Graduada pela Universidade Cândido Mendes - Centro. Advogada.
RESUMO: A teoria do tipo penal é um tema muito discutido no direito penal, em sua parte geral. Serão explicitadas na pesquisa além dos conceitos da tipicidade formal e material, as teorias da tipicidade conglobante, bem como a teoria da imputação objetiva como novas formas de se interpretar a tipicidade penal. Sendo assim será trazida, além dos conceitos, a possível aplicação prática, bem como o estudo da viabilidade da adoção da teoria da imputação objetiva no novo Código Penal, que se encontra em vias de desenvolvimento atualmente. A pesquisa, portanto, tem como objetivo esclarecer um tema normalmente não compreendido entre estudantes e operadores do direito, além de tentar trazer uma nova perspectiva ao direito penal, corrigindo suas imperfeições, em busca de um sistema mais coeso.
Palavras-chave: Direito Penal. Tipicidade penal moderna. Teoria da tipicidade conglobante. Teoria da imputação objetiva.
SUMÁRIO: Introdução. 1. As teorias da tipicidade adotadas atualmente no Código Penal. 2. A teoria da tipicidade conglobante. 3. A teoria da imputação objetiva. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O trabalho proposto tem como foco a análise das teorias do tipo penal com ênfase na teoria da tipicidade conglobante e da imputação objetiva verificando a existência de sua viabilidade prática no sistema penal brasileiro, modernizando-o.
Trata-se de um tema em voga na doutrina penal desde seu nascimento como direito autônomo, sua respectiva codificação, e seu reconhecimento como imprescindível para tornar o sistema punitivo coeso.
Objetiva-se discutir com o presente estudo qual é a melhor teoria moderna a ser adotada no sistema penal brasileiro, tendo em vista que o atualmente aplicado apresenta muitas falhas e incoerências, gerando repercussão direta na sociedade, já que gera a condenação de indivíduos.
Para tanto, inicialmente será feita uma reflexão acerca das principais teorias sobre o crime já existentes, aplicadas e positivadas, explicitando-se qual foi adotada pelo nosso ordenamento jurídico.
Serão apresentados os conceitos das teorias modernas e todos seus detalhes, bem como as consequências práticas da hipotética adoção, mediante apresentação de precedentes vanguardistas dos tribunais formadores do ordenamento jurídico.
Sendo assim, é importante ressaltar que o projeto visa a analisar, sobretudo a viabilidade prática da adoção da teoria da imputação objetiva, que se encontra positivada atualmente no projeto do novo Código Penal, que se encontra em vias de desenvolvimento.
Diante do contexto de incoerências evidentes no sistema penal brasileiro, destaca-se como relevante o estudo de como a teoria da tipicidade conglobante e a teoria da imputação objetiva poderiam solucionar os problemas e lacunas ainda existentes no sistema basilar do direito penal, no que tange ao tipo, tendo em vista que ele é o elemento primário para consubstanciar o que todos conhecem como crime.
Assim sendo, adotando as teorias a proposta é que não haja mais o confronto entre uma conduta que é proibida pelo Estado, e ao mesmo tempo exigida por ele, formando uma evidente incoerência, bem como evitar a propositura de ações penais, levando a discussão para o plano objetivo, ao invés do subjetivo.
A metodologia a ser adotada é a do tipo bibliográfica, histórica e descritiva.
1.AS TEORIAS DA TIPICIDADE ADOTADAS ATUALMENTE NO CÓDIGO PENAL
O princípio da Fragmentariedade, que rege o direito penal, traz como consequência uma construção tipológica que individualiza condutas que possam vir a ferir os bens jurídicos mais importantes para a sociedade.
O conceito analítico-operacional estratificado, por sua vez, estuda especificamente os elementos integrantes geradores da infração penal, a saber: fato típico, ilícito ou antijurídico e culpável.
Inseridos no fato típico, por sua vez, se encontram quatro elementos: conduta, resultado, nexo causal e tipicidade.
Diante disso, a tipicidade é alocada no primeiro momento de estudo da teoria do crime, objeto de análise presente pesquisa.
O tipo penal é a soma dos elementos descritos como puníveis na lei, limitando e individualizando as condutas penalmente relevantes. É na realidade um modelo abstrato de comportamento proibido pensado pelo legislador.
