Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as relações historicamente estabelecidas entre o processo penal e a tortura. Com esse enfoque, demonstra que a busca pela “verdade real e absoluta”, no âmbito do processo penal, gera riscos a diversos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Processo Penal, Tortura, Verdade Processual, Verdade Real, Direitos Fundamentais.
Abstract: This study aims to analyze the historically established relationship between criminal procedures and torture. With this approach, demonstrates that the pursuit for "real and absolute truth" in criminal procedures creates risks to several fundamental rights.
Keywords: Criminal Procedure, Torture, Procedural Truth, Real Truth, Fundamental Rights.
Sumário: Introdução. 1. Antecedentes. 2. Do processo por inquérito (sistema inquisitório). 3. O uso da tortura como método de obtenção da verdade. 4. Declínio do modelo jurídico inquisitorial. 5. Do sistema acusatório (modelo teórico). 6. Desconstruindo o mito da verdade real. 7. A verdade segundo o garantismo de Ferrajoli. 8. A verdade segundo a doutrina brasileira. 9. Desconstruindo a validade da tortura como meio de prova. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Não é possível precisar historicamente a época em que a tortura começou a ser utilizada como método de obtenção da “verdade”. No entanto, é de se ressaltar que o período compreendido entre os séculos XIII e XVI, no contexto da Europa continental, é de especial relevância para o presente estudo, uma vez que representa o surgimento e a consolidação de um processo por inquérito que se utilizou da tortura como meio de produção de prova, tendo a verdade real como um de seus pilares dogmáticos.
Nesse contexto, a análise histórica torna possível revisitar os principais argumentos utilizados para justificar e legitimar o uso da tortura para além de uma simples manifestação do poder estatal (e do clero).
1. Antecedentes
Na Europa continental, até o século XII, predominava o processo penal acusatório. Nesse sistema, a ação penal era sempre iniciada por uma pessoa privada (o próprio prejudicado ou seu representante), responsável pela acusação e pela instrução probatória. Caso o acusador comprovasse inequivocamente a culpa do acusado, ou este a admitisse, a decisão do juiz recairia no sentido de punir o culpado. Entretanto, se houvesse dúvidas, a determinação da culpa ou da inocência do indivíduo fazia-se de modo irracional, colocando a resolução do processo criminal nas mãos de Deus. (NASPOLINI, 2006, p. 192).
Uma das formas mais utilizadas para esse fim era o ordálio, teste utilizado para a verificação da inocência do acusado:
Os exemplos de prática do ordálio são variados: entre outros, o acusado mergulhava o braço em água fervente ou então carregava ferro em brasa, sendo que, após um certo número de dias, caso fosse inocente, deveria demonstrar a ferida milagrosamente curada por obra de Deus; ou então era mergulhado num rio e seria considerado inocente caso afundasse (pois, neste caso, Deus tê-lo-ia acolhido). (NASPOLINI, 2006, p. 193).
Além dessa espécie de prova, havia diversas formas de dar solução à discórdia: por meio dos embates corporais (prova de força), das provas sociais (quantas testemunhas a parte era capaz de reunir a seu favor), provas verbais (correta utilização das fórmulas verbais), entre outras. O direito não era norteado, portanto, por um ideal de justiça, mas apenas para regular essas formas de “guerra privada”. Segundo Foucault (2002, p. 59), “esse sistema era uma maneira de provar não a verdade, mas a força, o peso, a importância de quem dizia”.
Diferentemente do que é ensinado por muitos autores, o declínio e o progressivo abandono do sistema acusatório medieval não é fruto de uma política que buscava dar maior eficiência à persecução criminal. Por isso, não foi preciso o sistema acusatório enfraquecer para que o inquisitório surgisse. Pelo contrário – causa e efeito não devem ser confundidos –, é prudente explicar: o crescimento e o amadurecimento do sistema inquisitório, este sim, foi o responsável por sepultar o modelo anteriormente adotado, que se baseava na acusação privada.
Como parte das transformações do poder político daquele período, o crime deixou de ser uma agressão contrária somente à vítima. Passou-se a considerar que o criminoso, no cometimento de seu ato, também atentava contra o Estado e o soberano. Essa nova forma de encarar o delito e (seus sujeitos passivos) veio ao encontro da sistematização de princípios processuais penais, promovida pela escola dos glosadores, pós-glosadores e canonistas, com base no Direito Romano (BARREIROS, 1981).
Nesse mesmo contexto, a Igreja Católica buscava formas mais eficientes perseguir e combater os hereges que, ao plantarem dúvidas em relação às verdades incontestáveis do catolicismo, representavam um risco à hegemonia institucional da Igreja.
Eis por que a Igreja Católica influenciou fortemente na superação do sistema acusatório medieval pelo sistema inquisitório. Prova disso, apenas a título de exemplo, é o fato de que a partir do IV Concílio de Latrão, em 1215, proibiu a participação de seus clérigos em qualquer ordálio. Dessa forma, sem a bênção de um clérigo, a realização desse “juízo de Deus” restava prejudicado.
