1. Introdução
Não é raro encontrar quem atribua à Emenda Constitucional nº 103/2019 (Reforma da Previdência) uma série de inconstitucionalidades formais e materiais. Já há em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal (STF), aliás, diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 6.254, nº 6.255, nº 6.256, nº 6.258 e nº 6.271 que serão relatadas pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Ações essas meramente exemplificativas da polêmica hodierna.
As supracitadas ADIs foram ajuizadas pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP).
Em que pese as relevantes discussões jurídicas e sociais tratadas nas referidas ações constitucionais, é preciso pontuar que nem todas as manifestações contidas na polêmica Emenda Constitucional nº 103/2019 se traduziram em retrocesso aos direitos dos cidadãos. E é este ponto que se pretende lançar luzes para uma maior reflexão.
2. O modelo biopsicossocial no ordenamento jurídico brasileiro
Volvendo-se os olhos para o texto constitucional reformador, tem-se a seguinte redação:
Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
(...)
§ 4º-A. Poderão ser estabelecidos por lei complementar do respectivo ente federativo idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores com deficiência, previamente submetidos a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
§ 1º É vedada a adoção de requisitos ou critérios diferenciados para concessão de benefícios, ressalvada, nos termos de lei complementar, a possibilidade de previsão de idade e tempo de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria exclusivamente em favor dos segurados: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
I - com deficiência, previamente submetidos a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Nessa ordem de ideias, houve a inclusão do §4º-A ao artigo 40 e do inciso I ao §1º do artigo 201, os quais consolidaram o denominado modelo biopsicossocial de avaliação da pessoa com deficiência. Essa expressão “biopsicossocial”, inclusive, jamais constou no texto originário ou reformador da Carta Política de 1988, tratando-se de novel vocabulário.
Longe de traduzir mero capricho do legislador reformador, a palavra em destaque deve possuir força e sentido. Vem do direito romano o aforismo de que “não se presumem na lei palavras inúteis” (verba cum effectu sunt accipienda). A respeito MAXIMILIANO já alertava (2017, pág. 236):
Bem avisados, os norte-americanos formulam a regra de Hermenêutica nestes termos: ‘deve-se atribuir, quando for possível, algum efeito a toda palavra, cláusula, ou sentença’. Não se presume a existência de expressões supérfluas; em regra, supõe-se que leis e contratos foram redigidos com atenção e esmero; de sorte que traduzam o objetivo dos seus autores.
A par disso, teria sido em vão a inclusão expressa da avaliação biopsicossocial no texto reformador? Evidentemente que não. Isto remonta a uma crescente superação da antiga perspectiva meramente biológica da avaliação da pessoa com deficiência, acrescentando-se o fator psicossocial.
Em que pese não seja este o intuito central do presente artigo, é de bom alvitre mencionar que tradicionalmente no Brasil a deficiência era atestada mediante a utilização de um modelo hermeticamente fechado, traduzido na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida como Classificação Internacional de Doenças – CID 10). Esta é publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde no mundo.
Ocorre que a legislação brasileira, durante muito tempo, adotou a CID-10 como única via de avaliação e caracterização de uma pessoa com deficiência. A exemplo disso, a Lei Federal nº 7.853/1989 dispôs sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa com Deficiência, sendo regulamentada pelo Decreto Federal nº 3.298/1999. E esta última norma federal trouxe em seu artigo 4º uma lista de situações biológicas que caracterizariam a deficiência física, auditiva, visual, mental e múltipla nos seres humanos, omitindo-se no fator psicossocial.
O modelo de numerus clausus do artigo 4º do Decreto Federal nº 3.298/1999 – derivado do latim e, em uma tradução literal, significando números fechados – mostrou-se insuficiente e ultrapassado. Tanto é que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula nº 377 em 2009 e a Advocacia-Geral da União (AGU) a Súmula nº 45, ambas no sentido da superação do rol taxativo de deficiências previsto na norma federal supramencionada. No caso se verificou uma injustiça técnica e jurídica com relação às pessoas que possuíam visão em apenas um dos olhos (visão monocular) as quais, apesar da cegueira parcial, não estariam contempladas na norma. No STF, cita-se o Recurso em Mandado de Segurança (RMS) nº 26.071/DF que, desde 2007, já afastava o rol taxativo.
Essa mudança de perspectiva se intensificou em 2007 não por acaso. É que naquele ano o Brasil assinou a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, em Nova York. Um ano depois, em 2008, o Congresso Nacional aprovou a Convenção, por meio do Decreto Legislativo nº 186, conforme o procedimento do § 3º do artigo 5º da Constituição da República. E, em 2009, mediante o Decreto Federal nº 6.949/2009, houve a promulgação de seu texto com status jurídico de norma constitucional, sendo o primeiro tratado equivalente à Emenda Constitucional desde a Carta Política de 1988.
Já nos considerandos do tratado em questão é possível identificar que o modelo de rol taxativo foi completamente aniquilado, ao afirmar que os Estados Partes da Convenção reconhecem que a deficiência é um conceito em evolução e que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. E, ainda em seu artigo 1º, que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Lado outro, o sistema jurídico brasileiro abandonou a CID-10 para, a partir do texto da Convenção, adotar a Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), também da OMS, que permite, em linhas gerais, uma avaliação biopsicossocial da pessoa com deficiência.
3. Conclusão
Frente ao exposto, é de se afirmar que a Emenda Constitucional nº 103/2019 (Reforma da Previdência), apesar das críticas contundentes e robustas que lhe são imputadas através de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade, também confirmou significativo avanço aos direitos das pessoas com deficiência ao consolidar o modelo de avaliação biopsicossocial.
4. Referências bibliográficas
OMS. Organização Mundial de Saúde. CID 10. Disponível em: https://www.medicinanet.com.br/cid10.htm. Acesso em: 14 abr. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3298.htm>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/CONGRESSO/DLG/DLG-186-2008.htm>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Decreto Federal nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Supremo Tribunal Federal. Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 6.254, nº 6.255, nº 6.256, nº 6.258 e nº 6.271. Distrito Federal. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, 14 de abril de 2020. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Supremo Tribunal Federal. RMS 26.071/DF. Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Brito. Brasília, 31 de janeiro de 2008. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 377. Distrito Federal. Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima. Brasília, 22 de abril de 2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2020.
_____. Advocacia Geral da União. Súmula nº 45. Distrito Federal. Brasília, 28 de janeiro de 2015. Disponível em: <http://www.lex.com.br/legis_26416626_SUMULA_N_45_DE_14_DE_SETEMBRO_DE_2009.aspx>. Acesso em: 14 abr. 2020.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21ª ed Rio de Janeiro: Forense, 2017, 366.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. A Emenda Constitucional nº 103/2019 (reforma da previdência) e a consolidação do modelo biopsicossocial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2020, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54407/a-emenda-constitucional-n-103-2019-reforma-da-previdncia-e-a-consolidao-do-modelo-biopsicossocial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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