A tipicidade, por sua vez, é conceituada por Cezar Roberto Bitencourt como sendo a operação intelectual de conexão entre a infinita variedade de fatos possíveis da vida real e o modelo típico descrito na lei, consistindo em analisar se determinada conduta apresenta os requisitos que a lei exige, para qualificá-la como infração penal[1].
Ou seja, a tipicidade nada mais é do que a conformidade da conduta praticada pelo agente com o tipo abstratamente previsto no Código repressivo. Consubstancia-se em uma adequação típica tendo como base o comportamento concretamente realizado, se aproximando de um juízo de realidade.
Atualmente se adota primeiramente a tipicidade formal, também chamada de legal, como forma de verificação da ocorrência ou não do crime. Ela pode ser conceituada como a subsunção da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na normal penal, de forma perfeita. Sendo assim, se consubstanciaria na descrição na lei da conduta formalmente proibida.
Segundo preleciona Paulo Queiroz, típica é, em consequência, toda conduta humana que corresponda ao modelo legal (tipo penal). Tipicidade formal significa, assim, a coincidência entre dado comportamento humano e a norma penal incriminadora, como homicídio, furto ou estupro, por exemplo,[2].
A tipicidade formal deve ser observada primordialmente sob a finalidade de confrontar a conduta praticada pelo agente com os tipos previstos abstratamente no Código Penal objetivando a conclusão se o indivíduo praticou ou não o delito.
Pode-se considerar, portanto, como o tipo penal clássico que contém o verbo da conduta, seus elementos objetivos e subjetivos, e que consiste na subsunção da conduta a descrição prevista de forma fria.
Entretanto, a tipicidade formal não é adotada de forma isolada, sendo reconhecida pela própria jurisprudência dos Tribunais, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e pelos demais doutrinadores penalistas, a exigência de uma valoração mais aprofundada, um juízo de valor.
Para tanto não basta apenas que a conduta se adeque, em uma simples subsunção do comportamento do agente ao tipo objetivamente analisado, para se concluir pela tipicidade penal, dada sua grave natureza punitiva e consequência ao ser humano.
A tipicidade material, então, vem completar o conceito de tipicidade atualmente adotado pelo ordenamento jurídico. Seu objetivo é indicar preponderantemente se houve ou não a afetação do bem jurídico com a conduta do indivíduo.
Assim sendo, a tipicidade material está intimamente, e mais do que isso, precipuamente ligada ao Princípio da Lesividade, estabilizando o conceito de que a conduta que não afetar o bem jurídico de forma relevante não poderá ser punida pelo Direito Penal, não havendo consequentemente crime. O aspecto material, portanto, está atrelado à relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
Por isso defende-se que a tipicidade material pode ser afastada pelo princípio da insignificância, sob a égide do princípio da lesividade, no qual quando a lesão ao bem jurídico for insignificante, ou seja, não relevante, a conduta não deve ser punida como crime, não havendo a consubstanciação da tipicidade material.
De acordo com o doutrinador Francisco de Assis Toledo, segundo o princípio da insignificância, o direito penal com sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não devendo se ocupar de bagatelas [3].
Outro vetor que pode vir a afastar a tipicidade material e que denota seu conteúdo é o princípio da adequação social, desenvolvida por Hanz Welzel, para retirar do tipo as condutas que jamais deveriam ter sido abarcadas pela tutela do Direito Penal pelo legislador.
Ocorre que o direito penal só deve se preocupar com condutas que tenham relevância social, já que o seu objetivo é tutelar os bens jurídicos em prol a vida pacífica e regrada em sociedade. Nesse diapasão, existem certas condutas ou comportamentos que são aceitos socialmente, ou seja, são dotados de “adequação social”.
Como consequência disso, essas condutas não podem ser consideradas como criminosas e puníveis, não havendo que se falar em tipicidade.
O conceito de socialmente adequado varia de sociedade para sociedade, não havendo por parte de Hanz Welzel, seu criador, uma determinação sobre qual elemento do tipo que é excluído nessas situações. Por este motivo, deve ser entendido e aplicado apenas genericamente como princípio de interpretação.
Deve ser considerado após seu desenvolvimento não como uma excludente da tipicidade ou ilicitude, mas sim como princípio de interpretação, que afasta certas condutas do âmbito do Direito Penal.
Entretanto, as tipicidades formais e materiais puramente não vêm sendo consideradas suficientes para o aprofundamento ideal do estudo do tipo.