2. Do processo por inquérito (sistema inquisitório)
Para atuar nos processos por inquérito, surge a partir do século XII, a figura do procurador, o representante do soberano nos processos criminais. A partir daí, o procedimento judiciário (que antes servia apenas para verificar a obediência às formas ritualizadas de resolver conflitos particulares) passou a ser apossada pelo Estado. Afinal, o cometimento de uma infração representava não só um dano à vítima, mas também um dano contra o poder do soberano que, uma vez lesado, fazia jus à reparação, por meio de multas ou confiscações. Esse ponto é crucial para compreender o real “interesse público” que estava por detrás das transformações no sistema processual penal, uma vez que:
Confiscações dos bens que são, para as monarquias nascentes, um dos grandes meios de enriquecer e alargar suas propriedades. As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça, que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscação. Eis o pano de fundo político dessa transformação (FOCAULT, 2002, p.67).
O modelo por inquérito, que já era utilizado pela Igreja na administração de seus bens, também passou a ser adotado pelo Estado, representando um esforço no sentido de se firmar no controle dos procedimentos judiciais e na gestão (e expansão) de seus bens. Dessa forma, o procurador do rei adotou postura semelhante ao do bispo, que ao visitar sua diocese, instaurava a inquisitio para apurar eventual falta cometida naquela comunidade.
Assim, nas palavras de Foucault (2002, p. 78), o inquérito foi:
(...) precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autenticar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir.
Dessa forma, é impossível negar a influência da Igreja Católica na instauração e na consolidação do sistema inquisitório no processo penal estatal. Salo de Carvalho (2006, p. 202) fala em uma “utilização recíproca dos modelos processuais entre a Igreja e Judiciário”, num cenário de imbricamento entre o Estado e a Igreja, no qual o Poder Judiciário vinculava-se aos interesses da elite econômica, intelectual e política da época, representada pela classe eclesiástica.
O acolhimento do processo inquisitório pelo Estado iniciou-se, segundo Boff (1993), quando o Imperador Frederico II lançou editos de perseguição aos hereges em todo o Império, pelo receio de divisões internas. Temendo ambições político-religiosas do imperador, Gregório IX, por meio de Bula Papal, tomou, em 1232, essa tarefa para si, instituindo os inquisidores papais, que passaram a contar com a colaboração da máquina judiciária controlada pelo soberano. A partir daí, estabeleceu-se um capítulo da história marcado por uma intolerância religiosa que fora acolhida pela estrutura estatal.
O imbricamento entre o Estado e a Igreja pode ser refletido, por exemplo, na estreita relação que fora estabelecida entre as ideias de crime e pecado. Nesse sentido, notável é a existência, à época, do crime tipificado como lesa-majestade divina. Em outras palavras, “lesar o soberano e cometer um pecado são duas coisas que (a partir daí) começam a se reunir” (FOUCAULT, 2002, p. 74).
Além disso, certos dogmas da Igreja representavam impedimentos processuais para que esta pudesse realizar suas perseguições de forma plena. Não havia possibilidade de os “representantes de Deus” infligirem danos corporais aos acusados. Como consequência, a estrutura judicial secular deveria assegurar, por exemplo, a própria execução das penas.
Reforçando o argumento, Salo de Carvalho (2006, p. 205) afirma que na França o principal instrumento doutrinário utilizado pela Inquisição foi o Malleus Maleficarum, legitimado pela Bula Papal de Inocêncio VII, em 1484 (sendo aprovado por estudiosos da Universidade de Teologia de Colônia). A integração entre as instituições estatais e clericais resta ainda mais clara quando observamos um trecho do Malleus Maleficarum citado pelo autor:
[a feitiçaria] (...) não há de ser confundida com outras heresias simples, já que é notório não se tratar de crime puro e simples, mas de crime parcialmente eclesiástico e parcialmente civil.
Nos Estados absolutistas em ascensão, passou a compor o rol de culpáveis não só aquele que cometesse um crime comum, mas qualquer indivíduo que colocasse em dúvida o saber oficial (incluso neste a visão da Igreja). Portanto, desde o início da chamada “caça às bruxas”, os tribunais seculares estiveram presentes, seja em colaboração com os tribunais eclesiásticos, seja processando as “bruxas” por conta própria. Mesmo assim, não havia qualquer interesse da Igreja em descriminalizar as condutas heréticas.
Um traço marcante no modelo inquisitorial era a possibilidade de denúncia anônima. Além disso, contrariamente ao sistema acusatório medieval, o processo criminal permanecia secreto e, com isso, nem mesmo o acusado conhecia as acusações que lhe eram imputadas. Não possuía também acesso aos depoimentos das testemunhas, nem às provas colhidas.
Ainda assim, talvez o aspecto que mais chame atenção no sistema inquisitório é a figura do juiz-inquisidor, resumidamente: o responsável em promover a acusação e a produção de provas era o mesmo sujeito responsável pelo julgamento do processo. Ou seja, o juiz abandonara sua posição de árbitro imparcial, permitindo a confusão entre as funções de julgar e acusar. O acusado, por sua vez, perdera a condição de sujeito processual e se converteu em mero objeto de investigação (LOPES JR., 2019, p. 191).
