ÉRICA CRISTINA MOLINA DOS SANTOS¹
(Orientadora)
RESUMO: O presente trabalho teve por escopo a análise do conceito de família e a compreensão de seus desdobramentos, que sofreram uma série de modificações através do tempo consolidando-se no modelo atualmente vigente, que se opõe à estruturação rígida tradicional e possui como traço identificador o afeto. Buscou-se explorar, ainda, a evolução legislativa do Direito de Família e a sua ressignificação com a incorporação dos princípios constitucionais e a doutrina da proteção integral. Além disso, analisou-se o direito à convivência familiar, com especial ênfase à entre avós e netos, legalmente garantido e fundamental para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, favorecendo um compartilhamento de valores de caráter multigeracional. Referida convivência privilegia a atividade formadora da família, contribuindo para a socialização dos netos. Buscou-se explorar a atuação do Poder Judiciário com relação a promover a garantia da convivência familiar entre avós e netos, por meio da análise de decisões judiciais e do posicionamento dos magistrados em seus votos.
Palavras-chave: Direito de Família; Convivência Familiar; Avós.
ABSTRACT: The present article had by scope the analysis of the concept of “family” and the comprehension of its deployments, which underwent a series of modifications throughout history, consolidating itself in the current form, which opposes the strict traditional structure and has, as its identifier dash, the affection. The legislative developments were also explored, with its reconfiguration by incorporating the constutional principles and the inauguration of the doctrine of integral protection. Also, the right to family living was analyzed, with special emphasis on the acquaintanceship between grandparents and their grandchildren, which is ensured by law. This acquaintanceship is fundamental for the development of children and adolescents, which favors the sharing of multigenerational character values. Besides that, this coexistence privileges the family-forming activity, which contributes to the grandchildren’s socialization. It was intended to explore the performance of the Judiciary Branch concerning to promote the warranty of acquaintanceship between grandparents and their grandchildren, through the analysis of Court decisions and the Judges standings in their votes.
KEYWORDS: Family Right; Family living; Grandparents.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO2. DESDOBRAMENTOS DO CONCEITO DE FAMÍLIA SOB A ÓTICA HISTÓRICA 3. A INCORPORAÇÃO DA NOVA ROUPAGEM DA FAMÍLIA NA SISTEMÁTICA LEGAL 4. OS PRINCÍPIOS QUE PASSAM A ORIENTAR O DIREITO DE FAMÍLIA 5. A INAUGURAÇÃO DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FIXAÇÃO DA GUARDA E O DIREITO ASSISTENCIAL 7. O DIREITO A CONVIVÊNCIA FAMILIAR DOS AVÓS COM SEUS NETOS 8. CONCLUSÃO 9. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo direciona-se à compreensão do instituto da família, bem como sua nova estruturação pautada por mudanças de paradigma erigidas através da história, elegendo a afetividade como o princípio norteador da configuração familiar e, sob esta ótica, analisando a possibilidade da fixação da guarda em favor dos avós.
Passa-se a explorar, nesse sentido, as motivações que levavam à constituição das famílias, que sofreram diversas alterações acompanhando as novas dimensões da entidade familiar. Tais dimensões modificam-se de acordo com a evolução histórica, em que se percebe que os primeiros conceitos de família ligam-se a uma roupagem patrimonialista, hierarquizada e patriarcal, além de mostrar-se como um instituto a serviço do Estado.
Com o passar do tempo, tais aspectos se desconstroem, desconstrução esta que se facilitou com a mudança das famílias à zona urbana incentivada pela demanda operária oriunda da Revolução Industrial. A sua transferência às cidades implicou na moradia da família em espaços físicos reduzidos, contribuindo para a sua aproximação e sua redução em núcleos familiares menores, em contraposição às anteriores famílias compostas por múltiplos membros.
Em seguida, explora-se os novos aspectos da família, que influenciaram fortemente na evolução legislativa referente ao tema. A afetividade torna-se, então, o principal traço identificador da família. A Constituição Federal de 1988, à qual toda a legislação infraconstitucional deve obrigatoriamente observar, incide sobre o ordenamento jurídico uma gama de princípios norteadores que passam a integrar o Direito de Família, favorecendo a sua proteção e a liberdade de seus membros, afastando a ingerência estatal.
Nesse contexto, os direitos fundamentais da criança e do adolescente são privilegiados, inaugurando a doutrina da proteção integral. A legislação interna alia-se a dispositivos internacionais para promover especial atenção ao seu desenvolvimento pleno e a saudável, tanto física quanto psicologicamente. Passa-se a priorizar seus interesses em questões do Direito de Família, como a fixação da guarda.
Pondera-se, enfim, sobre a possibilidade da fixação da guarda em favor dos avós, denominada juridicamente de guarda avoenga, buscando atender o melhor interesse da criança e do adolescente. Ainda, reflete-se sobre o direito dos avós à convivência familiar e os benefícios mútuos que tal convivência proporciona, permitindo um compartilhamento de valores de caráter intergeracional.