Os doutrinadores mais modernos têm criado novas teorias, que incluem outros elementos, no ímpeto de desenvolver ainda mais o conceito de crime e tornar o sistema penal brasileiro de aplicação da pena mais coeso.
Fato é que os conceitos apresentados neste capítulo não serão abandonados pelas teorias vanguardistas, mas tão somente complementados, portanto, o estudo realizado basilarmente nos leva a uma melhor compreensão do que o tipo penal moderno objetiva e até onde ele pode chegar.
Portanto, as teorias a seguir abordadas são mais complexas e aprofundadas diante da mudança da sociedade ocorrida durante todos os anos que separam os dias atuais com os dias em que os conceitos de tipicidade antigos foram consolidados.
2.A TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE
Eugênio Raúl Zaffaroni[4], em seu manual de direito penal, parte geral, criou uma nova modalidade de tipicidade chamada de conglobante. Tal nomenclatura foi utilizada, porque engloba outros conceitos que não apenas os típicos, normalmente adotados, analisando, assim, outros aspectos além daqueles previstos no tipo penal.
De acordo com Zaffaroni[5], as normas jurídicas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras e não podem ignorar-se mutuamente.
A tipicidade conglobante se aliaria à tipicidade formal, formando a tipicidade penal, formando assim, um critério complexo a ser analisado acerca da conduta do indivíduo.
Primeiramente cabe ressaltar as noções principais adotadas por Zaffaroni para a formação da tipicidade conglobante, que são: a lesividade agregada à possibilidade de imputação do resultado ao agente.
O primeiro elemento trazido pelo doutrinador, a chamada lesividade, se faz presente quando a conduta do indivíduo atinge de forma efetiva o bem jurídico penalmente tutelado. Então, pode-se concluir que para formar a tipicidade conglobante é necessária a lesividade na conduta do agente.
Consequentemente, existem hipóteses em que não haveria essa lesividade, gerando com isso a chamada atipicidade conglobante, que faria com que a conduta não pudesse ser punida pelo Estado, pois faltando a lesividade, faltaria a tipicidade conglobante, que faz parte subsequentemente da tipicidade penal e do fato típico.
Segundo o doutrinador Julio Fabbrini Mirabete[6], a atipicidade é a ausência de tipicidade, e tomando tal assertiva como base, pode-se afirmar que com a ausência de tipicidade conglobante, ocorrerá o fenômeno da atipicidade conglobante.
Tais hipóteses abarcariam, portanto, a insignificância ou bagatela, a imposição de um comportamento pelo Estado, o fomento de um comportamento pelo Estado e por fim o acordo do titular do direito, devendo cada hipótese ser analisada separadamente.
No que tange à insignificância, o Estado, no momento de tipificar as condutas, levou em consideração os bens jurídicos mais preciosos para a sociedade e seus indivíduos.
Todavia, a lesão a esse bem jurídico deve ser relevante o suficiente para gerar uma punição pelo direito penal, que por ser muito gravoso é a última ratio para a solução de um conflito.
Seguindo tais premissas, cabe exemplificar o que seria uma conduta insignificante ao ordenamento jurídico: um namorado que pega uma bala na bolsa da namorada. Se essa conduta fosse observada apenas pelo viés da tipicidade formal, esse namorado estaria praticando um furto, todavia, a aplicação de uma pena no caso concreto não seria razoável.
O princípio da insignificância deve ser suscitado nas hipóteses jurídicas mais leves, sendo reconhecida a atipicidade do fato, no caso concreto.
Outra hipótese que gera atipicidade conglobante acontece quando o Estado impõe ou fomenta a conduta do agente. Inclusive, é por causa dessa hipótese que a teoria da tipicidade conglobante é tão discutida pelos estudiosos do direito, já que gera muitas controvérsias.
Eugênio Raúl Zaffaroni traz então a figura da antinormatividade, que seria toda conduta contrária às normas e as suas determinações. As condutas que são fomentadas, determinadas pelas normas, pela lógica, não são consideradas antinormativas.
Tomando como base esse raciocínio, se um indivíduo atua em estrito cumprimento de seu dever legal, dever este imposto pela própria lei, ela fomentou, determinou que o indivíduo agisse de acordo com aquela norma, a conduta esse individuo não pode ser considerada antinormativa, muito pelo contrário, pode e deve ser considerada normativa.
Quando o Estado impõe ou fomenta uma conduta, para ele essa conduta não gera lesividade, não teria assim, uma tipicidade conglobante. Essa conduta não atinge efetivamente o bem jurídico porque o próprio Estado determinou aquele comportamento.