A defesa de um acusado, nessas condições, beirava a impossibilidade. Nessa linha, Radbruch (1999, p. 152) chega a citar um ditado que, segundo ele, é aplicável ao processo inquisitório: “Quem tem um juiz como acusador, precisa de Deus como advogado”.
Destarte, cabia aos juízes – detentores do jus puniendi – o estabelecimento da verdade. No entanto, por meio da confissão, era possível ao próprio acusado assumir o papel de produtor de verdade penal (FOUCAULT, 1991, p. 38). A partir daí, a possibilidade de estabelecimento de uma verdade “real” no processo penal pôs-se como uma miragem, perseguida a todo custo (e, inclusive, tomada como pretexto) pelos juízes, tanto nos tribunais seculares como nos tribunais eclesiásticos. Capturar uma confissão era o objetivo que se punha.
3. O uso da tortura como método de obtenção da verdade
A confissão passou a representar um êxito no alcance da verdade “substancial” em um processo. Figurando como “a rainha das provas”, fazia-se de tudo para que fosse possível alcançar esse elemento probatório (que, inclusive, poderia ser considerada como um indício de arrependimento, abrindo uma possibilidade de reconciliação com Deus). E eis que, em nome da verdade “real/substancial”, novos mecanismos de obtenção de confissões passaram a ser empregados. Dentre eles, destacadamente, a tortura.
Por meio da Bula Papal de Inocêncio IV, em 1252, foi autorizado o uso da tortura pelos inquisidores nos julgamentos de bruxaria e heresia. Os tribunais seculares, por sua vez, aderiram a essa tendência. A facilidade na obtenção de provas – por meio da confissão – naturalmente gerou uma facilidade condenatória, agravada pelo fato de que uma vez obtida a confissão, “não se admitia defensor, já que o papel do advogado era fazer o réu confessar logo e obter o perdão” (LOPES, 2006, p. 111). Os tribunais, com isso, beiravam a infalibilidade: quase 95% dos casos terminavam em condenação.
Com a tortura, a confissão brotava quase espontaneamente dos lábios dos imputados, cujas carnes vinham dilaceradas por rodas dentadas, torquesas, correntes e outros instrumentos de suplício. (ANGELIS, 2003 apud PINTO, 2010, p. 201).
Importante ressaltar que, inicialmente, a autorização para a aplicação da tortura abrangia apenas os casos em que a suspeita estivesse próxima da certeza. Entretanto, cada vez mais, tais limites passaram a ser desrespeitados, mormente nos processos contra as “bruxas”, impulsionando, cada vez mais, a arbitrariedade que passaria a governar a prática da tortura. Em certa altura, o penalista Giulio Claro (1525-1575) afirma “que basta que existam alguns indícios contra um homem, e se pode submetê-lo à tortura; e em matéria de tortura e de indícios, não se podendo prescrever uma certa norma, tudo se entrega ao arbítrio do juiz” (VERRI, 1994 apud PINTO, 2010, p. 202).
A arbitrariedade do magistrado, cumulada com sua implacável busca por confissões, deu margem à existência de excessos, conforme exposto por João Bernardino Gonzaga (1993, p. 33): “a forma e os meios a serem empregados para produzir a dor seriam aqueles que os costumes indicassem, ou que fossem inventados por executores imaginosos. Facilmente, pois, ocorriam excessos".
O sistema de prova do processo inquisitório estava atrelado de modo indissolúvel à prática de tortura. Os meios probatórios de inocência utilizados no modelo acusatório medieval (provas divinas, provas de força, provas sociais, etc.) foram todos substituídos por provas de culpabilidade alcançáveis por meio da confissão. Dessa forma, conforme bem asseverou Radbruch (1999, p. 152), não havia mais ônus do acusado provar sua inocência, mas algo ainda mais assombroso: o ônus do juiz de provar a culpa do sujeito que estava sendo processado.
Portanto, os abusos que poderiam estar relacionados ao juiz-inquisidor e à tortura estariam mais frequentemente relacionados com a omissão na aferição da verdade (não cumprimento de seu ônus), e não com os excessos empregados para esse fim.
Ainda sim, o interrogatório, considerado ato essencial, exigia técnicas especiais. Conforme descreve Aury Lopes Jr. (2019, p. 196), havia cinco tipos progressivos de tortura. O acusado teria, então, o “direito” a ser submetido a apenas a um tipo de tortura por dia. Ao fim de 15 dias, se não confessasse, era liberado. No entanto, a eficiência dos métodos fazia com que dificilmente alguém fosse capaz de resistir aos 15 dias. Mas se resistisse, não sendo nada “legitimamente” provado contra o acusado, este era absolvido, mas permanecia ao alcance da inquisição, caso fossem necessárias novas apurações, a bel-prazer do inquisidor.