2. DESDOBRAMENTOS DO CONCEITO DE FAMÍLIA SOB A ÓTICA HISTÓRICA
O conceito de família é fruto de uma série de transformações ocorridas através da história, consubstanciando-se no que conhecemos hoje. O seu principal traço é, atualmente, a afetividade. Conforme conceitua a jurista Maria Berenice Dias, a família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito (DIAS, 2016).
De acordo com Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a família se trata de um núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena de seus integrantes (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2011). Dessa forma, a anterior e engessada presunção de que a família se constitui mediante o vínculo matrimonial e a geração de filhos se dissolve ante a evolução da sociedade, assumindo múltiplas formas.
A família possui a essência de construção cultural. A própria organização da sociedade se dá em torno da estrutura familiar. A motivação pioneira para a constituição de famílias é oriunda de um profundo intervencionismo estatal, que instituiu, por exemplo, a necessidade do matrimônio.
A família, nesse aspecto, pode ser vista como uma importante ferramenta ao impulso demográfico, permitindo a multiplicação da população. O perfil da família apresenta uma estrutura hierarquizada e patriarcal: a reprodução significava mais membros, ampliando a força de trabalho e evidenciando, assim, a sua essência patrimonializada.
Analisando a entidade familiar sob o aspecto patrimonial, visualizando-a como uma produtora de mão de obra, surge a Revolução Industrial, que vem renovar o quadro e reposiciona os papéis de cada familiar. Com o súbito crescimento da demanda de operários, as mulheres acabam deixando seus lares para trabalhar nas fábricas. Altera-se substancialmente, assim, as estruturas tradicionais da família, em que o homem figurava como o principal provedor das necessidades e a única fonte da subsistência.
Aliado ao ingresso das mulheres às fábricas, outro importante fator que contribuiu para as mudanças na estruturação familiar foi a transferência das famílias para a cidade, abandonando as zonas rurais. A convivência em espaços fisicamente menores favoreceu a aproximação dos membros da família e prestigiou o fortalecimento de seus laços afetivos.
Deste modo, as finalidades da constituição da família foram ressignificadas, privilegiando cada vez mais os vínculos afetivos. Traduz o jurista Paulo Lobo:
O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. (...) Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo (LOBO, 2010, s/p ).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção do Estado. É usualmente concebida como a “base da sociedade”; contudo, por sofrer reiteradas mudanças em sua formação, o Estado dificilmente consegue acompanhar (e, consequentemente, proteger) a instituição familiar.
Sendo a estrutura familiar um organismo cujos reflexos comportamentais refletem na estrutura da sociedade, é fundamental que o Estado se adeque às mudanças trazidas pela contemporaneidade, sob risco de ineficácia. Além disso, é fundamental a discussão sobre os limites da legitimidade que o mesmo detém para invadir as esferas privadas dos indivíduos e na formação de suas famílias.
Compreender a evolução do direito das famílias deve ter como premissa a construção e a aplicação de uma nova cultura jurídica, que permita conhecer a proposta de proteção às entidades familiais, estabelecendo um processo de repersonalização dessas relações, devendo centrar-se na manutenção do afeto, sua maior preocupação (DIAS, 2016, p. 50).
Nesse sentido, a autora aponta para o perigo da estatização do afeto, inconciliável com a concepção da estrutura familiar atual. A família abandona o seu modelo rígido, adotando-se um poliformismo familiar, e todas as famílias recebem a proteção do Estado.
3. A INCORPORAÇÃO DA NOVA ROUPAGEM DA FAMÍLIA NA SISTEMÁTICA LEGAL
O Código Civil de 1916 limitava a concepção da família ao casamento, além de estatuir a diferenciação entre os membros da família, entre relacionamentos erigidos ou não pelo matrimônio e entre os filhos “legítimos” e “ilegítimos”. Tratava-se, pois, de legislação altamente excludente e discriminatória.
As mudanças que se sucederam na sociedade conduziram a uma evolução legislativa, atribuindo-se direitos à mulher, favorecendo a sua autodeterminação e concedendo a ela capacidade. Outro avanço foi a possibilidade da dissolução do casamento, antes inexistente, extinguindo a idealização do casamento como uma instituição sacralizada. O jurista Eduardo de Oliveira Leite denominou esse fenômeno de “dessacralização” (LEITE, 2005).
Contudo, foi o advento da Constituição de 1988 que revolucionou a proteção à família, extinguindo conceitos que causavam desconforto a instituições familiares que não se adequavam às regras legais e, consequentemente, não se entendiam como sujeitos daqueles direitos. Sepultam-se, então, dispositivos que já não eram capazes de disciplinar as práticas sociais, além de conter traços preconceituosos e discriminatórios.
A Constituição estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres, passou a proteger de forma igualitária todos os membros de uma família, equiparou o casamento à união estável, bem como o reconhecimento de outros modelos de família, como as famílias monoparentais. Revoga-se, também, a diferenciação entre os filhos havidos dentro e fora do casamento. Há, nesse contexto, um aspecto de democratização na família.