No caso do oficial de justiça, por exemplo, ao adentrar na casa de uma pessoa, para cumprir o mandado que tem em mãos, sua conduta se adéqua formalmente ao tipo penal descrito no artigo 150 do Código Penal, a saber, violação de domicílio. Todavia, como pode a conduta do oficial de justiça ser considerada um crime, se foi o próprio Estado que determinou que ele entrasse na casa do indivíduo, sob pena de sanção?
A hipótese, portanto, tenta compreender e interpretar o confronto entre uma conduta que é proibida pelo Estado, e ao mesmo tempo exigida por ele, formando uma evidente incoerência no sistema.
Para corrigir essa incoerência criada no sistema penal pelo próprio legislador, propõe-se a possibilidade de excluir do âmbito do tipo aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas, reduzindo assim, a dimensão daquilo que a norma proíbe. Ou seja, a proposição seria retirar do rol de excludente de ilicitude, as figuras do inciso III do artigo 23 do Código Penal, deixando de fora da tipicidade penal àquelas condutas que somente são alcançadas pela tipicidade formal, mas que a ordem normativa não quer proibir, precisamente porque as ordena ou as fomenta.
Sendo assim, diante do referido acima, as condutas consideradas como estrito cumprimento de dever legal e alguns casos de exercício regular do direito deixariam de ser consideradas como causas excludentes de ilicitude, passando a integrar o fato típico, possuindo a natureza jurídica de excludente de tipicidade conglobante.
A última hipótese, ainda inserida no requisito lesividade, é o acordo do titular do direito, ou seja, o acordo do ofendido. Tal forma de aquiescência, no entanto, tem certos requisitos como: a capacidade de fato, do indivíduo, ou seja, para consentir que o bem seja lesado, é necessário ter 18 (dezoito) anos.
Além disso, é necessária a manifestação de vontade livre e desimpedida, livre de qualquer coação, o consentimento, anterior ou concomitante ao atuar do agente, e como último requisito a disponibilidade do bem jurídico a ser lesado, pois existem bens que são indisponíveis, como a vida ou a integridade física quando a lesão a ser causada é grave ou gravíssima. Como exemplo, tem-se a conduta do tatuador, que se adéqua perfeitamente ao tipo penal previsto no artigo 129, caput, do Código Penal, já que ao tatuar um indivíduo gera uma lesão corporal, ferindo um bem jurídico penalmente tutelado, a saber, integridade física.
Entretanto, a tatuagem e até o piercing podem ser considerados lesões corporais de natureza leve, e por isso a integridade física do indivíduo se torna um bem jurídico tutelado disponível, sendo as lesões causadas consideradas insignificantes, se presente o consentimento do ofendido.
Sendo assim, essa seria outra hipótese de excludente da tipicidade conglobante, e, por conseguinte, essa conduta não poderia ser punida pelo Estado, já que há ausência de lesividade, não havendo conduta que afete efetivamente o bem jurídico se o ofendido consente a conduta.
Contudo, a hipótese ainda é excludente de antijuridicidade e não de tipicidade.
Após a lesividade, primeiro requisito da tipicidade conglobante, cabe neste momento o estudo do segundo requisito para a formação dessa tipicidade, a saber: a possibilidade de imputação do resultado ao agente.
Para imputar um resultado ao agente é necessário que o autor tenha dominabilidade em relação à ocorrência do resultado, ou seja, a ocorrência do resultado não pode estar adstrita ao acaso.
Como exemplo, para melhor explicitar a teoria, A deseja matar B e leva B para uma floresta com chuva para que um raio caia na cabeça de B. Nesse caso o autor não tem dominabilidade do resultado, então caso B venha a morrer, A não pode responder por homicídio.
O mesmo se aplica ao partícipe, a quem não pode ser imputada uma conduta se houver apenas um suporte banal por ele praticado. Seu suporte deve ter relevância causal para que possa ser punido.
Como exemplo, o partícipe que cede sua arma para o autor matar a vítima, só que o autor usa um veneno e não a arma para realizar o homicídio. Quem emprestou a arma não pode responder por auxílio por aporte banal, pois a arma emprestada não foi utilizada para o resultado.
Nesses exemplos, em relação ao autor e ao partícipe, suas condutas não podem ser punidas, sendo verdadeiras causas excludentes de tipicidade conglobante.