À essa altura, infligir os tormentos corporais já possuía diversas justificativas legitimadoras. Além da falaciosa busca pela “verdade real” a todo custo, imprimia-se o discurso de que os flagelos que atingiam o corpo, tinham também a função de purificar a alma e elevar o espírito. Assim, mesmo que um acusado fosse inocente, seu processamento – e sua consequente submissão à tortura – não haveria de ser um mal inadmissível, já que, a tortura teria também certo caráter medicinal (PINTO, 2010, p. 202).
Dessarte, o temor de ser acusado e processado, funcionou como eficiente ferramenta de controle social. A vingança institucional imposta ao réu, como política de terror, era uma afirmação de que o soberano, sempre presente, não se limitava no exercício de seu poder punitivo. A Inquisição funcionou, portanto, como meio de garantir (e afirmar) a estabilidade do Estado e da Igreja, esmagando, com um rolo compressor processual, qualquer “criminoso” ou “herege” que pudesse esboçar resistência à realidade imposta. Para isso, bastava o juiz-inquisidor cumprir devidamente seu papel: produzir a prova de culpabilidade do acusado.
4. Declínio do modelo jurídico inquisitorial
Mesmo com todos os esforços empreendidos em sentido contrário, os saberes científicos avançaram substancialmente ao longo dos séculos. Foram diversas descobertas que passaram a semear dúvidas em relação aos dogmas da Igreja, destacadamente: a constatação de Copérnico de que a Terra não era o centro do universo (por meio da teoria heliocêntrica); as Grandes Navegações que provaram, a uma, a esfericidade da Terra e, a duas, a existência de povos que sequer conheciam a doutrina cristã; a teoria de Spinoza que declarou que o mundo natural é traduzível em cálculos matemáticos, sendo independente da teologia (CARVALHO, 2006, p. 207).
Diante dos choques entre as visões de mundo, havia duas formas de encarar as novas descobertas: o secularismo, em que a própria ciência negava a teologia; e o concordismo, representando uma tentativa de adequar as descobertas científicas aos dogmas da cristandade. Ambas as correntes foram declaradas falsas pela Igreja Católica.
A partir daí, novas fissuras foram surgindo e se expandindo por toda a estrutura dogmática da Inquisição. A verdade imposta pela Igreja (e pelo Estado), antes inquestionável por si só, foi perdendo seu caráter de inquestionabilidade. Pouco a pouco, com o desenvolvimento de novas ideias, a intolerância e o radicalismo perderam suas bases legitimadoras.
O rompimento desse paradigma iniciou-se de forma mais expressiva na França, com a chamada jurisprudência revolucionária. Apesar de essa tendência ter demorado a alcançar o interior do país, os magistrados parisienses inauguraram um movimento de gradual separação entre o Direito e a Religião. Essas mudanças jurisprudenciais foram fruto do amplo avanço científico observado no período, que desautorizava certas práticas até então adotadas. Um claro exemplo é trazido por Salo de Carvalho: um dos “cuidados” com o acusado durante a aplicação dos flagelos era a presença de um médico. A classe médica passou a declarar que, diversos casos que eram tratados como intervenção diabólica, não passavam de enfermidades naturais como a epilepsia, melancolias, simulações histéricas, etc. (CARVALHO, 2006, p. 2010).
Consequentemente, os julgados, sobretudo franceses, iniciaram um movimento jurisprudencial rompendo com as tendências seguidas tradicionalmente. A concepção na qual crime e pecado se confundiam foi perdendo espaço, promovendo uma laicização dos tribunais e do próprio Estado. Tal movimento foi reforçado pelas Ordenanças Reais de 1670 e 1682, que previram a minimização e a abolição do crime de feitiçaria, negando a tradição de criminalizar os pactos demoníacos e as práticas satânicas. Além disso, a admissão de provas obtidas por meio de tortura passou a ser cada vez mais restrita e descompassada com as teses (humanistas, sobretudo) que brotavam na Europa naquele momento.
Assim, o sistema de justiça penal passou a ser alvo de incisivas críticas de praticamente todos os filósofos humanistas. A ciência e a razão humana, inteiramente desvinculados do status quo, passaram a desautorizar a sacralização dos crimes e de sua repressão. A confusão entre as estruturas estatais e eclesiásticas, bem como o poder do clero, tiveram de descer os degraus da inquestionabilidade, sofrendo abalos irreversíveis.
O movimento iluminista e suas ideias decorrentes, em continuidade às tendências humanistas, deram origem ao chamado iluminismo penal. Fundado sobre as bases dos direitos fundamentais de primeira geração – que se firmaram com a Revolução Francesa de 1789 –, o iluminismo penal tentou sepultar a concepção inquisitorial do processo. Salo de Carvalho lista uma série de direitos que foram legados pelos filósofos iluministas: reserva legal, taxatividade, irretroatividade, tripartição dos poderes, proporcionalidade das penas, devido processo legal e igualdade perante a lei (CARVALHO, 2006, p. 214).