Tem-se, com o advento da Constituição de 1988, a ressignificação do Direito de Família, propondo um novo caminho metodológico ao Direito Civil, em que a própria Carta Magna constitui seu ponto de origem. Os institutos privados passam a ser analisados, sistematicamente, sob a ótica da Constituição, e não o contrário (TARTUCE, 2019).
Sendo assim, os direitos fundamentais passam a incidir os seus efeitos sobre o direito privado, tendo em vista a sua eficácia imediata e horizontal e a horizontalização das normas que protegem as pessoas (SARLET, 2005). Por oportuno, importante citar a analogia do jurista Ricardo Lorenzetti, em que o Direito Privado figura como um sistema solar: o Sol representa a Constituição Federal e todos os planetas orbitam ao seu redor.
Nesse diapasão, afiguram-se uma série de mudanças que emergiram da Constituição Federal e estenderam seus efeitos ao Direito de Família. O jurista Eduardo de Oliveira Leite apontou algumas das alterações em seus rumos. Entre eles, pode-se destacar a estatização, que privilegiou a ingerência do Estado nas relações familiares, levando-se em consideração o seu caráter tradicionalmente privativista (LEITE, 2005).
Evidente, também, a retratação, característica que consiste na minoração dos aspectos patriarcais da família, o que decorre de sua sucessiva redução à família nuclear. A proletarização, por sua vez, é a perda da essência plutocrática da família.
Tal mudança se contrapõe radicalmente ao que foi, na época medieval, justamente a motivação para a constituição de famílias cada vez mais numerosas: a maior quantidade de membros aptos ao trabalho e, consequentemente, à obtenção de riquezas.
A desencarnação, outra característica que incidiu sobre o Direito de Família, traduz-se na substituição do elemento carnal e religioso pelo elemento psicológico e afetivo. Conforme mencionado, este é o principal traço norteador da concepção de família atualmente. Aliada à desencarnação, a democratização das famílias é característica que reflete o enfraquecimento da hierarquia e do autoritarismo, dando lugar ao companheirismo e a igualdade familiar, onde há espaço para todos manifestarem as suas opiniões.
Conforme se tratará adiante, a democratização é um importante aspecto em institutos como a guarda compartilhada, onde se define, de maneira igualitária, os deveres de cada um dos guardiões. Homenageiam-se, desta forma, a corresponsabilidade e a igualdade entre os deveres, deixando para trás a concepção de que a responsabilidade pelos menores é função de somente um genitor/guardião.
4. OS PRINCÍPIOS QUE PASSAM A ORIENTAR O DIREITO DE FAMÍLIA
Assume-se, portanto, que o Direito de Família toma novos rumos e passa a ser orientado por princípios pautados na Constituição. Tais princípios privilegiam a máxima observância aos direitos fundamentais e elege a família como um instituto que goza de proteção máxima: conforme pondera Flávio Tartuce, a família é considerada um dos direitos fundamentais mais preciosos, uma vez que remete às origens do ser humano – e não há ser humano sem família (TARTUCE, 2019).
Nesse diapasão, o jurista leciona que o princípio da dignidade da pessoa humana encontra o protagonismo no Direito de Família. É o metaprincípio que, em homenagem à doutrina kantiana, revela o ser humano como fim em si mesmo, e não como meio para se obter outro fim. No âmbito social, a dignidade humana se concretiza ante a possibilidade de um indivíduo se conviver com as demais pessoas, mantendo o contato com sua comunidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana está intrinsecamente ligado à possibilidade dos filhos manterem vínculos de afetividade com seus familiares, sendo beneficiários de total assistência material e emocional de forma com que possam desenvolver, ao máximo, a sua personalidade. Tartuce cita, em sua obra, acertada decisão jurisprudencial que bem retrata a sobreposição da afetividade no campo familiar em relação aos demais aspectos, vez que este reflete, acima de tudo, a dignidade:
No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado. Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional (TARTUCE, 2019, p. 34)
Discorrendo sobre os demais princípios que passaram a integrar o Direito de Família, Tartuce menciona o princípio da solidariedade familiar. A solidariedade é um dos sutentáculos da República, figurando no Art. 3º, I, da Constituição Federal de 1988. Significa, em sua essência, o ato humanitário de responder pelo outro, preocupar-se e cuidar de um outro alguém (TARTUCE, 2019). Tal solidariedade não se limita ao campo patrimonial, centrando-se, sobretudo, na solidariedade afetiva e psicológica.
O princípio da igualdade entre os filhos vem fortalecer a busca pela eliminaçãode práticas discriminatórias direcionadasentre filhos havidos dentro e fora da relação matrimonial. O artigo 227, §6º, da Constituição Federal, determina que os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
As mencionadas designações discriminatórias são largamente conhecidas, materializando-se em expressões como “filho bastardo”, “filho incestuoso” e outras dessa natureza. Passam, então, a ser repudiadas, apesar de serem absurdamente comuns em um passado não muito distante, enunciadas sem qualquer ressalva.
O princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros também se imprime no Direito de Família, abolindo as diferenciações antes tão comuns por questões de gênero. Para isso, foi fundamental a determinação expressa na Constituição da igualdade entre homens e mulheres.