Portanto, para a tipicidade conglobante ser concretizada deve ser feito um juízo de valor, observando se o Estado está fomentando a conduta, observando a objetividade jurídica, se aquela conduta realmente lesou o bem jurídico penalmente tutelado.
Somente assim pode ser reconhecida a tipicidade conglobante, que aliada com a tipicidade formal, e os outros requisitos citados no começo da exposição do tema, torna a conduta um verdadeiro fato típico.
Além de aprimorar e enriquecer a aplicação do direito penal, em sua parte geral, a adoção da teoria causaria efeitos drásticos de relevância social.
Pode-se afirmar que os fatos atípicos são considerados indiferentes penais. E, por isso, esses mesmos fatos, depois de verificadas as informações, constatar-se se, realmente, a conduta pode ser classificada como ilícito penal, ou não, sem a necessidade de instauração de inquérito policial. Enquanto que os considerados típicos são investigados através de inquérito pela autoridade policial e existindo lastro probatório mínimo, será oferecida denúncia ou queixa, que se recebidas ensejarão um processo criminal.
Portanto, se o fato for atípico, a autoridade policial não instaurará sequer inquérito policial, e mesmo se o fizer, e o parquet oferecer denúncia, o juiz deverá rejeitar a petição inicial com fulcro no artigo 395 do Código de Processo Penal.
3.A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA
A teoria da imputação objetiva foi criada pelo doutrinador alemão Claus Roxin, dentro de uma noção de funcionalismo moderado, adotando o princípio do risco como pressuposto.
O direito penal tem a finalidade de proteção subsidiária de bens jurídicos, tendo em vista o princípio da subsidiariedade e fragmentariedade ou ultima ratio, diante da gravidade da aplicação do direito penal para solucionar os conflitos da sociedade.
Para o finalismo, atualmente adotado pelo sistema penal brasileiro, prioristicamente, a conduta é objetivamente típica se o agente produz o resultado e há relação de causalidade, suficiente para gerar a tipicidade objetiva da conduta.
Com o funcionalismo continua-se usando a relação de causalidade como primeira etapa, entretanto, para resolver se o sujeito vai responder pelo resultado penalmente, deve-se em uma segunda etapa, agregar valorações, usando princípios jurídicos da imputação.
Um exemplo clássico utilizado para contextualizar a teoria da imputação é quando A quer matar o seu tio, para receber a sua herança. Com isso, ele compra, para ele, uma passagem de avião, torcendo que o avião caia. Ocorre que o avião efetivamente cai e o tio de A morre. No caso, A agiu, existindo um resultado e uma relação de causalidade física entre a ação e o resultado, já que, se A não tivesse comprado a passagem, seu tio não teria morrido. Indo além, A agiu com dolo. No entanto, não faz sentido esta responsabilidade penal pelo resultado.
Ou seja, os dados da realidade não podem oferecer sozinhos, soluções justas para problemas jurídicos, devendo-se agregar valorações. Com isso, o funcionalismo defende que, além da relação de causalidade física, devem-se agregar outros princípios jurídicos para saber se determinada pessoa irá responder por um crime consumado ou não. São as ideias da criação de um risco juridicamente desaprovado e da materialização do risco no resultado, estando no âmbito de proteção da norma.
Com isso, percebe-se que o sujeito que comprou a passagem não irá responder penalmente, já que terceiro não enxerga em sua conduta a criação de um risco relevante ou desaprovado para o bem jurídico. Ou seja, esta causa será irrelevante para o Direito Penal.
A teoria da imputação, portanto, é um exemplo de concretude do sistema funcionalista, partindo-se de dados da natureza, mas se concluindo que a natureza sozinha não oferece soluções para os problemas do Direito Penal. As valorações utilizadas pelo funcionalismo não são aleatórias, mas que tomam por base as ideias da missão do Direito Penal de proteger bens jurídicos mais relevantes e da finalidade preventiva da pena.
O artigo 13 do Código Penal prevê a teoria da conditio sine qua non, que considera que um antecedente é causa quando contribui para o resultado, ainda que de forma pequena. Por isso, essa teoria chama-se de teoria da equivalência dos antecedentes: todos os antecedentes que contribuem para o resultado são igualmente causas. Se contentando, contudo, com essa mera causalidade física o sujeito sempre seria responsabilizado.