Para que fosse possível assegurar todos os direitos e garantias, era preciso, ao mesmo tempo, de um Estado forte e autônomo, mas munido de ferramentas eficientes no controle e na limitação de seu próprio poder. Eis que surge o Estado de Direito, incompatível, por natureza (e em teoria), com os propósitos e com a dinâmica do sistema inquisitório dos Tribunais do Santo Ofício, extintos por último em Portugal (1821) e na Espanha (1834).
5. Do sistema acusatório (modelo teórico)
O sistema acusatório prevê um processo penal composto por partes, em que há essencial separação entre as funções de acusar e de julgar. Em contraposição à parte acusadora, encontra-se o acusado que, em igualdade de condições, irá exercer o seu direito de defesa. O juiz, por sua vez, desmunido de poderes instrutórios, deve, portanto, exercer um juízo imparcial.
A origem do sistema acusatório remonta à Grécia Antiga e à República Romana, em que a acusação ocorria de forma essencialmente privada, titularizada pelo próprio ofendido e por seus familiares ou, posteriormente, à sociedade como um todo, por intermédio de qualquer cidadão (ALVES, 2013, p. 49).
Antes de prosseguirmos, é válido lembrar que o sistema acusatório ganha diferentes feições de acordo com o tempo e o espaço em que esteja situado. Sobre esse aspecto, ensina José Antônio Barreiros apud Sacramento (2012):
Não há, assim, um conceito aprioristicamente fundado de estrutura acusatória - a que os concretos ordenamentos processuais penais se tenham que sujeitar - mas uma filosofia da máxima acusatoriedade possível, que só após a análise especificada de cada ordenamento processual penal se poderá delinear concretamente no que à sua caracterização fundamental respeita. A aferição da constitucionalidade de um sistema processual penal passa, deste modo não pela subsunção estática dos institutos jurídicos concretos que ela admita aos comandos abstractos da Constituição, mas pela análise ponderada da respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista recortar-lhe os grandes princípios estruturadores, reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários agentes nele participantes, extractar-lhe os módulos, fases e graus de procedimento.
Em uma concepção mais recente do sistema acusatório, que emergiu com a Revolução Francesa e seus postulados, busca-se o banimento da ideia de verdade real, além de excluir a possibilidade de atividade probatória por parte do magistrado, já que a gestão de provas pelo juiz inevitavelmente contaminaria sua imparcialidade, conforme assevera Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, apud Martins (2009, p. 51):
O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato, privilegiando-se o mecanismo ‘natural’ do pensamento da civilização ocidental que é a lógica dedutiva, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão.
Ainda sobre a produção probatória do juiz e sua falaciosa fundamentação, relata Aury Lopes Jr. (2019, p. 187):
(...) a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um gravíssimo erro.
O processo acusatório, portanto, ao tratar a defesa e a acusação como partes legítimas do processo e independentes da função julgadora, funciona como aparato jurídico que garante a imparcialidade do juiz, afastando arbitrariedades nas manifestações do poder punitivo do Estado. Na ausência do juiz inquisidor, abrem-se as possibilidades para que o réu seja tratado como suspeito, e não como condenado, até prova em contrário.
Contrapostos os dois sistemas de processo penal – inquisitório e acusatório –, é plenamente factível considerar a existência de reflexos diretos entre o modelo de Estado e a forma como se manifesta a repressão penal. Em duas passagens Luigi Ferrajoli (2010, p. 519 e 520) evidencia tal afirmação:
Além disso, a seleção dos elementos teoricamente essenciais nos dois modelos inevitavelmente é condicionado por juízos de valor em virtude da conexão que indubitavelmente pode ser instituída entre sistemas acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre sistema inquisitório, modelo autoritário e eficiência repressiva.
Bem mais complexos e articulados são os lineamentos históricos das duas tradições (acusatória e inquisitória), tais como vêm se desenvolvendo e alternando nos séculos paralelamente aos ciclos dos regimes políticos – ora democráticos, ora despóticos – dos quais sempre foram expressão.
6. Desconstruindo o mito da verdade real
Conforme visto, a presunção de existência de uma verdade absoluta, sobretudo no período dos Tribunais do Santo Ofício, operou de duas formas: a) no sentido de que era legítima a atuação dos inquisidores, que estava em consonância com a autêntica e infalível interpretação clerical da vontade de Deus; b) no sentido de que era necessária, no processamento de crimes/heresias, a perseguição da verdade “real”, que poderia ser obtida por meio da confissão (fruto de tortura, no mais das vezes).
Sob a primeira forma, a verdade representa a revelação da Igreja Católica, a única capaz de abrir as portas para a eternidade. Segundo Leonardo Boff (1993), dessa forma, qualquer experiência ou dado que entrasse em conflito com tais verdades reveladas, estaria fadada ao equívoco ou ao erro. Ressalta ainda que, na ótica da Igreja, o erro radical era a heresia ou a suspeição de heresia, pois, uma vez negada a verdade absoluta, fechavam-se os caminhos para a salvação. O herege era tratado como o arqui-inimigo da fé, perigosíssimo, portanto. E se o perigo era máximo, máximas também deveriam ser a vigilância e a repressão. Eis por que o autor afirma que “a pretensão da verdade absoluta leva à intolerância”.