Ademais, não existe mais atribuição de “chefia familiar” condicionada ao gênero, favorecendo o conceito da democratização das famílias. Há, nesse sentido, um profundo processo de despatriacarlização do Direito de Família, desaparecendo a figura ditatorial do pai (TARTUCE, 2019).
O princípio da não intervenção homenageia a autonomia familiar, opondo-se veementemente à ingerência do Estado no que diz respeito ao planejamento da família e o seu direito assegurado de regulamentar os seus próprios interesses. Este importante princípio repele, por exemplo, que o Estado interfira nas famílias para realizar o controle demográfico, o que era comum no passado. Diante disso, assume-se que a gerência dos interesses da família serve a seus membros, e não aos interesses estatais.
Ainda explorando o corpo de princípios que integram o Direito de Família, tem-se o princípio da afetividade, que figura como o fundamento das relações familiares. Flávio Tartuce considera que, embora o afeto não esteja grafado expressamente como um direito fundamental, ele decorre da valorização constante da dignidade humana (TARTUCE, 2019).
Sendo assim, a afetividade ocupa o lugar de maior importância nas relações familiares, como sendo a liga que reúne os seus membros e a motivação, também, para constituí-las. A afetividade se torna, então, um traço identificador da família, possuindo valor jurídico inquestionável.
5. A INAUGURAÇÃO DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Outro princípio que tem incalculável relevância e se alia aos demais para cultivar, ao máximo, a responsabilidade, a afetividade e a dignidade na família é o do melhor interesse da criança e do adolescente. Toma corpo na sistemática legal do Direito de Família, assim, a doutrina da proteção integral.
Referido princípio estampa o caput do artigo 227 da Constituição Federal, que estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Reforçando o garantido pela Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente reitera serem sujeitos de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-lhes todos os meios de atingir o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Tais dispositivos expressam a preocupação envidada pela Constituição em proteger a criança e adolescente, sendo, assim, reconhecida de forma inequívoca a importância da preservação e da proteção da família. Dispositivos internacionais conjugam-se com o sistema legal interno, visando ao fortalecimento das estruturas de proteção a crianças, adolescentes e jovens, que são, naturalmente, imbuídos de vulnerabilidade.
Nesse sentido, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança alia-se à legislação interna ao determinar, em seu preâmbulo, que o pleno e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança depende de seu crescimento no seio familiar, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão. As Diretrizes de Riad, aprovadas para a prevenção da delinquência juvenil em 1990, enaltecem a obrigação dos governos na adoção de medidas no sentido de fomentar a união e harmonia na família.
Ante a eleição dos vínculos de afetividade como o traço norteador do reconhecimento e da constituição da família, a jurista Maria Berenice Dias convida o mundo jurídico à adoção da expressão “Famílias’. Tal denominação eliminaria quaisquer traços de discriminação, enlaçando todos os modelos de famílias independentemente de sua formação (DIAS, 2016).
6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FIXAÇÃO DA GUARDA E O DIREITO ASSISTENCIAL
O papel da família está relacionado à atividade formadora: emprega-se esforços para a formação de crianças e adolescentes, preparando-os para as responsabilidades futuras e para o convívio social. A família se constitui, nesse aspecto, em um agente de socialização que é responsável pela própria ordem social, uma vez que transmite à nova geração os valores da geração mais antiga.
Conforme menciona Flávio Tartuce, o direito assistencial é um dos aspectos do Direito de Família e se refere aos institutos jurídicos criados pela lei com vistas à proteção pessoal e patrimonial dos indivíduos (TARTUCE, 2019). A guarda, que se divide entre a exercida sob o poder familiar e a não exercida sob o poder familiar, trata-se, a princípio, de um conjunto de faculdades encomendadas aos pais, como instituição protetora da menoridade, com o fim de lograr o pleno desenvolvimento e a formação integral dos filhos, física, mental, moral, espiritual e social (GRISARD FILHO, 2009).
O autor Rodrigo da Cunha Pereira sugere que a denominação “guarda” tende, com o passar do tempo, a ser substituída pela expressão “convivência familiar”, por esta revelar-se mais adequada ao instituto. Aduz, nesse sentido, que o termo “guarda” remete à uma noção de propriedade, o que não considera compatível com os princípios da entidade familiar (PEREIRA, 2018).
Ao se fixar a guarda, o principal critério a ser levado em consideração é o melhor interesse da criança ou do adolescente, em homenagem à doutrina da proteção integral consagrada pela Constituição. A princípio, ela pertence aos pais e decorre do poder familiar.
Na eventualidade do rompimento da convivência dos pais e a consequente fragmentação de um dos componentes da autoridade parental, o poder familiar não é eximido; a guarda torna-se, implicitamente, conjunta, individualizando-se quando ocorre a separação de fato ou de direito daqueles.
Nesses casos, ante a manifestação da falta do interesse de ambos os genitores em fixar a guarda da criança ou do adolescente a seu favor, esta pode ser deferida a outra pessoa, preferencialmente a membro da família extensa que revele compatibilidade com a natureza da medida e com quem tenham afinidade e afetividade, conforme determina o artigo 1.584, §5º do Código Civil (DIAS, 2016).
