERNSTSO, 2017).
Mas não apenas o desenvolvimento do estudo do direito a partir da literatura vem tentando se desenvolver e ganhar espaço nos últimos anos. Também o estudo do direito a partir ou em conjunto com a sétima arte, o cinema, encontra seus adeptos e defensores, chegando-se mesmo a afirmar que a linguagem do cinema alcança de forma mais direta as necessárias reflexões filosóficas trazidas pelas artes.
A técnica cinematográfica possibilita a instauração da experiência logopática, que permite a manifestação dos conceitos-imagem, que só podem ser gerados por ela e não por meios literários ou fotográficos. Outra característica importante seria a de que eles sempre apresentam desfechos abertos a novas problematizações filosóficas, mesmo que a intenção do diretor seja a de fechá-las, a linguagem da imagem tem uma natureza subversiva em termos de estrutura. Neste sentido, as soluções lógicas da filosofia escrita geralmente têm uma intenção de apresentar conclusões mais conciliadoras, conservadoras e construtivas, simbolicamente, bem-educadas, como uma tentativa de resolver o mundo dentro da cabeça, que o cinema não consegue fazer, mesmo que tente (OLIVEIRA, 2017).
A despeito da possível diferença qualitativa apresentada entre o diálogo da literatura e do cinema com o direito - bem assim a ideia Kantiana de que o conhecimento estético é movido tão somente pelos gostos e não reclama julgamentos racionais - o certo é que essa análise conjunta possibilita a reflexão crítica dos temas a partir da junção da emoção com a reflexão racional (OLIVEIRA, 2017).
Com efeito, a arte, como defendida por Tolstoy, é a expressão humana que permite ao interlocutor, utilizando a visão ou a audição, captar a expressão dos sentimentos de um artista, ligando as pessoas todas nos mesmos sentimentos. Mais que isso, para Tolstoy “são os valores que os sentimentos evocam e não os sentimentos per se, que atestam sobre a arte. E só é arte aquilo que satisfaz esta condição” (TOURINHO, 2002).
Mesmo aqueles que não tem na expressão dos sentimentos o ponto diferenciador da arte, como Hosper, não despreza esse prisma na sua formação (TOURINHO, 2002), sendo inegável, portanto, que a arte, enquanto expressão humana, traz em si mais do que um conhecimento estético e inverificável logicamente, mas uma importante e inarredável carga axiológica e de conhecimento humano digna de verificação e análise conjunta com outros ramos do conhecimento.
É justamente nesse prisma que se dá a importância do enlace do direito com a arte, em especial a literatura e o cinema. As artes possibilitam a abertura do observador a quadrantes que vão além do meramente jurídico e, com isso, o alargamento da percepção necessária ao jurista para as questões que se colocam na sua dianteira, aprimorando as percepções, possibilitando uma compreensão maior das questões humanas centrais ao direito.
Essa análise conjunta do direito e da arte, ou do direito a partir da arte, tem o condão, ainda, de possibilitar uma análise crítica do universo jurídico, extrapolando o campo meramente dogmático onde a aceitação acrítica da norma com o objetivo de aplicação imediata para resolução de conflitos é a regra (OLIVEIRA, 2017), possibilitando, com isso, uma análise zetética e uma abordagem “humana integral” (OLIVEIRA, 2017) do direito.
A própria estratégia cognitiva das artes e do direito se desenvolvem de modo igual, “a partir de abstrações construídas sobre outras abstrações (normas e obras)” (SCHWARTZ; MACEDO, 2015), de modo que “no plano das estratégias cognitivas, inexiste diferença entre abstrações de abstrações. O processo de conhecimento, portanto, da Arte e do Direito são correlatos” (SCHWARTZ; MACEDO, 2015).
Todavia, embora tal estratégia cognitiva seja a mesma, a arte permite um mergulho mais profundo nas questões humanas que a trama desenvolve, exigindo uma análise de humanidades e aspectos diversos e mais abrangentes, poucas vezes permitida pela análise do direito enquanto norma de conduta, onde o aspecto mais relevantemente trabalhado ainda é o da validade das normas.
Não por outro motivo se diz que “a importância cognitiva do contato com a cultura de humanidades está numa ampliação de nossa vida subjetiva, que permanece até certo ponto inacessível em nossa vida concreta” (OLIVEIRA, 2017), servindo de fonte para a elevação do próprio humanismo do expectador da arte, o que certamente resulta em ganhos inestimáveis ao operador do direito, principalmente pela criticidade que tende a desenvolver na aplicação da norma, possibilitando uma análise do direito para além do aspecto formal da validade.