Por sua feita, o juiz inquisidor, detentor de capacidade acusatória, perseguia a todo custo a mais valiosa das provas: a confissão, como grande representação da verdade real. No entanto, a busca sem reservas por uma suposta verdade real – sobretudo com o uso da tortura – paradoxalmente, gerou absurdas distorções, de modo que a confissão não raro passou a representar exatamente o oposto da verdade: a confissão de autoria por alguém que não fosse autor, por exemplo.
Em vista dos altíssimos índices de condenação, percebe-se que inúmeras injustiças foram cometidas em nome da verdade real, inalcançável por natureza, e sujeita a distorções de toda ordem. A própria subjetivação do juiz, diante de uma verdade, é trazida por Calamandrei apud Marinoni (2006, p. 280):
Ponham dois pintores diante de uma mesma paisagem, um ao lado do outro, cada um com seu cavalete, e voltem uma hora depois para ver o que cada um traçou em sua tela. Verão duas paisagens absolutamente diferentes, a ponto de parecer impossível que o modelo tenha sido o mesmo. Dir-se-ia, nesse caso, que um dos dois traiu a verdade?
7. A verdade segundo o garantismo de Ferrajoli
Muito embora o termo garantismo possa ser encontrado desde o século XVIII, sua incorporação no âmbito jurídico é bem mais recente, tendo sido introduzido na Itália, em matéria de Direito Penal, na década de 1970. Segundo Ferrajoli, grande expoente dessa corrente, o garantismo pode “ser estendido a todo sistema de garantias dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o garantismo é sinônimo de Estado Constitucional de Direito[1]”.
A concepção garantista, portanto, visa a proteger os indivíduos contra toda a sorte de abusos por parte do Estado e de seus representantes, sobretudo no que diz respeito a ações que estejam em contrariedade com direitos constitucionalmente previstos.
O mito da verdade real, conforme visto, ensejou, no decorrer da história, inescusáveis abusos contra direitos fundamentais de acusados. Tal fato, todavia, não passou despercebido pelos defensores do garantismo penal (a exemplo de Ferrajoli) que, de pronto, passaram a rechaçar qualquer tentativa de fundamentação da busca pela verdade real.
A necessária ausência de regras e limites na obtenção da verdade substancial abre espaço para um processo penal extremamente autoritário, arbitrário e irracional. Daí por que não é a busca pela verdade real que deve guiar o processo; imperioso, portanto, é o estabelecimento de limites aplicáveis na persecução penal (e da verdade), de modo a garantir os direitos fundamentais dos acusados, minimizando o arbítrio punitivo estatal.
O processo penal é uma tentativa de reconstrução histórica de fatos pretéritos. Nessa missão, defende Ferrajoli (2010, p. 57), regras processuais devem ser obedecidas, com vistas a resguardar direitos. Abandona-se, dessa forma, a ideia de obtenção da verdade real a todo custo. A verdade possível e válida é a verdade processual, gerada a partir de procedimentos que respeitem as garantias da defesa.
Dessa forma, com a verdade processual – que, diga-se de passagem, não tem pretensões de ser “a verdade” –, o processo restringe arbitrariedades do julgador, por meio de um formalismo procedimental voltado para esse fim.
8. A verdade segundo a doutrina brasileira
Diversos são os doutrinadores brasileiros que se ocuparam de traçar observações sobre a verdade no processo penal. Suas ideias refletem – e são reflexos – na maneira como tal questão é tratada, na prática, pelos tribunais pátrios.
Dentre os princípios do processo penal elencados por Mirabete (2002, p. 44), é de se destacar o princípio da verdade real. Segundo o autor, tal princípio procura estabelecer que “o jus puniendi somente seja exercido contra aquele que praticou a infração penal e nos exatos limites de sua culpa numa investigação que não encontra limites na forma ou na iniciativa das partes”. Complementa com a informação de que no Brasil o princípio da verdade real não vige em sua inteireza, uma vez que, entre outros, há, por exemplo, “causas de extinção da punibilidade que podem impedir a descoberta da verdade real”.
Eugênio Pacelli de Oliveira (2008, p. 278-280), por sua vez, declara que talvez o maior mal causado pelo princípio da verdade real “tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal”, uma vez presente a “crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado”. Nas lições do autor:
Desde logo, porém, um necessário esclarecimento: toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E não somente pelo fato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se de uma certeza de natureza exclusivamente jurídica.
E mais. Não só é inteiramente inadequado falar-se em verdade real, pois que esta diz respeito à realidade do já ocorrido, da realidade histórica, como pode revelar uma aproximação muito pouco recomendável com um passado que deixou marcas indeléveis no processo penal antigo, particularmente no sistema inquisitório da Idade Média, quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real) legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimidação da defesa.