A instauração da guarda compartilhada, sugerida e incentivada pela norma (uma vez que a norma orienta ao juiz que essa modalidade de guarda deve ser recomendada aos pais, de acordo com o artigo 1.584, §1º do Código Civil) fundamenta-se no estado de fragilidade emocional que muitas vezes acompanha o processo de separação. Assim, a norma objetiva salvaguardar a criança e o adolescente dos reflexos negativos que tal fragilização podem, por ventura, incidir, prevalecendo, acima de tudo, a proteção à criança e o adolescente, em observância aos dispositivos consagrados pelo ordenamento jurídico.
A autora Maria Berenice Dias chama atenção para o que ela denomina “estado de beligerância” que se instaura entre os ex companheiros no momento de sua separação, podendo estender-se também a outros membros da família. Desta forma, os filhos podem ser utilizados como objetos de vingança de um genitor contra o outro, o que justifica, por exemplo, a intervenção do Ministério Público em ações que envolvam a guarda. Convencido de que o acordo realizado entre os pais não atende aos interesses da criança ou adolescente, o juiz poderá deixar de homologá-lo.
Conforme orienta DIAS (2016), a guarda unilateral é exercida quando se atribui a somente um dos genitores, ou alguém que o substitua, a guarda exclusiva do menor. Pode decorrer de um acordo entre ambos a que o juiz não encontre óbice, ou com a declaração de um dos genitores de que não deseja a guarda compartilhada.
Conforme mencionado, a preferência é pela guarda compartilhada, podendo ser aplicada quando ambos os genitores detiverem o poder familiar. Importante ressaltar que ainda que um dos genitores não detenha a guarda, a este não será impedida a convivência familiar com seu (sua) filho (a), podendo tê-lo (a) em sua companhia em períodos determinados judicialmente ou acordados entre as partes.
À parte que não detém a guarda também incumbe o dever de supervisionar a manutenção do menor, verificando as condições a que está sendo submetido, a qualidade de sua educação e o suprimento de suas necessidades. Além disso, informações escolares sobre o rendimento do aluno não podem ser negadas ao genitor que não detém a guarda. Tal omissão é considerada grave, sendo punida com multa, conforme determina o artigo 1.584, §6º, do Código Civil.
De acordo com DIAS (2016), a guarda compartilhada privilegia a efetivação da corresponsabilidade parental, permitindo que ambos exerçam o direito à convivência familiar com os filhos e possam participar irrestritamente de suas vidas e de sua formação. Assim, tal instituto busca garantir a atenção ao melhor interesse da criança e do adolescente, favorecendo a pluralização das responsabilidades, o que se encontra em perfeita concordância com os princípios anteriormente abordados.
O Código Civil é claro em estabelecer em seu artigo 1.583, §1º, que a guarda compartilhada pressupõe a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. Demonstra-se, assim, a incidência do fenômeno da democratização da família consolidada pela Constituição Federal de 1988.
A lei deve primar pelo melhor desenvolvimento físico-psíquico de crianças e adolescentes que estejam envolvidos em situações de rompimento familiar, favorecendo medidas que minorem os impactos negativos que tal fragmentação podem provocar. A família está ligada a uma atividade formadora, conforme tratado anteriormente, e é instituto dotado de proteção constitucional.
O Estado, por meio da lei, protege a família, tendo em vista que a estapossui em suas mãos o futuro da nação, transmitindo valores e formando as personalidades de crianças e adolescentes que serão os próximos atores das engrenagens sociais. De acordo com Gustavo Tepedino, a família possui valor instrumental, sendo o núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes (TEPEDINO, 1999).
De acordo com a autora Giselle Groeninga, a atribuição do tempo em que cada genitor passará com os filhos será pautada no equilíbrio. Esta divisão se atentará às fases do desenvolvimento dos filhos, a possibilidade dos pais e o exercício diferenciado das funções parentais (GROENINGA, 2014). A autora Ângela Gimenez, por sua vez, pondera que a distribuição do tempo deverá homenagear a harmonia, que favorecerá a manutenção dos vínculos afetivos que são primordiais à saúde biopsíquica das crianças e adolescentes (GIMENEZ, 2014).
Chama-se atenção para o fato de que a divisão harmônica de tempo entre os genitores não está ligada à convivência harmônica entre aqueles. O artigo 1.584, §3º, recomenda a intervenção de equipe técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar para a orientação da divisão do tempo entre os pais do menor.
Maria Berenice Dias assevera não existir previsão legal que determine a existência de um lar de referência, tampouco evidências científicas sólidas que demonstrem a sua necessidade (DIAS, 2016). O civilista Paulo Lobo, em contrapartida, defende a necessidade de um local físico onde se desdobrarão as relações familiares, dotado de intocabilidade e responsável por garantir a convivência familiar, que construirá a sua identidade coletiva própria, sendo este seu lar de referência (LOBO, 2000).