Dessa forma, a teoria da imputação objetiva procura superar a mera relação de causalidade física possibilitando em certos casos a não atribuição do resultado ao agente. Ainda há, no entanto, resistência na aplicação da teoria com o argumento de que a teoria da conditio sine qua non é suficiente para resolver todos os problemas de causalidade[7].
O artigo 13 §1º CP receberia criticas no que tange à mistura dos planos da causalidade e imputação, e por não oferecer critério seguro sobre imputação, na medida em que não se esclareceu o contexto quando uma causa seria adequada ou não.
Assim, a responsabilidade penal pelo resultado deve seguir as etapas de causalidade física (artigo 13, caput) e imputação, que utiliza um raciocínio jurídico (artigo 13, § 1º, e teoria da imputação objetiva).
A imputação reduz o leque de condutas para as quais o resultado pode ser imputado, restringe a causalidade, para descobrir se o resultado pode ser penalmente imputado ao agente responsável pelo antecedente que está sendo estudado[8].
Atualmente, com o funcionalismo, insere-se, em todos os tipos penais, elementos valorativos, quais sejam, a criação de um risco juridicamente desaprovado e a materialização do risco no resultado.
Se uma determinada conduta, embora seja causa física de um resultado, sequer cria um risco para a ocorrência desse resultado, essa conduta vai ser atípica. Se, por outro lado, a sua conduta cria um risco, ela é típica, mas, se não é este risco que se materializa no resultado, você não vai responder pelo resultado. Então, na primeira etapa, estuda-se a tipicidade da conduta, enquanto, na segunda, estuda-se, propriamente, a responsabilidade pelo resultado.
Para a imputação objetiva o tipo penal é composto pelo tipo objetivo pela conduta, resultado, nexo causal, imputação objetiva e tipo subjetivo.
A primeira etapa de estudo da imputação objetiva é a criação de um risco juridicamente desaprovado, que consiste naquelas condutas que sequer são perigosas para um bem jurídico. Quando a conduta sequer cria um risco para o bem jurídico, mesmo que seja causa típica para o resultado, ela é atípica[9].
A teoria da imputação objetiva acredita que o Direito Penal só deve se ocupar de ações que sejam perigosas para bens jurídicos, de acordo com o princípio da lesividade.
Para aferir se uma conduta põe em risco o bem jurídico, finge-se que existe uma pessoa acompanhando-a, chamado também de observador hipotético. Se ele enxergar um risco para o bem jurídico com aquela conduta, ela cria um risco desaprovado. Se, por outro lado, esta pessoa não enxergar risco algum, não há a criação de um risco desaprovado e a conduta é atípica.
Esse observador prudente faz uma análise da criação do risco chamada de ex ante. Ou seja, deve-se avaliar se a conduta é perigosa enquanto ela é realizada, antes de o resultado se produzir, até porque, depois de o resultado se produzir, todos dirão que a conduta é perigosa.
Além disso, o observador prudente vai ter acesso a alguns conhecimentos especiais que o autor eventualmente possua, como no exemplo do avião, saber que um terrorista colocou uma bomba, informação a que A tinha acesso. Este conhecimento especial do agente deve ser considerado na avaliação de criação de risco feita pelo observador prudente. Com isso, quando o observador prudente vê o sujeito comprando uma passagem em um avião em que tem uma bomba dentro, será enxergada a criação de um risco.
Uma vez que se crie ou incremente um risco, a conduta do agente é típica, mas ainda não se sabe se existe a responsabilidade pelo resultado. Então, nesta primeira etapa, em se tratando de homicídio doloso, por exemplo, já há, ao menos, tentativa.
Levando-se em conta a regra geral apresentada acima e sofisticando o raciocínio, pode-se dizer que há hipóteses em que não há a criação ou incrementação de um risco e, portanto, a conduta é atípica:
A primeira hipótese é a de diminuição do risco. O sujeito pode, com a sua conduta, ao invés de criar um risco, diminuir um risco já existente. Neste caso, por óbvio, não há imputação, porque ele não só não criou um risco, como diminuiu um risco já existente[10].
Imaginando que uma pedra imensa esteja caindo na cabeça de A. Se B empurrar esta pedra e, ao invés de cair na cabeça de A, cai no seu pé, que perde o dedo. B deu causa física a este resultado? Sim. Se B não tivesse interferido, A não teria perdido o dedo. Porém, estudando imputação, verifica-se que B atuou naquela linha de risco e diminuiu o risco daquela linha de risco. Neste caso, é óbvio que B não vai responder.