Tourinho Filho (2001, p. 58-59) percebe a impossibilidade de alcançar a verdade real, decorrente das “naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas”, sendo para ele mais adequado falar em uma “verdade processual” ou uma “verdade forense”. Apesar de reconhecer as dificuldades, dentre elas a possibilidade de ser estabelecida uma “falsa verdade real”, o autor não afasta por completo a possibilidade de o juiz ter um poder de instrução no decorrer de um processo penal:
(...) quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de chegar à verdade verdadeira, como se costuma dizer, ou, se quiserem à verdade na sua essência – esta acessível apenas à Suma Potestade –, mas tão somente salientar que o ordenamento confere ao Juiz penal, mais do que ao Juiz não penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica, na medida do possível, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado, numa tarefa semelhante à do historiador.
Nucci (2012, p. 111-115) prevê que o princípio da verdade real significa, para o autor, que o “o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente”. Cita como exemplo, dentre outros, os arts. 209, 234 e 147[2], todos do Código de Processo Penal Brasileiro, e conclui que:
Tal situação (a verdade formal do processo civil) jamais ocorre no processo penal, no qual prevalece a verdade real, que é a situada o mais próximo possível da realidade. Não se deve contentar o juiz com as provas trazidas pelas partes, mormente se detectar outras fontes possíveis de buscá-las.
Mesmo assim, faz referência aos limites aplicáveis a essa busca pela verdade:
Finalmente, deve-se destacar que a busca da verdade material não quer dizer a ilimitada possibilidade de produção de provas, pois há vedações legais que necessitam ser respeitadas, como, por exemplo, a proibição da escuta telefônica, sem autorização judicial.
Por fim, para Marinoni (2006, p. 274-282) a verdade absoluta é impossível de ser alcançada, no processo e nos demais ramos da ciência:
(...) a noção de verdade é, hoje, tida como algo meramente utópico e ideal enquanto fato absoluto). Uma afirmação perigosa como esta existe, certamente, maiores esclarecimentos. Em essência, o que se pretende dizer, na realidade, é que, seja no processo, seja em outros campos científicos, jamais se poderá afirmar, com segurança absoluta, que o produto encontrado efetivamente corresponde à verdade.
O próprio direito impõe limites aos mecanismos de “revelação de verdade”, em vista de outros direitos (como a intimidade, por exemplo) que também merecem ser tutelados. Em sendo assim, Marinoni (2006, p. 282) conclui que o “compromisso que o direito tem com a verdade não é tão inexorável quanto aparenta ser”.
Dessa forma, ainda que a linguagem jurídica atual adote a “verdade real” como conceito relativizado, deve-se atentar para o fato de que, por vezes, o termo por si só é capaz de emplacar, até mesmo em âmbito judicial, uma aceitação das práticas policiais abusivas impulsionadas a pretexto de buscar a “verdade real”, mito que se mantém vivo no senso comum.
9. Desconstruindo a validade da tortura como meio de prova
Conforme visto acima, a tortura foi amplamente utilizada ao longo da história. No âmbito do processo penal, no mais das vezes, esteve diretamente relacionado com uma realidade de autoritarismo estatal.
Sendo assim, o uso da tortura como meio de prova é uma das faces mais expressivas da intolerância perpetrada pelo Estado. Nessa condição, reprime, sem reservas, qualquer um que seja suspeito de atuar contra os interesses do poder instituído, utilizando-se de diversas escusas na tentativa de legitimar sua utilização. Dentre elas, já vimos, destaca-se a obtenção da verdade real, alcançável por meio da confissão. Assim, considerando que seriam raros os casos em que os réus reconhecem seus erros voluntariamente, a tortura foi utilizada como via de acesso a uma confissão (forçada), apoiando seus pilares de legitimação sobre o mito da verdade real.
É de se destacar, portanto, que não há essa relação de equivalência entre a confissão e a verdade. A autoincriminação pode acontecer de diversas formas incompatíveis com a realidade, por exemplo: para proteger o verdadeiro autor; por enfermidade mental do acusado; ou, quiçá, apenas para fazer cessar uma tortura sofrida.
Em uma situação hipotética, se o torturador tem por objetivo obter a confissão, tudo que pensa em fazer o torturado é entregar-lhe esta, para que se interrompa os suplícios, ainda que a confissão não corresponda à verdade. Tal cenário é descrito por Beccaria[3]:
Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais. Dessa forma, o acusado já não pode deixar de responder, pois não poderia escapar às impressões do fogo e da água. O inocente exclamará, então, que é culpado, para fazer cessar torturas que já não pode suportar (...).
Em um de seus artigos, Salo de Carvalho (2005, p. 38) traz uma passagem de Umberto Eco que bem ilustra o comportamento de um indivíduo submetido à tortura:
Há uma coisa apenas que excita os animais mais do que o prazer: é a dor. Sob tortura tu vives como sob o efeito de ervas que produzem alucinações. Tudo o que ouviste contar, tudo o que leste, volta à tua mente como se fosses transportado, não ao céu mas ao inferno. Sob tortura dizes não apenas o que quer o inquisidor, mas também aquilo que imaginas que possa lhe dar prazer, porque se estabelece uma relação (esta sim, realmente diabólica) entre tu e ele... Eu sei estas coisas, Ubertino, eu também fiz parte daquele grupo de homens que acreditam poder produzir a verdade com o ferro incandescente.