7. O DIREITO A CONVIVÊNCIA FAMILIAR DOS AVÓS COM SEUS NETOS
Um traço bastante comum aos lares brasileiros é a presença dos avós, muitas vezes como substitutos ou protagonistas no atendimento aos interesses das crianças e adolescentes. Os avós são, na maior parte dos casos, os sucessores imediatos dos pais no que se refere a relações de afetividade.
DIAS (2016) assevera que a concessão da guarda a outro membro da família deriva, geralmente, da destituição do poder familiar dos genitores e demais inconvenientes que impossibilitem os filhos a permanecerem na companhia dos pais. Assim, convoca-se quem melhor atende a relações de afinidade e afetividade com os menores, levando-se em conta o grau de parentesco e elegendo, na esmagadora maioria das vezes, os avós para cumprirem o papel.
Contudo, chama-se atenção ao fato de que a lei busca transferir à guarda pelos avós um caráter de transitoriedade. Sendo assim, uma vez estabilizada a situação dos genitores que os impeçam de exercer a guarda, por exemplo, pais menores de idade que atinjam a maioridade, esta será revertida em favor dos pais. Percebe-se que, na sistemática legal vigente, há uma resistente tendência ao favorecimento da fixação da guarda da criança e do adolescente em prol de seus genitores.
Em estudos realizados sobre o envelhecimento e a longevidade da população brasileira, o autor José Eustáquio Diniz Alves (2015) concluiu que os avanços médicos e as novas tecnologias favoreceram o aumento da longevidade. Dessa forma, favorece-se também a possibilidade da convivência prolongada entre as gerações: o envolvimento dos avós e netos torna-se mais evidenciado, recebendo denominações como “família multigeracional” e “família de três gerações”. A importância deste contato é altamente reconhecida e relaciona-se com o fortalecimento de laços de afetividade; tal convivência possibilita a transmissão de valores de forma intergeracional e produz uma série de impactos positivos no desenvolvimento das crianças e adolescentes.
Maria Berenice Dias (2016), tal como Flávio Tartuce em posicionamento supramencionado, sustenta que, após o direito à vida, talvez nada seja mais importante do que o direito à família, lugar idealizado onde é possível, a cada um, integrar sentimentos, esperanças e valores para a realização do projeto pessoal de felicidade, pontuando que todo ser humano pertence a uma família. O recolhimento das famílias em residências menores e a sua consequente transformação em “famílias nucleares”, limitando a maior parte da convivência entre mães, pais, filhos e avós, aliado ao aumento da expectativa de vida privilegiaram a inserção dos idosos na busca do espaço afetivo (SEREJO, 2012). Tal reconfiguração é denominada família extensa ou ampliada, de acordo com o artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Um importante aspecto da inserção dos avós nos núcleos familiares é o favorecimento do direito à ancestralidade, que se trata de um direito de personalidade e, portanto, assegurado pela Constituição. A convivência familiar é direito assegurado tanto pela Constituição quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de forma indistinta, diante do fato que os vínculos parentais não se esgotam entre pais e filhos.
Nesse diapasão, deve-se conceber tanto o direito das crianças e adolescentes de desfrutarem da companhia de seus avós, tanto o direito fundamental dos avós de conviverem com seus netos. Tal direito é consagrado como, por exemplo, o direito de visitas dos avós aos netos, que passou a integrar o artigo 1.589 (parágrafo único) do Código Civil com o advento da Lei 12.398 de 2011.
Determinada disposição privilegia o melhor interesse da criança e do adolescente. O impedimento injustificado do contato entre os avós e netos é medida que deve ser rechaçada, vez que os benefícios trazidos pela referida convivência constituem fatos incontroversos. Além disso, considera-se uma afronta à doutrina da proteção integral erigido pela Constituição. A promulgação da referida Lei foi, portanto, um grande passo no reconhecimento do direito dos avós a conviverem com seus netos.
Nesse sentido, a jurisprudência pátria reflete a dimensão da importância de se inadmitir comportamentos dessa natureza, impossibilitando que eventuais litígios familiares elejam o infante como objeto de vingança, conforme demonstra a ementa:
REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. AVÓ PATERNA. CABIMENTO. 1. A avó tem o direito de exercer a visitação em relação ao netos e este tem o direito de receber o afeto avoengo, estreitar laços de convivência familiar e ampliar a convivência social, não sendo propriedade da mãe, mas pessoa titular de direitos, que merece ser respeitado, bem como de ter uma vida saudável e feliz. 2. O claro litígio entre a mãe do adolescente e a avó paterna não justifica a proibição do direito de visitas, não podendo o adolescente ser instrumento de vingança. 3. Não havendo nada que impeça a convivência da avó com o neto, é cabível estabelecer a regulamentação de visitas, pois deve ser resguardado sempre o melhor interesse do jovem, que está acima da conveniência da mãe ou da avó. 4. No entanto, o sistema de visitação deve ser fixado de forma a atender também o interesse e a conveniência do neto, diante da relação fragilizada com a avó, em razão das desavenças entre este e a genitora, em razão de mágoas pretéritas, que precisam ser superadas, pois o genitor é falecido e a avó é o vínculo possível com a família paterna. Recurso provido em parte. (Apelação Cível Nº 70073863599, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 30/08/2017).