Para que haja diminuição de um risco, é imprescindível que se atue na mesma linha de risco, não podendo criar um novo risco.
A segunda hipótese é do risco permitido. Nas sociedades modernas há atividades arriscadas, mas que são permitidas, porque são importantes para a vida social. Ou seja, dirigir automóvel, por exemplo, sempre envolve um percentual de risco. No entanto, este percentual de risco é pequeno em relação à utilidade social daquela atividade. Então, todas essas atividades, como intervenções médicas e trânsito, têm, dentro delas, um percentual pequeno de risco, porque se irá obedecer a uma série de regras de cuidados. Se isso tudo é feito e gera algum problema, este problema está dentro do risco permitido, sendo a conduta do sujeito atípica. Então, o risco permitido é o risco inerente a algumas atividades que são realizadas na sociedade e que são permitidas. Se o resultado decorre deste risco permitido, a conduta é atípica.
Outra hipótese é a não criação de um risco desaprovado. O observador prudente acompanha a conduta enquanto ela é realizada e não enxerga risco nenhum. Além disso, aqui, também se inclui uma criação de risco muito pequena ou insignificante, gerando atipicidade.
A segunda etapa de estudo da imputação objetiva é a materialização do risco no resultado, tendo resposta positiva na primeira etapa, ou seja, que o sujeito criou o risco para o bem jurídico. Só agora, na segunda etapa, é que se descobre se há crime consumado ou se o resultado é fruto de outra linha de risco, hipótese em que o sujeito responde por tentativa.
O raciocínio principal é o nexo de risco ou fim de proteção da norma. Aqui, estudam-se os chamados cursos causais extraordinários, a ideia de previsibilidade e as hipóteses do art. 13, § 1º. Quando realiza uma conduta arriscada, esta conduta será proibida, pois você terá criado um risco desaprovado ou proibido, sendo a conduta típica. Se, porém, você cria um risco permitido, a sua conduta é atípica.
Quando dirige em excesso de velocidade, cria um risco desaprovado ou proibido. Com isso, deve-se, aqui, perceber que, quando o legislador proíbe dirigir em excesso de velocidade, ele quer evitar uma classe de resultados, qual seja, todos os danos que possam decorrer de um descontrole do automóvel. Então, o trabalho é identificar quando o legislador proíbe uma conduta arriscada, qual é a classe de resultados que ele pretende evitar.
Por exemplo, um sujeito vinha em excesso de velocidade que freia bruscamente, momento em que uma velhinha, que atravessava a rua, se assustou, sofreu um ataque no coração e morreu. Existe causalidade física, mas, quando o legislador proíbe o excesso de velocidade, não está dentro da classe de resultados previsíveis um ataque cardíaco por susto decorrente da freada. Neste caso, faltando nexo de risco, não há possibilidade de imputação.
Se o legislador vai proibir uma conduta, deve-se saber o porquê de ele estar proibindo, identificando a gama de resultados normalmente associados a esta conduta perigosa, o que traduz, aqui, a ideia de previsibilidade.
Traduz-se pelo princípio do exclusivo fim de proteção da norma consiste em o resultado ocorrido, deve ser exatamente aquele que a norma de cuidado pretendia evitar, senão não poderá ser imputado.
Ainda nesta etapa, estuda-se o comportamento alternativo conforme o Direito, que nada mais é do que comportamento correto. Imaginando que haja violação de uma regra de cuidado, criando um risco e o resultado se produza, no entanto, neste caso, existe uma peculiaridade, no sentido de que, mesmo que o sujeito tivesse obedecido à regra de cuidado, o resultado não teria sido evitado. Nestas hipóteses, em que o comportamento correto não teria evitado o resultado, não há a imputação do resultado, só respondendo o sujeito pela tentativa, em se tratando de crime doloso, ou pelo crime de perigo, em se tratando de crime culposo.
Existem muitas atividades arriscadas que são permitidas. Então, há um nível de risco chamado de risco permitido. Em princípio, se você aumenta este risco permitido, você cria um risco desaprovado.
Ou seja, é necessária a criação de um risco juridicamente relevante para que o agente responda pelo crime. Se a conduta dele não é capaz de criar um risco juridicamente relevante, o resultado por ele pretendido não depender exclusivamente de sua vontade, será atípico.