Destarte, a aplicação da tortura desfavorece o inocente, que será condenado injustamente por uma falsa autoincriminação ou, na melhor das hipóteses, não será condenado, mas terá sofrido uma série de tormentos por atos que não cometeu. Nessa linha, Beccaria expõe outra face perversa da tortura:
(...) o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos. A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais (...).
Com os argumentos expostos, Beccaria foi um dos responsáveis por dar um grande passo rumo à abolição da tortura na Europa, a partir do século XVIII. Em face de todos as injustiças que podem decorrer do uso da tortura como meio de prova, não há qualquer base teórica que seja capaz de legitimá-la.
Conclusão
Na história ocidental, os pensadores do humanismo e do iluminismo foram os grandes responsáveis em promover o rechaço teórico da utilização da tortura como meio de obtenção de verdade. Observou-se que o uso de tortura no processo penal tem indissolúvel ligação com Estados autoritários, uma vez que a ideia de buscar – a qualquer custo – a “verdade real” é, inexoravelmente, fonte de intolerância.
Nessa linha, vale ressaltar que a produção probatória deve respeitar, portanto, a presunção de inocência do acusado, e não a busca pela verdade real. O desproporcional risco de apenar um inocente (além de outros abusos inerentes) retira toda a razão de ser de um sistema penal fundamentado em busca por “verdades”. Ainda nos dias atuais, tal afirmação se faz necessária, considerando que o objetivo seja o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGELIS, Vanna de. Le streghe: storia di donne che nacquero fate e morirono amanti del diavolo. 2. ed. Padova: Piemme, 2003 (citado por: PINTO, Felipe Martins. A Inquisição e o Sistema Inquisitório. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Nº 56, 2010).
BARREIROS, José Antônio. Processo Penal. Vol. 1. Coimbra: Almedina.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Capítulo XII – Da Questão ou Tortura. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/beccaria.html#52
BOFF, Leonardo. Prefácio. In: EYMERICH, Nicolau Frei. Manual dos inquisidores. Tradução de Maria José Lopes da Silva, Prefácio de Leonardo Boff. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
CARVALHO, Salo de. Da Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. In WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Editora Del Rey, Belo Horizonte: 2006.
CARVALHO, Salo de. Revisita à Desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 42, nº 0. 2005.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 3ª edição revista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas. 3ª edição. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
______. Vigiar e Punir. 9ª edição. Petrópolis: Vozes, 1991.
GONZAGA, João Bernardino Garcia. A Inquisição em seu mundo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1993.
LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 5ª edição. Editora Saraiva Educação, São Paulo: 2019.
LOPES, Othon de Azevedo. Responsabilidade Jurídica – Horizontes, Teoria e Linguagem. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
MARINONI, Luiz Guilherme e out. Manual do Processo de Conhecimento. 5ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.
MARTINS, Pedro Paulo Mendes. A “eficiência” contida nas recentes reformas parciais do CPP (Lei 11.690/08 e lei 11.719/08): breve diálogo entre neoliberalismo e processo penal. Monografia (Graduação em Direito) Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Curitiba, 2009.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 13ª Ed. São Paulo: Atlas, 2002.
NASPOLINI, Samyra Haydêe. Aspectos históricos, políticos e legais da inquisição. In WOLKMER, Antonio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Ed Del Rey. Belo Horizonte: 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 9ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PINTO, Felipe Martins. A Inquisição e o Sistema Inquisitório. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Nº 56, 2010.
RADBRUCH, Gustav. Direito Processual. In: Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SACRAMENTO, Marivaldo Sena. Sistema Acusatório, Sistema Inquisitório e os Reflexos no Direito Penal Moderno. Artigo Científico (pós-graduação) Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professores Orientadores: Mônica Areal Néli Luiza C. Fetzner Nelson C. Tavares Junior. Rio de Janeiro, 2012.
TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
VERRI, Pietro. Ossevazioni sulla tortura. Roma: Newton Compton, 1994, p. 62-64. (citado por: PINTO, Felipe Martins. A Inquisição e o Sistema Inquisitório. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Nº 56, 2010).
[1] Trecho da entrevista de Ferrajoli concedida a Gerardo Pisarello e Ramón Suriano, em 1997, na Universidad Carlo III de Madrid. In: TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-pensamento-luigi-ferrajoli
[2] BRASIL, Código de Processo Penal. Decreto-Lei no 3.689, de 03 de outubro de 1941.
“art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.”;
“art. 234 Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível.”; e
“art. 147. O juiz poderá, de ofício, proceder à verificação de falsidade.”
[3] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Capítulo XII – Da Questão ou Tortura. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/beccaria.html#52
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Público. Servidor Público Federal. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ONO, Ricardo Hideaki. Revisita histórica à utilização da tortura como meio de prova no Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54409/revisita-histrica-utilizao-da-tortura-como-meio-de-prova-no-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.