(TJ-RS - AC: 70073863599 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 30/08/2017, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 01/09/2017).
Vê-se que os conflitos familiares são constantemente a motivação para impedir os netos de conviverem com seus avós. O Relator Desembargador Lindolpho Morais Marinho, em caso semelhante, assevera: “O relacionamento mantido entre as partes, mãe e filha, é conflituoso e demonstra mágoa, decepção, orgulho, vaidade, desconfiança, revanchismo, um em relação ao outro. Tais sentimentos nutridos pelas partes, por certo afetam o desenvolvimento das crianças, que não tem absolutamente nada com os problemas passados e que, certamente, a eles são alheios”. A ementa do julgamento retratou a decisão no sentido de estabelecer visitas pautadas na razoabilidade, que permita o estabelecimento de vínculo afetivo com a avó materna:
PROCESSO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. EMBARGOS INFRINGENTES. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. AVÓ MATERNA. FILHA QUE IMPEDE A MÃE DE VER OS NETOS. DIREITO DA AVÓ DE VISITÁ-LOS. REDUÇÃO DO HORÁRIO DE VISITAS E AUMENTO DE INTERVALO. DESNECESSIDADE. A visita aos netos, além de ser um direito dos avós, é fundamental para o desenvolvimento dos netos, a quem se deve assegurar o direito à convivência familiar (art. 227 da CRFB). O horário de visitas deve ser suficiente para que avó e netos estabeleçam uma relação afetiva forte, não se justificando a redução do horário das visitas para duas horas, muito menos o aumento da periodicidade da mesma para bimestral. As desavenças existentes entre mãe e filha não podem prejudicar o convívio dos netos com a avó. Embargos Infringentes que se nega provimento por maioria, nos termos do voto do Relator. Vencido o Des. Gabriel Zéfiro. Obs: Ap. Cível 2006.001.14198.
(TJ-RJ - EI: 00870193720038190001 RIO DE JANEIRO TRIBUNAL DE JUSTICA, Relator: LINDOLPHO MORAIS MARINHO, Data de Julgamento: 16/10/2007, OITAVA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/12/2007)
Os avós sucedem aos pais na importância dos papéis familiares; a interdependência emocional da criança e do adolescente em relação a seus avós supera a interdependência econômica. Exemplo disso é o reconhecimento legal da obrigação de prestação de alimentos por avós em caráter subsidiário e de última ratio. Os efeitos da globalização sobre os lares impulsionam, cada vez mais, os pais à trabalharem fora de casa e diminuírem, assim, a convivência com seus filhos, o que faz com que os avós se tornem cuidadores integrais e, por vezes, legais, de seus netos.
A incumbência dos avós da criação dos seus netos gera, nestes, a sensação de pertencimento à sua família de origem, ainda que não convivam diretamente com seus genitores. Inclusive, o resultado de uma pesquisa realizada por Fu-I e Matarazzo (2001) demonstraram que as crianças que são adotadas intrafamiliarmente possuem saúde mental melhor do que as tiveram sua criação assumida por outra família.
MAINETTI e WANDERBROOCKE (2013) empreenderam estudo buscando investigar os efeitos da criação de crianças e adolescentes realizada pelas avós; perquirindo sobre as motivações que levam as avós se responsabilizarem pela criação de seus netos, depararam-se com o resultado de que a maioria já participava dela, antes mesmo de a assumirem definitivamente. Os genitores, muitas vezes, conviviam na mesma residência com os avós da criança: na falta da disponibilidade daqueles, os avós exerciam a função de cuidadores dos infantes.
Ainda, em muitas situações, as avós entendiam que os pais não eram suficientemente preparados para cuidar dos filhos: assim, os cuidados com os netos foram gradativamente passando às avós até que a situação se tornasse definitiva. Alguns entrevistados relataram, ainda, que mesmo com a reversão do quadro, os netos não desejavam residir com seus genitores por já terem se acostumado a conviver com seus avós, tomando-os como referencial familiar.
Outro fato que motiva os avós a atraírem para si a criação de seus netos é o desconhecimento da paternidade das crianças que, ante a declinação da mãe, tornava impossível o envio dos infantes aos cuidados paternos. A morte, o desaparecimento e o adoecimento dos genitores são outros fatores que convidam os avós a assumirem os cuidados por seus netos. A citada pesquisa expressa uma eventual sobreposição de motivos, não sendo um único fator a envolver os avós na criação dos netos.