Para a teoria da imputação objetiva, aplica-se o princípio do alcance do tipo penal, em que só poderá imputar a conduta ao agente se a consequência for relacionada diretamente ao risco realizado. Nos casos de auto colocação da vítima em risco bem como no caso de responsabilidade de terceiros, o resultado é produto da atuação da vítima ou terceiro, não sendo mais atribuído ao agente[11].
A aplicação prática dessa teoria gera efeitos de exclusão da responsabilidade. Isso porque, em um exemplo clássico em que A empurra contra a parede B, idosa, para ambos não serem pisoteados pelas pessoas, gerando lesões, poderia falar em inexigibilidade de conduta diversa, gerando ausência de culpabilidade, último estrato da teoria do crime. A teoria da imputação objetiva é causa excludente da própria tipicidade, sendo excluída sua responsabilidade já no primeiro estrato. Sendo assim, aplicada a teoria, nem fato típico haveria, gerando trancamento da ação penal ou inquérito, sendo mais benéfico para o agente.
De acordo com o Projeto do Novo Código Penal (PLS 236/2011) a teoria da imputação objetiva será adotada no parágrafo único do novel artigo 14[12]:
Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza lesão ou risco de lesão a determinado bem jurídico.
Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou aumento de risco juridicamente relevante. (grifo nosso).
CONCLUSÃO
De acordo com a teoria da tipicidade conglobante, em resumo, deve-se analisar o ordenamento jurídico como um todo, a fim de não imputar ao agente, condutas que ao mesmo tempo sejam proibidas e fomentadas pelo Estado, gerando um estado de incoerência no sistema. Ela propõe a realocação do estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito, como excludentes de tipicidade e não de ilicitude, para que sejam observadas no primeiro estrato da teoria do crime. Assim, como consequência, geraria a atipicidade da conduta já analisada em sede pré-processual, evitando que a ação penal seja ajuizada e prejudique o indivíduo que agiu em conformidade com o direito.
A teoria da imputação objetiva, por sua vez, realiza a análise pormenorizada de valoração do tipo objetivo antes mesmo da análise dos elementos subjetivos do tipo, e sua ausência gera atipicidade do fato. Leva-se em consideração que o agente diante do tipo objetivo previsto no Código Penal, só será imputado pelo crime, se criar ou incrementar risco juridicamente relevante e materializando esse risco no resultado[13].
Sendo assim, os doutrinadores mais modernos têm criado essas novas teorias, pensando em diversas possibilidades e exemplos costumeiros com o objetivo de desenvolver e sofisticar o conceito de crime, para além de gerar um ordenamento jurídico mais coeso, se buscar uma justiça penal mais verdadeira.
As duas teorias geram consequências em âmbito pré-processual, em sede de inquérito, no qual o delegado de polícia e eventualmente o parquet que esteja atuando nas investigações possa fazer o juízo de valor sobre a atipicidade antes mesmo do oferecimento da denúncia.
O estudo, portanto, tem como aspecto relevante a ideia basilar de que o Direito Penal deve ser o último ramo do direito a solucionar os conflitos existentes na sociedade, diante da gravidade da sua aplicação e das consequências geradas na vida do indivíduo que responde por um processo criminal no Brasil.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
Projeto do novo Código Penal 236/2011. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2013/12/leia-a-integra-do-relatorio-final-sobre-a-reforma-do-codigo-penal p. 313 >. Acesso em: 01/10/2014.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Trad. de Luís Greco. Revista brasileira de Ciências Criminais, vol. 10, fascículo 38, São Paulo, 2002.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 305.
[2] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.147.
[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 131.
[4] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 457.
[5] Ibid., p. 458.
[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 11 ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 103.
[7] BITENCOURT, op. cit., p. 297.
[8] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 222/223
[9]ROXIN, Claus. A Teoria da Imputação Objetiva. Trad. de Luís Greco. Revista brasileira de Ciências Criminais, vol. 10, fascículo 38, São Paulo, 2002, p.12.
[10] ROXIN, op. cit. p.17.
[11] ROXIN, op. cit. p.16.
[12]Projeto do novo Código Penal 236/2011. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2013/12/leia-a-integra-do-relatorio-final-sobre-a-reforma-do-codigo-penal pagina 313>. Acesso em: 01/10/2014.
[13] ROXIN, op. cit. p.11.
Advogada. Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito Candido Mendes .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TAVARES, NATHALIA ESCANSETTI. A Tipicidade Penal Moderna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 abr 2020, 05:02. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54393/a-tipicidade-penal-moderna. Acesso em: 23 dez 2024.
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