É de se notar, ainda, que a arte reflete ideias, sentimentos e perspectivas que não estão divorciadas da realidade ou do contexto social em que produzidas ou que pretendem expressar. Nesse sentido, diz-se que o sentimento e a emoção produzidos pela arte são: a) construídos socialmente e historicamente contextualizados; b) focos parciais para a apreciacão e análise da arte e da experiência artística; c) mutáveis e culturalmente diversificados (SCHWARTZ; MACEDO, 2015).
Nesse sentido podemos afirmar que a arte também nos dá subsídio para estudar a ideia do pensamento jurídico em determinada sociedade, revelando por vezes a estrutura social e a organização jurídica dos povos, a forma de se relacionarem com o direito e seus institutos, permitindo uma reconstrução do pensamento jurídico de determinada época e, porque não, permitindo uma análise mais profunda de sua evolução.
O filme aqui trazido como paradigma das artes para análise conjunta do direito espelha exatamente a ideia de que é possível a remontagem de estruturas históricas a partir da arte, e, embora não se possa garantir que a conjuntura social e a estruturação das instâncias de poder eram exatamente iguais àquelas descritas na película, tem-se, ao menos, um norte da percepção destas estruturas pelo artista e pelos povos da época.
As insinuações da obra acerca das acusações que pesavam contra Sócrates, em especial as de introdução de outras divindades na sociedade e da corrupção da juventude local, são fontes intermináveis de perquirição acerca dos valores, costumes e percepção dos povos Atenienses que, conhecidos por precursores da democracia, acabaram condenando a morte um filho ilustre que desafiava o método de produção de conhecimento dos sofistas.
Como se vê, a análise conjunta da arte e do direito, além de totalmente conciliável do ponto de vista da estratégia cognitiva, possui a habilidade de fornecer ao pesquisador ou operador do direito uma percepção humanística que ultrapassa os umbrais da mera logicidade dogmática e permite o lançamento de luz sobre aspectos outros do conhecimento humano caros ao enfrentamento do direito enquanto produto social.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após todas as linhas dispensadas nesta pesquisa pode-se dizer, em conclusão, que é patente a relação do direito com as várias modalidades de expressão artística existente, como por exemplo a literatura, o teatro e o cinema.
Como visto no primeiro ponto, são várias as modalidades de artes, porém em todas elas é possível extrair-se uma reflexão, especificamente, no caso do direito, foram citadas três obras: Antígona, a tragédia grega escrita por Sófocles, que aborda, dentre outros temas, a divergência entre direito natural e direito positivo; Il Mercante di Venezia, uma peça escrita por William Shakespeare que trata, precipuamente, da força do direito contratual; e, por fim, O processo de Franz Kafka, que analisa um processo infindável e completamente contrário ao que ordena o direito.
As três obras acima referenciadas, tratam-se de escritos fictícios, destinados a apresentar reflexões que, embora tenham sido escritas há muito tempo, continuam aplicáveis à atualidade e, por sua importância, foram transformadas em filmes, permitindo ao espectador uma visão mais ampla e detalhada acerca dos temas.
Como já mencionado, são obras de ficção com um fundo de verdade, por outro lado, o objeto do segundo tópico retratou uma história verídica que aconteceu na cidade de Atenas com o grande filósofo Sócrates, abordando-se desde os aspectos jurídicos de seus julgamento e morte a partir das perspectivas da época, com a análise dos escritos de Platão e Xenofonte, bem como a partir do olhar crítico do jornalista Isidor Feinstein Stone e outros autores que buscaram analisar o referido julgamento.
No derradeiro tópico, analisou-se a importância da proveitosa mistura do direito com a Arte, mostrando-se que, sem sombra de dúvidas, se mostra deveras importante, por ser capaz de disseminar o conhecimento jurídico de forma mais acessível, tanto para aqueles que não estão familiarizados com o rigor linguístico da técnica jurídica, quanto para aqueles que são operadores do direito.
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[1] Mestre em Direito (FADIC). Especialista em Direito Civil e Processual Civil (UNINABUCO). Bacharela em Direito (FACOL). Advogada. Professora no Centro Universitário Facol – UNIFACOL.
[2] Mestre em Direito (FADIC). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNINASSAU e ESCOLA JUDICIAL DE PERNAMBUCO). Bacharel em Direito (FIR). Analista Judiciário (TJPE). Professor no Centro Universitário Facol – UNIFACOL.
Mestre em Direito (FADIC). Especialista em Direito Processual: Constitucional, Civil, Penal e Trabalhista (UNINASSAU). Bacharel em Direito (UNIFACOL). Advogado. Professor do Centro Universitário Facol – UNIFACOL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, OBERDAN FLORIANO DE. O enlace entre a Arte e o Direito: uma análise das vantagens dessa interação a partir do filme Sócrates Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2020, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54382/o-enlace-entre-a-arte-e-o-direito-uma-anlise-das-vantagens-dessa-interao-a-partir-do-filme-scrates. Acesso em: 23 dez 2024.
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