Algumas avós relatam que seus netos, comumente, chamam-nas “mãe” ao invés de “avó”. O papel assumido pelas avós acaba sendo similar ao papel da genitora, embora BARROS (1987) aponte que há uma diferenciação clara entre a incumbência de pais e avós. A estes, caberia a função da transmissão de conhecimentos, valores, afeto e autoridade dentro da família e da participação na vida dos netos. A obrigação de educar seria, nesse sentido, papel primordial dos pais. Fragmentos da pesquisa mencionada revelam a interação das avós com seus netos que se aproxima da relação genitora-filhos:
Eu não sei como é ser avó porque eles me chamam de mãe. Então eu não sei como é falarem ‘vó’, então não tem como e explicar. (Avó 7)
Mesma coisa que se fosse um filho. A gente tem aquele amor por filho, não tem? Então...é a mesma coisa, aquele amor mais dobrado ainda por causa que é neto. (Avó 8). (MAINETTI;WANDERBROOCKE, 2013, s/p)
Apesar das eventuais dissociações a respeito dos papéis dos genitores e dos avós, foi evidenciado nas pesquisas que o impacto de sua criação de seus netos revelou-se positivo, propiciando sentimentos de renovação pessoal, oportunidade de ter companhias e gratificação por estarem provendo uma nova geração com cuidados e ensinamentos. Apesar disso, há preocupações com relação à saúde mais fragilizada, dado a idade mais avançada que é natural aos avós (LOPES e NERI, 2005).
As mudanças ocorridas nas estruturas familiares através do tempo imprimem ao Judiciário a responsabilidade de adequação. Conforme demonstrado, a concepção de família passou por gradual mudança que a aproximou, cada vez mais, da afetividade, modificando os parâmetros utilizados para, por exemplo, a concessão da guarda e a regulamentação de visitas.
O presente artigo buscou explorar a concepção das famílias e as suas sucessivas mudanças através do tempo, dando ênfase ao direito fundamental da convivência familiar entre avós e netos. A presença dos avós nos lares brasileiros é destacável, onde, muitas vezes, estes cumprem a função de guardiões de seus netos, fáticos ou legais.
Os estudos revelaram que a evolução do conceito de família foi influenciado por uma série de fatores, de forma a, progressivamente, extinguir o caráter fortemente patriarcal, hierarquizado e patrimonialista que qualificava as famílias. Outro importante traço da antiga constituição das famílias é a intervenção do Estado, que determinava, por exemplo, a obrigatoriedade do matrimônio para a caracterização da família e promovia o controle demográfico, reforçando a necessidade de se ter filhos.
Inicia-se, assim, um processo que foi auxiliado pela transferência das famílias para a zona urbana, que passaram a se recolher em ambientes fisicamente menores com um número reduzido de membros e, assim, ter um contato maior entre eles. Além disso, o fato de as mulheres deixarem de se dedicar única e exclusivamente à manutenção do lar desconfigurou a figura do pai como único provedor do sustento da família.
Dessa forma, as relações entre os membros da família foi, aos poucos, ressignificada, dando lugar para o afeto que se tornou o principal traço identificador da constituição familiar. Com o passar do tempo, esse novo aspecto foi incorporado à sistemática legal. A autodeterminação das mulheres, igualdade entre os genitores e dessacralização do casamento aliaram-se à nova concepção da família.
O advento da Constituição Federal de 1988 incorporou novos princípios ao Direito de Família, formalizando as conquistas socialmente alcançadas. O melhor interesse da criança e adolescente mostra-se privilegiado pela Constituição, dotados de proteção integral.
Admitindo o direito à família como um dos direitos fundamentais mais importantes, partindo do princípio que todo ser humano pertence a uma família, promove-se uma reflexão acerca do direito à convivência familiar e suas implicações. Nesse aspecto, os avós apresentam-se como detentores do direito à convivência familiar, convivência esta legalmente garantida.
A convivência familiar dos avós com os netos traduz o direito à ancestralidade que, por se tratar de um direito de personalidade, é constitucionalmente assegurado. Os avanços científicos promoveram uma melhora substancial na qualidade de vida dos idosos, favorecendo o aumento de sua longevidade e, assim, garantindo um contato prolongado com a família. Tal convivência é denominada de “família multigeracional”, por permitir a coexistência de três gerações.
Além disso, a globalização influenciou muitos lares a uma reconfiguração nuclear, onde os genitores se ausentam para trabalhar e a criação ou manutenção dos filhos fica a cargo dos avós, sendo frequente que estes sejam seus guardiões integrais. Percebe-se, dessa forma, grandes mudanças que alteram substancialmente a configuração das famílias.
O fortalecimento dos vínculos permite a facilitação da transmissão de valores em nível intergeracional, o que contribui para a atividade formadora da família. Tais valores se mostram fundamentais à socialização dos netos, que os refletirão no convívio social.
Por isso, é necessário que o aparelho legislativo esteja em consonância com a realidade dos lares brasileiros, bem como o Poder Judiciário ao exarar as suas decisões. Este deve observar, acima de tudo, a proteção aos interesses dos menores, aos quais é fundamental que lhe seja garantida a convivência familiar, não permitindo, sob nenhuma hipótese, a obstrução injustificada dos vínculos entre os avós e netos.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRADELA, Vinícius Anselmo Cassiano. O direito à convivência familiar: Modificações da concepção de família através do tempo, novos aspectos da família e direito à convivência familiar entre avós e netos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54410/o-direito-convivncia-familiar-modificaes-da-concepo-de-famlia-atravs-do-tempo-novos-aspectos-da-famlia-e-direito-convivncia-familiar-entre-avs-e-netos. Acesso em: 23 dez 2024.
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